Em Paris, Gilbert Molinier, professor de filosofia do colégio Auguste Blanqui protestou numa carta aberta à imprensa que sua escola estava tomando parte num jogo chamado Lês Masters de L´Economia. Tratava-se da distribuição de um portfólio de ações virtuais aos alunos que se obrigam com seus professores, chamados “padrinhos”, a maximizar seu valor em três meses. O vencedor ganha como prêmio uma viagem para conhecer a Bolsa de Nova York. Para Molinier, tudo resumia-se a questão da inexistência de fundamento pedagógico nisto tudo “Se nele aprendemos que importa somente o que traz dinheiro, queiram por favor responder a esta pergunta: somos obrigados, por dever de oficio, a ministrar as aulas?” . Num mundo onde de forma natural classes inteiras já se exercitam em cursos preparatórios para a constituição de empresas, em firmas escolares e campanhas de valorização do Espírito Empresarial, a questão da “comercialização da alma” nunca esteve tão atual.
A questão retorna quando me perguntam para exemplificar mais o que chamo de importância de renovar o marxismo - leia-se a postagem abaixo. É facil, basta ter em mente os referenciais teoricos realmente renovadores. Gosto muito de Robert Kurz, um excelente marxista alemão, autor de várias obras, entre elas “Com todo vapor ao colapso”(Ed. Pazulin/Ed. UFJF) coletânea de artigos de grande luminosidade.
Como seguidor e contestador do marxismo, Kurz superou-o apoiando-se, principalmente, nos vinte volumosos estudos do grupo da revista Krisis, anteriormente chamada de Marxistiche Kritik, publicados a partir de 1986. Escritor de grande sucesso - já vendeu mais de vinte mil exemplares de seu “O colapso da modernização” (Paz e Terra), Kurz é interlocutor privilegiado de expoentes do pensamento alemão como H.M Enzesberger, Ernest Lohoff e Peter Klein, com quem vem discutindo os conceitos marxistas de "fetichismo" e "valor". Inspirando-se em Marx, Kurz reconhece a lógica do valor como o centro da atual crise do capitalismo - aliás, ele foi o primeiro a antecipa-la. Critico ferrenho do processo que levou a reunificação das duas Alemanhas, analista em profundidade das causas da crise Argentina, e finalmente, um brilhante analista das formas de apropriação da subjetividade pelo capitalismo, suas teses enfatizam a idéia de que a história humana tem sido a história de relações fetichistas que não possibilitam a construção de nenhum sujeito social.
Kurz funda seu pensamento a partir de uma crítica aguda e um posicionamento original a um campo extenso de pensadores. Em que pese os avanços significativos da Nouvelle Histoire, (Ariés, Le Goff e cia), Kurz não poupa críticas " essas obras carecem de uma síntese desse material na perspectiva de uma história crítica da socialização ocidental, lhes falta a visão de conjunto capaz de viabilizar uma avaliação histórica renovada e orientar uma nova pauta de questões". Prefere Foucault, de Vigiar e Punir e Adorno, de Dialética Negativa, além de Habermas, Benjamim e Hobsbawn para fundamentar o seu pensamento "para além da esquerda". Também não esquece a contribuição de muitos pensadores clássicos, como Max Weber, Werner Sombart, Shumpeter e Keynes - deste útlimo, chega a recusar seus contenrâneos keynesianos de esquerda e suas "incursões pudorosas" em Marx, como o grupo Memorandum da Alemanha Ocidental.
É que Kurz acompanha em detalhe os acontecimentos contemporâneos e não se deixa iludir pela interpretação que lhes dão os filósofos de plantão. Analisando em detalhe os movimentos das grandes corporações, crítico das estratégias de marketing e das formas de tomada das consciências, no texto que dá titulo a obra emerge uma conferência publicada originalmente em 1995 e ainda inédita entre nós. Verdadeira pérola de análise ali Kurz resume as bases do pensamento que o orientará suas análises até hoje e que tem como principal efeito nos mostrar um lado original e nunca visto do capital. Após analisar o período pós-segunda guerra, sua conclusão é angustiante: “Foram atingidas pela crise as bases comuns de uma história de modernização de duzentos anos ou mais. Aqui trata-se de uma crise comum ao Ocidente e ao Leste Europeu, que não surge simplesmente do conflito de sistemas e seus critérios, mas que vem de muito mais fundo” Para Kurz, o capitalismo, apesar de ter sobrevivido, será a próxima vítima, e o marxismo, sua consciência crítica, revela-se parte daquilo que está em crise.
Kurz é o enunciador do conceito mais temido por dez entre dez economistas, o de crise da sociedade do trabalho. “Lembro-me muito bem como foi preocupante quando na Alemanha, no início da década de 80, o desemprego ultrapassou pela primeira vez o limite de um milhão de pessoas. Hoje, esta cifra seria uma notícia de sucesso”.A revolução de Kurz é apontar que o desemprego que se vê por toda a parte não se trata de um fenômeno cíclico mas normal do movimento capitalista, o fato de que já vivemos o colapso do trabalho em escala planetária. “Isto quer dizer que as cifras do desemprego não se reduzem na fase de recuperação cíclica da conjuntura, mas ao contrário, elas ainda se ampliam”. E, finalmente: “Hoje parece, ao contrário, que entra em crise o processo de transformação do trabalho em dinheiro, o que Marx chamava de trabalho abstrato, isto é, o dispêndio de cérebro, nervos, músculos na forma social de dinheiro, e assim, na reprodução do homem no contexto de trabalho-dinheiro-consumo de mercadorias – essa conexão do trabalho com o dinheiro é histórica e de forma alguma supra-histórica”.
Reunindo em “Com todo o vapor ao colapso” uma série de ensaios artigos de jornais - só na terceira parte são cerca de 15, a maioria publicados na Folha, é nos textos inéditos de conferências realizadas no Brasil e no exterior de Kurz que reside a novidade da obra. Ela combina observações avulsas, resumos dos debates ideológicos mundiais, revisões críticas à direita e esquerda e análises históricas em artigos que abordam temas como a financeirização do capital, a inserção internacional da América Latina e a expansão e crise da economia japonesa, agudizando conseqüências já indicadas em “Os últimos combates”. Kurz não vê possibilidade de uma recuperação do capitalismo de sua crise atual e da superação baseada na sociedade do trabalho, como o marxismo tradicional propõe. Este livro, mais do que os outros, critica o discurso econômico dominante, principalmente por que acredita que encarna de uma forma mistificada as contradições do capital e está estruturado por um jogo interno de categorias que é ao final das contas, fechado sobre si mesmo. Prefere retornar a Marx com o olhar voltado para o presente: ele sabe que a diferença de uma teoria econômica verdadeira de uma falsa é que a primeira busca as relações sociais e de poder escondidas sob o véu das relações econômicas, enquanto que a segunda aliena nosso conhecimento do real, reduzindo-se a uma visão descritiva, reafirmando o sistema.
Analisando casos concretos como o papel da intelligentsia, do imperialismo e da União Européia, Kurz mostra à esquerda que, antes de sair a rua brandindo slogans atrasados, é preciso conhecer os fluxos da economia internacional. É preciso superar as concepções ingênuas que fazem nos pensar que o desemprego é independente dos movimentos conjunturais da economia, que o sonho da emancipação social é possível na economia de mercado. É preciso, em suma, ver o capitalismo como o vencedor mais estúpido - parafraseando Barbara Tuchmann - que a história já conheceu. Kurz nos mostra o quanto no campo da realidade econômica está sendo apagada as fronteiras entre capital e trabalho, mas também entre existência e a aparência, a realidade e a simulação - guerra do Golfo, microeletrônica, nova mídia - e aponta para o fato de que, se a ciência econômica encontra-se numa crise, é preciso fundar um novo pensamento para compreendermos a globalização. Um pensamento que dê conta que a imagem que o ocidente faz de si mesmo - como mundo democrático, racional e livre - está por um fio - e que não serão os projetos de uma esquerda política "embolorada" que vai resgatar a vida humana como um todo.
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