quarta-feira, 24 de março de 2010

DOSSIE VOLTAIRE SCHILLING X - Uma crítica a Cultura em 2008

24 de maio de 2008
Artigo
Cultura faz falta, sim senhora!, por Jorge Barcellos*


Foi Rosane de Oliveira, colunista de Zero Hora, quem primeiro notou que faltava, entre os Programas Estruturantes lançados pelo governo estadual, um voltado para a cultura. E sugeriu, com astúcia, a possibilidade de um projeto envolvendo as Oscips estar na agenda do governo para a área.

O Programa Estruturante Lisboa 2020, facilmente encontrado no Google (http://www.gestaoestrategica.ccdr-lvt.pt/files/274.pdf), define-o assim: "O conceito de projeto estruturante cobre um número restrito de projetos, suficientemente integrados e transversais, susceptíveis de explicitar as grandes prioridades estratégicas [que se definem] em função de sua dimensão de resultados, isto é, sua capacidade para produzir mudanças duradouras [grifo nosso] e sustentáveis na competitividade e na coesão territorial da região".

Ora, não se admite que a cultura não seja uma prioridade de governo, como conclui-se da leitura da apresentação dos Programas Estruturantes do Governo Estadual (www.estruturantes.rs.gov.br). No mínimo, a questão "estruturante" da cultura deveria ser tratada junto com a educação. É importante para uma educação de qualidade a existência de professores valorizados (Programa Estruturante Boa Escola para Todos), mas também a existência de bons museus, centros culturais e espaços extra-escolares para atividades de currículo. Esquecer ou minimizar a cultura num Estado de tradição como o RS é, no mínimo, uma falta grave.

Mas há algo pior aí. É o silenciamento profundo da classe cultural com relação a esta política. Produtores, gestores da cultura do Estado, profissionais, organizações de classe, em nenhum lugar se percebe um movimento de pressão para a inclusão de mais um "programa estruturante" ou, no mínimo, uma reforma nos atuais programas. É preciso dar a expectativa aos diretores de museus e centros culturais do Estado da possibilidade de apoio para suas instituições, que, como é sabido, vivem de parcos recursos financeiros e humanos.

Este silêncio é perturbador. Ele pode significar três coisas. A primeira é a surpresa: sim, estão todos boquiabertos com a clareza com que o atual governo minimiza a cultura gaúcha. A segunda é a desesperança: há muito tempo, todos nós, produtores culturais, perdemos a esperança na possibilidade da construção de instituições culturais sólidas em nosso Estado. A terceira é a ironia atroz: não há problema, porque nenhum dos programas estruturantes propostos um dia se realizará.

Fico com a idéia otimista de que o governo quer acertar. Os Programas Estruturantes de Lisboa têm algo para ensinar ao governo atual. Ali explicitou-se a idéia de que é necessário investir naquilo que produz mudanças duradouras nas regiões. Não me ocorre nada melhor para promover mudanças duradouras do que investimento na cultura, possibilitada pela valorização de nossos bens, memória e patrimônio cultural, que é riquíssimo. Ao menos, para mim. Ou estou enganado?

terça-feira, 16 de março de 2010

DOSSIE VOLTAIRE SCHILLING IX RESPOSTA DA SECRETARIA

Publicado em Zero Hora Cultura, de 13 de março. Resposta a críticas sobre sua gestão.

Não há crise na cultura gaúcha
Em defesa de sua administração na Sedac, a secretária Mônica Leal sustenta que somente o choque de gestão implementado por ela impediu a paralisação de serviços e instituições na área



De início, como é do meu feitio, respondo àqueles que alegam que causei a pior crise cultural de nossa história, afirmando: não há crise na cultura. Só haveria crise se eu, titular da pasta, não tivesse tomado as providências de saneamento a partir de um choque de gestão. Essa é a verdade! Os que querem perpetrar suas críticas demonstram integrar um levante contra mera exoneração de cargo de confiança por laços de amizade que unem um pequeno grupo. Quanto ao exonerado, houve razões funcionais que motivaram a exoneração, não se tratando de capricho pessoal.

Ademais, havia e há um objetivo governamental de, no Memorial, se concentrar a memória do Rio Grande do Sul e não a história universal. Essa última é positiva e necessária, mas em órgão competente. O ocupaste de cargo de confiança deve seguir a linha do governo e não a sua pessoal.A Secretaria de Estado da Cultura (Sedac) contribuiu, sim, decisivamente com suas tarefas. Todavia, não tem a pretensão de esgotar todos os projetos. Os convênios com os municípios não são do conhecimento do censor desavisado Gunter Axt, tampouco que se está ampliando a Biblioteca: em 2009, a Sedac obteve a destinação do prédio conhecido como Casa da Cidadania, na mesma quadra em que está instalada a Biblioteca Pública atual.

No novo espaço funcionará uma Biblioteca de referência com uma longa manus da atual Biblioteca, possibilitando aquisições e atualização de acervo. O prédio histórico está sendo totalmente restaurado, em parceria com o BNDES, para dar continuidade às intensas atividades culturais que lá acontecem e abrigar adequadamente o acervo bibliográfico de obras raras. Desconhece Axt que o Instituto Estadual do Livro (IEL) participou de uma dezena de publicações nesta gestão.Com o saneamento das finanças, em especial contendo gastos inexplicáveis como o aluguel de prédio na Praça da Matriz, com custo anual de meio milhão de reais, pôde a Secretaria organizar novos planos, como a conquista de sede própria e definitiva no 19º andar do Centro Administrativo do Estado, agora dotada de infraestrutura e tecnologia; o Sistema LIC resgatou sua credibilidade e está recebendo sistema automatizado, para o qual se destinou um valor bastante alto, garantindo mecanismos de controle eficientes e agilidade na tramitação dos projetos.

A secretaria integrou, ativamente, o Projeto Estadual de Prevenção à Violência e levou grupos de teatro e bibliotecas itinerantes para comunidades carentes de inúmeros municípios das diferentes regiões de nosso Estado. Resgatamos o Prêmio de Incentivo à Pesquisa Teatral do Teatro de Arena.As críticas advindas de Günter Axt, além de improcedentes, porque não conhece a situação, são tendenciosas e pretendem gerar uma crise real, com objetivos claros.As instituições não ficaram paradas por falta de orçamento, pois as direções por mim indicadas, técnicas, usaram de muita criatividade e contaram com o apoio das associações de amigos, que são muito comprometidas e atuantes.

Frente ao quadro que encontramos de problemas nas nossas casas, busquei parceria através de patrocínios para a Cinemateca Paulo Amorim, para a Casa de Cultura Mario Quintana; um patrocínio inédito para restauração da fachada histórica em arenito do Museu Júlio de Castilhos; climatização e modernização do Margs para receber grandes exposições, como, por exemplo, Arte na França: o Realismo, que contou 135 mil visitantes; exposições inéditas como a da Escola Superior de Design de Ulm no Museu de Comunicação, este que está sendo restaurado através do programa Monumenta com contrapartida considerável da secretaria.

Houve a restauração da Casa de Jango, em São Borja, reciclada para abrigar um memorial e que contou com o financiamento da LIC e total participação do nosso Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae), que também estuda a restauração do Mercado Público Culturaonhecer as realizações, para não ferir as regras do pleno conhecimento da causa e da isenção que deve orientar o cientista. O engajamento compromete a opinião, quando tendenciosa.MÔNICA LEAL* * Secretária de Estado da Cultura

DOSSIE VOLTAIRE SCHILLING VIII - A Cultura da Secretária de Cultura

“Todos aqueles cujos sentimentos são contrários aos nossos não são necessariamente bárbaros nem selvagens, mas podem ter tanto quanto ou mais razão do que nós.” René Descartes, Discurso do Método


Os argumentos utilizados pela Secretária Estadual de Cultura Mônica Leal em seu artigo do Cultura do último dia 13/03 são um bom exemplo de como funciona a legitimação ideológica em nossos dias atuais. Em uma primeira leitura, seus argumentos correspondem ao que Anna Freud (1936) e Otto Fenichel (1945) definiram como os mecanismos de defesa do ego. Negação em aceitar os dados da realidade – a crença na falta de fundamento nas criticas a sua gestão; fantasia proporcionada por uma ilusão dos desejos que não podem se realizar – a sua crença na existência de um projeto politio cultural em andamento da qual é protagonista; repressão que afasta do consciente e mantém a distância algo pertubardor – a réplica acirrada a seus críticos de plantão; projeção que atribui aos outros sentimentos que nascem em si mesma – de que a comunidade cultural está satisfeita com sua realização, quando há uma oposição; racionalização que encontra razões naquilo que é irracional - “o ocupante de cargo de confiança deve seguir a linha de governo e não sua linha pessoal”. Se Voltaire Schilling foi demitido porque foi incapaz de concentrar a memória do Rio Grande do Sul no Memorial – o que não é verdade, pois realizou publicações e eventos nesta área - da mesma forma o diretor do Margs deveria ser imediatamente ser demitido pela exposição Arte na França que a Secretaria elogia, porque também seu museu deveria concentrar a arte somente gaúcha! Nada mais irracional! Nada mais revelador da ausência de projeto!

As características de sua política cultural podem ser constatadas naquilo que a Secretária tem de mais inocente: seu blog (monicalealrs.blogspot.com). Nele vemos a Secretária no que mais considera como ação cultural propriamente dita: inaugurando obras, fazendo corpo a corpo com a comunidade cultural – e dá-lhe fotos, muitas fotos – e participando daquilo que considera a ação cultural por excelência, a Cavalgada do Mar. Sua primeira postagem é o registro do recebimento do CD da AJURIS que mostra como os magistrados do Rio Grande do Sul são bons cantores de música nativista (23/10/2009); depois, entre outras postagens, seguem-se as que falam da importância da Feira do Livro de Porto Alegre “nada substitui o cheirinho de papel” (31/10/2009); a tombamento do Castelo de Pedras Altas (29/11/2009); a da inauguração do auditório do Colégio Medianeira (Santiago, 11/3/2010) até o lançamento da Cavalgada do Mar (27/1/2010). Há muitas notícias suas, de viagens, de encontros com diversas personalidades do interior.

De fato, entre pequenas e grandes ações, não é pouca coisa o trabalho da secretária. Entre visitas a museus, autoridades, eventos e pessoas, realmente que tipo de política a Secretária tem desenvolvido? É claro que a Secretária tem desenvolvido ações sim, tem trabalhado em muito em prol da cultura sim, mas o que estamos discutindo é se elas reunidas constituem um projeto. Numa palavra, tem um fio condutor que as unifique, se possuem unidade que a constituam enquanto sistema. Pois é isto que faz com que suas diversas ações sejam fecundas para a cultura do estado. Que dêem frutos no futuro. Ao contrário, o que constatamos acompanhando as postagens da Secretária, é que vemos uma Secretária desesperada por fazer algo. Qualquer coisa. Às vezes até sem comer, como ela mesmo revela. Até em prejuízo de sua vida pessoal, como as vezes assinala. Viajando de um lado para outro, estando em diferentes lugares, em vários lugares ao mesmo tempo, às vezes de passagem rápida em função do próximo evento. Se seguir esse ritmo, a ela aplica-se o que Slavoj Zizek diz de forma paradoxal “É melhor não fazer nada que comprometer-se em atos localizados, cuja função última é fazer que o sistema funcione melhor” (La Suspension Política de la Ética, FCE, 2005).

Esse sistema de que trata Zizek pode ser aqui entendido como a prática de uma política cultural de aparências, na qual as discussões de fundo são substituídas por encontros e inaugurações. O problema da Secretária não é a sua passividade, que ela de fato não tem, mas a sua pseudoatividade, sua urgência de estar ativa, de participar de tudo e de todos os eventos, que mascara o vazio de projeto que a envolve. Ao participar de tantos eventos sem uma unidade de sentido, o que lhe é difícil verdadeiramente é retroceder, é retirar-se do dia-a-dia de contato com órgãos, instituições e pessoas, para construir o conceito de base das ações de políticas culturais de seu governo. Ao contrário, sua primeira ação critica deveria ser abandonar-se à passividade, recusar-se a participar de tais eventos para esclarecer de fato o terreno de sua verdadeira linha de governo.

Sobre a frase principal ”Não há crise na cultura”: seu argumento choca pela sua simplicidade e é da mesma natureza da frase de Kung Fu Panda, o filme infantil de John Stevenson e Mark Osborne -“não há ingrediente especial. É apenas você. Para acreditar que algo é especial, você precisa apenas acreditar nisso”. Estamos defendo Voltaire Schilling? É claro que sim, porque mesmo sabendo ser seu direito demiti-lo, o julgamos vítima de uma injustiça. Estamos criticando a gestão da Secretária? Sim, mas não pelo trabalho, que de fato ela tem, mas pelo sentido político de sua ação.A forma fetichista da defesa da Secretária tem, como no filme de Stevenson & Osborne, a seguinte mensagem subliminar: “Sei muito bem que existe crise na cultura, mas ainda assim acredito que não“. Esta é a fórmula mais elementar do funcionamento da ideologia, a do ataque irracional às denúncias e criticas que lhe apresentadas. Ou ainda, como naquele filme dos Irmãos Marx, onde Grouxo Marx, ao ser descoberto numa arte, contesta raivosamente: “a quem crê, em teus olhos ou em minhas palavras?”

quarta-feira, 10 de março de 2010

DOSSIE VOLTAIRE SCHILLING VII - QUANDO TUDO COMEÇOU..


Rigotto empossa Voltaire Schilling como novo diretor do Memorial do RS
2005
Memorial do RS O governador Germano Rigotto deu posse, hoje (16), ao novo diretor do Memorial do Rio Grande do Sul, Voltaire Schilling, e a oito novos integrantes do Conselho Estadual de Cultura. O historiador adiantou a orientação que vai adotar na sua e gestão e destacou o trabalho realizado por José Bacchieri Duarte, que esteve à frente do espaço cultural até fevereiro deste ano, quando faleceu. "Encontrei uma casa muito organizada, recebi uma herança bendita. Não haverá ruptura", elogiou Schilling, durante ato realizado. "Bacchieri respirava e vivia o Memorial desde que o convidamos para o cargo. Fez com que a instituição saísse destas paredes para levar um pouco da história do Rio Grande do Sul às escolas", afirmou Rigotto. Segundo o novo diretor, a gestão terá como referência para os projetos pontos cardeais. "O Sul serão os interesses de Porto Alegre e do RS, ao Norte tudo o que disser respeito ao Estado em termos de Brasil. O Oeste ficaria com os assuntos internacionais relacionados com a história local, e o Leste, um contato maior com o Mercosul e seus produtores culturais", definiu. "Nossa ênfase também será em publicações, especialmente para alcançá-las aos professores, como material de auxílio a ser utilizado em sala de aula", completou. Rigotto destacou a trajetória de Voltaire Schilling, autor de mais de 60 trabalhos, e a qualificação da Cultura no RS. "É um historiador que dispensa comentários por sua história e sua bagagem. Um Estado com atividade cultural forte tem a capacidade de definir seus caminhos no futuro", disse o governador. "O Rio Grande do Sul e Porto Alegre vão ter muitos equipamentos voltados para cultura. A atividade cultural que caracteriza o Estado, vai ser ainda mais forte", salientou, ao citar, entre os novos projetos, o Multipalco do Theatro São Pedro.Conselho de CulturaO governador também empossou no Conselho Estadual de Cultura Cláudio Britto (titular) e Décio Magalhães Duarte (suplente); Gervásio Neves (titular) e Fatimarlei Lunardelli (suplente); Ivo Ladislau (titular) e Glênio Reis (suplente); Heloísa Beckmann Morgado (titular) e Magda Schneider (suplente); José Henrique Pires (titular) e Paulo Roberto de Fraga Cirne (suplente). Permanecem no Conselho Tailor Diniz Neto (titular) com Luiz Coronel (suplente); Nelson Muratore Hoffmann (titular) com Cleudes Piazza (suplente); Walter Galvani (titular) com Regina Escosteguy Flores da Cunha (suplente). O órgão tem, entre suas atribuições, julgar projetos artísticos e culturais que se candidatam a receber apoio pela Lei de Incentivo à Cultura (LIC). "O conselho tem desempenhado papel fantástico para o desenvolvimento da Cultura no Estado", afirmou o secretário da Cultura, Roque Jacoby. Também participaram do ato o chefe da Casa Civil, Alberto Oliveira, o coordenador da Assessoria de Comunicação Social do Governo do Estado, Celito De Grandi, o coordenador do Conselho Estadual de Cultura, Jorge Campos, Luiz Alberto Gusmão - que interinamente vinha desempenhando a função de diretor - o secretário municipal da Cultura, Sérgius Gonzaga, e o reitor da Uergs, Nelson Boeira. O porto-alegrense Voltaire Schilling, nascido em 1944, é professor de História e colunista do jornal Zero Hora, além de autor de diversas obras, entre elas: A revolução chinesa: colonialismo, maoísmo, revisionismo (1984), O nazismo: breve história ilustrada (1988), Momentos da história: a função da história na conjuntura social (1988), Estados Unidos versus América Latina: as etapas da dominação (1991), Tempos da História (1995), O conflito das idéias (1999).

Dossie Voltaire Shlling VI - Entrevista de Voltaire recoloca a questão da arte

Arte 05/12/2009 05h10min
Arte na berlinda: Zero Hora entrevista Voltaire Schiling
Artigo do historiador gerou polêmica sobre arte na Capital
O artigo
A capital das monstruosidades, do historiador Voltaire Schiling, publicado em Zero Hora no dia 25 de outubro deste ano, foi o estopim de uma polêmica sobre a arte na Capital gaúcha. Os jornalistas Eduardo Veras e Luiz Antônio Araujo conversaram com Schiling sobre o assunto, na casa do historiador, no Morro Santa Teresa. Confira a íntegra da entrevista.

Zero Hora — O senhor esperava que seu artigo fosse ponto de partida para uma polêmica sobre arte em Porto Alegre?

Voltaire Schilling — Não. Minha percepção era apenas reclamar contra o que eu considero o conjunto de horrores estéticos que nos cercam. Para mim, o ponto de deflagração foi a "casa monstro" (a obra Tapume, de Henrique Oliveira). Acho que não contribui para a cidade. Sou um cidadão de Porto Alegre descontente com o tipo de monumento e estatuária que existe por aí. Pelo menos com aquelas elencadas. Repare que não é uma declaração universal de horror a toda a estatuária da cidade. Depois soube que o mesmo escultor (Tenius) que fez o monumento ao ditador (a obra Monumento a Castello Branco, no Parcão) é o dos Açorianos, que acho um trabalho muito interessante.

ZH — As soluções formais do Monumento a Castello Branco e do Monumento aos Açorianos são muito próximas, se não as mesmas, não?

Schilling — Bom, isso é difícil, não gostaria de me ater. Existem obras de arte moderna e contemporânea excelentes e outras que não o são. Da mesma maneira que um pintor tem o seu mau dia, que um cineasta faz filmes maravilhosos e, de repente, faz um abacaxi ou um extraordinário teatrólogo faz uma peça que não funciona.

ZH — O monumento do Parcão é mal-resolvido?

Schilling — Não, só estou dando uma impressão. Não é uma questão de estudo acurado e profundo. O que acho estranho nessa área das artes plásticas é que, na literatura, o sujeito pode escrever um livro ruim, e a crítica em geral pode manifestar sua hostilidade. A mesma coisa acontece com o teatro, com o cinema. Mas parece que as artes plásticas resolveram reservar a si uma posição de não aceitar e imediatamente cair no pentágono da desqualificação: quem critica é nazista, stalinista, reacionário, ignorante e burro. Sabia que, se houvesse algum tipo de contestação (ao artigo), entraria em uma dessas categorias. Curiosamente, não me chamaram de veado ainda. É praxe isso.

ZH — O senhor foi chamado desses qualificativos?

Schilling — A todo momento. Em e-mails e coisas de tudo que é tipo. Um dos epítetos foi "machista", porque eu estranhava que apesar de a cidade ser simpática, a população ser afável e as mulheres serem as mais bonitas do Estado, não inspirasse os artistas a fazer alguma coisa esteticamente relevante. Mas isso é praxe. Quem usou "nazista" foi o meu querido amigo Paulo Amaral (citando): "Ah, te lembra que os nazistas...". Bom, Rockefeller (John D. Rockefeller Jr., dono da Standard Oil e proprietário do Rockefeller Center) mandou repintar um mural de Diego Rivera (pintor mexicano). O primeiro sujeito que usou essa palavra associada à monstruosidade foi Walter Rathenau, judeu ilustrado, morador de Berlim, riquíssimo. Ele escreveu um ensaio no final do século 19 no qual chamava Berlim de "a cidade mais bonita do mundo" e dizia: "Nossa capital é a principal acolhedora da feiúra moderna". Antes dos nazistas, essa estética da feiura já provocava estranhamento.

ZH — No texto o senhor usa termos como "monstruosidade", "flagelo", "medonhice", "perversidade" em relação às obras que rejeita, num sentido não irônico. O senhor ficou surpreso com a reação a esses qualificativos?

Schilling — Não. O texto também procurou ser divertido. É evidente que tem ironia. Se tu olhares o Monumento a Castello Branco, ele pode ser entendido como desembarque de um extraterrestre, por que não? Aquela outra, o "timão" (Estrela Guia, de Gustavo Nackle), parecia realmente ser feita de estrume, de esterco. Teve um sujeito que me falou que buscava a mulher aqui na Febem e toda vez que passava em frente (à obra) se sentia mal do estômago. O cara tinha engulhos ao passar por aquilo. Se tu perguntares para as pessoas da Zona Sul o que eles acham daquilo... Faz um levantamento. É claro que eu procurei fazer ironicamente a coisa. Não sou a favor de que as massas se reúnam e destruam as obras de arte. Fiz uma ironia. Apesar de que tu sabes que hoje em dia há instalações em que as pessoas chegam, e o artista entrega um martelo para o cara destruir.

ZH — Ou seja, de fato o senhor acha que Porto Alegre não tem de se livrar dessas obras?

Schilling — Não. Não. Não. É o seguinte: doravante, doravante... Eu acho difícil porque existe de certa forma no circuito dos artistas plásticos uma tirania que acovarda as pessoas. Fica todo mundo apavorado. Ninguém gosta, mas ninguém ousa dizer que o rei está nu e que isso é uma porcaria. No Brasil inteiro, tu tens Affonso Romano de Sant'Anna (poeta), Ferreira Gullar (poeta e crítico)... Por quê? Porque tu pagas um ônus. Ninguém gosta de ter seu nome associado ao nazismo. E é a primeira coisa que tu vais encontrar. Pega o artigo do Paulo Amaral: "Ah, os nazistas...". Então as pessoas se acovardam. Outra coisa: "Tu és burro, tu não entendes, tu tens de ter uma formação etc e tal". Me lembro até que saiu uma mineira dizendo assim: "Para fazer uma crítica à arte, as pessoas têm de estudar". Mais ou menos assim como se tivesse que fazer um pós-graduação para, aí sim, ousar fazer algum tipo de ilação negativa. E mesmo se fizer não há garantia nenhuma de que não vão te chamar de nazista ou stalinista. Então, tens de ter coragem, tu entendes? Milhares de pessoas estão se manifestando: "Pô, mas é isso mesmo, eu estava me achando burro...". E não é gente ignorante. Um amigo meu, ex-diretor da Faculdade de Medicina, disse: "Pô, eu também estava achando isso". Só que as pessoas estavam inibidas, porque há uma tirania e tu não podes ser contra.

ZH — Qual deve ser a atitude diante das obras expostas ao público em museus e praças, na medida em que uma parcela desse público não goste do que está sendo exibido?

Schilling — Isso é uma situação difícil de resolver. Arte não se resolve por plebiscito, por levantamentos ou por vontade geral da nação. Isso não funciona com a arte. É um setor que tem de ser tratado com carinho, com certa atenção, não pode ser submetido a plebiscitos. Mas, por outro lado, também não podemos cair na tolerância completa, o que acaba acontecendo em grande parte do mundo com a arte conceitual. Se caiu num vale-tudo. Me diz o que é um charlatão e o que é um artista autêntico. Há controvérsias. Robert Hughes (crítico australiano) considera aquele sujeito que empalhou um tubarão e vendeu por não sei quantos milhões de dólares um charlatão. Outros não o consideram. Qual é o critério de que um fogareiro aceso com uma serpentina em cima é uma obra de um grande artista e não obra de um picareta?

ZH — Quem define os critérios?

Schilling — Nós fomos tão tolerantes que as pessoas passaram a ter medo de exercer qualquer tipo de crítica. Tudo é bonito, tudo é válido, tudo é sensacional. Se tu não entendes a coisa, é porque és burro, idiota, reacionário, não percebes a magnitude dessa mensagem que daqui a alguns anos vai ser consagrada. Essa é a retórica de sempre: "Ah, lembrem os impressionistas..." Bem, vamos lembrar os impressionistas. Praticamente todos morreram bem. Estive na casa de Monet (Claude Monet, pintor impressionista) na França. Ele devia ganhar US$ 10 mil por mês para manter aquilo. Degas morreu bem. Picasso morreu multimilionário. Agora vão me dizer...

ZH — Quando jovens eles foram rejeitados. Há quem diga que o impressionismo foi mais rejeitado do que a arte de hoje.

Schilling — Tudo bem, mas não morreram mal.

ZH — Essa é a dinâmica do sistema das artes. Schilling — É. Vamos dizer o seguinte: é uma necessidade...

ZH — O senhor acha que a obra dos impressionistas acabou se impondo?

Schilling — Vamos supor o seguinte: há um exagero cultivado por eles mesmos. Porque isso fazia parte da demonização do artista: aquela ideia de que "nós, no passado, fomos rejeitados". Isso foi superexagerado no sentido de valorizar aquele martírio que eles passaram. No final, ninguém foi preso, ninguém foi detido. Perto do que aconteceu depois, no século 20, do que os artistas passaram na mão de Stalin e de Hitler... Nada aconteceu disso com os impressionistas. E se houve alguma utilidade nisso... E provavelmente muitas outras escolas artísticas ao longo da história de artistas que começam e são rejeitados. Quem é que disse que o Michelangelo saiu já...

ZH — Van Gogh morreu pobre, Modigliani morreu pobre.

Schilling — É, sim, mas aí, querido, me desculpe: alcoolismo, né? Aí é alcoolismo, né? Dois casos de coma alcoólica. Morreram por alcoolismo, por loucura alcoólica. E além do mais, até por temperamento. Modigliani foi negociar com um milionário americano e bateu a porta do hotel, xingou o cara. São idiossincrasias da personalidade.

ZH — O senhor quer dizer que quem é bom vai ser reconhecido ainda em vida?

Schilling — Não, não necessariamente. Mas esse tem sido o grande argumento para tu aceitares tudo. Tem a arte que agora não está sendo entendida. Bom, não está sendo entendida porque tu és burro, reacionário, e mais tarde vai haver a consagração.

ZH — Voltando ao tema dos critérios de apreciação da arte: no seu entender, quem deve estabelecer os critérios? Como? Baseado em quê?

Schilling — Bom, hoje em dia é fácil se identificar. Há, ao lado dos artistas plásticos, o que eu chamo de sacerdotes sibilinos, que são os críticos de cultura e de arte, que ficam interpretando o que é aquilo: "Ah, essa chapa, essa chapa de ferro, isso aí é a perplexidade do mundo perante as hostilidades etc e tal." Pronto. Do lado, tem o crítico, é ele que interpreta. Ele é o sacerdote sibilino.

ZH — E como o senhor acha que seria o ideal?

Schillling — Não sei. Eu não sei. Eu não sou artista. Sou um observador e um estudioso.

ZH — O senhor é um intelectual.

Schilling — Eu fui professor, eu comecei minha vida como professor de História da Arte. Não sou um amador. Eu li pelo menos os principais clássicos, os principais livros de História da Arte, tenho intimidade com esse assunto, não é uma coisa estranha a mim, mas não cabe a mim saber quais são as possibilidades... O que existe hoje é o seguinte: existe uma quantidade enorme de objetos que passam por obras artísticas, instalações etc, e do lado existem os críticos de arte e donos de galeria, que são, digamos assim, os apoiadores desse processo. E o crítico existe, a função dele é de sacerdotisa sibilina, quer dizer, ninguém entende nada daquilo, mas aí vem o crítico e explica, quase como uma espécie de bula de remédio o que é : "Aquilo significa isso, isso e isso". E, apesar das explicações, as pessoas não têm se convencido, né? Então, eu vejo até com preocupação, até é uma preocupação dolorosa com a arte. Eu sou admirador da arte. Eu fico preocupado com o destino da arte. Com esse abismo que está se abrindo, tu entendes? Em vez de haver uma espécie de conciliação hegeliana entre o mundo artístico e o grande público, nós estamos abrindo um abismo cada vez maior onde as pessoas mostram a sua perplexidade, a sua indiferença. Não é bom isso, não é bom isso para ninguém, não é? Eu ainda sou um, digamos assim, um seguidor da ideia iluminista de que a estética tem uma função de melhorar todos nós. A estética faz bem para nós. Agora, em parte, eu te diria que essa fome estética que a humanidade sente ela está sendo desviada para a tecnologia. Por exemplo, as pessoas vão num salão do automóvel e saem absolutamente embevecidas. Coisa que tu não vês quando as pessoas saem de uma Bienal — não é a nossa, qualquer uma. Tu não vês esse empolgamento das pessoas.

ZH — O senhor foi à Bienal este ano?

Schilling — Sim. ZH — Aonde o senhor foi? Schilling — Ah, fui ali, aquela ali do... Aliás, hoje eu estou com vontade ainda de ... Tenho um compromisso lá e vou, quero ver se faço um arremate final.

ZH — Ali no Margs? Schilling —

É. No Margs eu fui, claro, é do meu lado (Voltaire é diretor do Memorial do Rio Grande do Sul, situado no antigo prédio dos Correios, vizinho do Margs, na Praça da Alfândega). Foi a que tem sido mais visitada, inclusive...


ZH — E o que o senhor achou?

Schilling — Olha, eu achei que tem trabalhos escolares, né? Tem coisas assim de trabalho de ginasiano, colagenzinha de ginasiano, né?

ZH — O senhor não acha que o fato de a Bienal estar na sétima edição, de ter tido um crescimento de público sustentado, de ter atraído não só o público adulto, que frequenta museus, mas de ter se tornado um ponto de referência para escolas, de alguma maneira indica que a disposição do público não é exatamente a que o senhor tem?

Schilling — Olha, duas coisas. Primeiro, eu não sou contra a Bienal. Acho que a Bienal é ótima para a cidade. Acho muito bom. Pelo menos de dois em dois anos, há um encontro, uma confraternização das propostas dos artistas com o público, que é uma coisa boa para a cidade. Como é que eu vou ser contra a arte? Em segundo lugar, mesmo com o aumento de público, eu não encontrei empolgação. Não tem. Eu estou numa posição estratégica, já é a terceira Bienal (à qual assiste como diretor do Memorial do Rio Grande do Sul). Nunca, nunca nenhuma pessoa demonstrou na minha frente, para amigos meus, para pessoas próximas a mim, empolgação: "Vi tal coisa maravilhosa". Nenhuma vez. Ao contrário: decepção. A palavra é decepção. Sempre decepção. As pessoas vão com toda a boa vontade e saem decepcionadas. Muitas pessoas dizem: "Mas essa é a função da arte hoje. Criar esse tipo de embaraçamento etc e tal".

ZH — Nenhum trabalho lhe empolgou ali no Margs?

Schilling — (Pausa.) Não. (Mais baixo.) Não, não. Os meus, digamos assim, os meus ídolos, as pessoas que eu admiro, são os impressionistas... mesmo os cubistas e os futuristas... Eu sou, digamos assim, defensor da arte pré-contemporânea, da primeira arte moderna, pré-contemporânea. Isso aí (da Bienal) pouco diz para mim. Então a primeira questão que eu levanto é isso: por que um grupo reduzido de artistas plásticos, de críticos culturais e de donos de galeria atingiu um patamar que se coloca acima da crítica e reage ferozmente quando criticado? Essa que eu acho que é a questão interessante. É um grupo muito pequeno se tu somares os artistas plásticos e os críticos culturais etc e tal que aterrorizam a população. Tanto é que as pessoas não gostam mas não têm coragem de dizer. Esse é um sentimento. Vocês não percebem isso?

ZH — Será que essa reação não foi à maneira como o senhor se posicionou? O senhor chamou as obras de arte de "flagelo", disse que elas "atormentam", disse que uma parecia "estrume", chamou de "monstruosidades". O senhor juntou obras modernas e contemporâneas, obras selecionadas por concurso e obras temporárias. Será que não foi isso que incomodou?

Schilling — Não.

ZH — Chamar de "flagelo", "monstruosidade"...

Schilling — Não. Não. Não.

ZH — Não foi isso? Schilling — Não.

ZH — O senhor acha que os termos foram...

Schilling — Mas são sempre os mesmos. Olhem: se eu fosse o mais suave possível, a reação seria a mesma: nazista, stalinista, reacionário, ignorante e burro. Tenta fazer um artigo. Tenta fazer um nessa linha...

ZH — Eu fiz um artigo.

Schilling — Não, tudo bem, mas tenta fazer um no sentido crítico.

ZH — Eu fiz um artigo crítico sobre a Bienal.

Schilling — Vê se não vai desabar sobre ti.

ZH — Eu fiz um artigo crítico sobre a Bienal.

Schilling — Eu já sei.

ZH — Para eu entender, professor: o senhor acha que os seus termos foram adequados, corretos e equilibrados e a reação é que foi desproporcional?

Schilling — Não, eu não estou incomodado com a reação... Tu achas que eu estou incomodado com a reação a essa altura da minha...? Eu só tô dizendo que isso é a praxe. Essa é a praxe. Tu acha que isso me surpreende?

ZH — Eu acho que se o senhor foi chamado de nazista tem de se surpreender.

Schilling — Não, não, ao contrário, querido. Tu acha que a essa altura da minha vida, com tudo que eu já vi, com tudo que eu já passei, com ditadura que eu enfrentei, eu vou me assustar porque um sujeito lá escreveu que eu sou nazista?

ZH — Mas o senhor, como intelectual, tem uma posição pública. Se alguém lhe chama de nazista num debate público, essa pessoa tem de sustentar aquilo que está dizendo. Estou lhe perguntando se houve extrapolação da parte dos que lhe responderam.

Schilling — Não. Não houve. É praxe. É praxe. Em toda discussão que envolve crítica às artes plásticas contemporâneas, tu és taxado de nazista ou de stalinista. Toda. Mesmo que eu fosse suave, mesmo que eu usasse uma adjetivação mansa, a resposta seria essa.

ZH — Como é que o senhor qualifica essa adjetivação que o senhor usou? Schilling — Digamos assim, fruto da indignação de um cidadão de Porto Alegre. É um texto de uma pessoa indignada. Eu não acho que a nossa cidade mereça isso. Acho que a nossa cidade merece uma escultuária melhor. Não sei qual. Não sou artista. Né?

ZH — O senhor disse que, em matéria de arte, gosta dos impressionistas e da arte moderna.

Schilling — Certo.

ZH — Pré-arte contemporânea.

Schilling — Ou arte conceitual. Que é um gosto.

ZH — Digamos que nós sejamos vizinhos, e eu goste da arte renascentista. Como é que nós podemos chegar a um entendimento sobre o tipo de arte que tem de ser exposta na cidade?

Schilling — É, isso é uma questão difícil, mas observa que tanto o impressionismo quanto a Renascença estão mais ou menos dentro de um enquadramento comum: pintam figuras humanas, pintam paisagens. Tu pegas uma tela impressionista, tu pegas um Monet e pega um Fra Angelico, tem denominações comuns: são figurativas, são paisagens. Claro que um está mais marcado pela presença da vida santificada e outro pela vida laica, por assim dizer, mas existem certas identificações. Agora, de repente, o sujeito cria um tarugo de ferro e diz que isso é a chegada de Deus na Terra, ali ele rompe, tu entende? Esse nosso alinhamento — você simpático ao Renascimento e eu ao impressionismo —, nós temos algo em comum.

ZH — Mas o senhor conhece História da Arte e sabe que do Renascimento ao impressionismo e à arte moderna há uma ruptura muito grande. A arte moderna teve de abrir caminho frente a críticos muito mais, digamos, indignados do que o senhor.

Schilling — Eu só quero te dizer que ainda entre o impressionismo e a Renascença existem pontos, denominadores comuns que agora não existem mais. Bom, inclusive não existe mais pintura. Não existe mais escultura. Foram abolidos, né?

ZH — O senhor está reconciliando a arte renascentista com o impressionismo e a arte moderna. Para o senhor, isso tudo é parte de um mesmo movimento e de um mesmo entendimento, pode ser reconciliado e se chegar a um acordo. Mas eu posso achar que não. Posso achar que é só a arte renascentista que tem sentido.

Schilling — Tudo bem. Não vou te chamar de nazista pelo que tu estás dizendo. Não vou te chamar de reacionário nem de homossexual porque tu pensas assim.

ZH — Mas já que nós estamos falando de espaços públicos, como chegar a uma definição? O senhor diz: "Porto Alegre, cidade aprazível, povoada por gente simpática, habitada pelas mulheres mais belas do país". Como é que nós, os porto-alegrenses, mesmo aqueles que não são tão bonitos nem tão simpáticos, vamos chegar a um entendimento sobre que arte tem de ser exibida?

Schilling — A prefeitura tem órgãos, tem possibilidade de criar comissões, de aprovar ou não. Mas eu sou cético quanto a isso. Eu sou cético em relação a isso. Eu não acredito que isso aí vá funcionar. Porque a imposição desse pequeno grupo é tamanha que vamos supor que uma comissão rejeite. Desaba: "Vocês são nazistas, reacionários, burros, retrógrados".

ZH — Num concurso uns vão ser excluídos e outros selecionados.

Schilling — Sim, mas seja o que for, mas a adjetivação é terrível. A pergunta que eu faço é: como esse pequeno grupo, numa democracia, aterroriza milhares de pessoas? Milhares de pessoas. Não gostam e não podem dizer que não gostam. E se ousarem dizer que não gostam, são submetidas a uma avalanche de ofensas aterrorizadoras. Não é só eu. Qualquer um.

ZH — Algumas das obras que o senhor rejeitou no artigo foram aprovadas em concursos públicos inclusive com a presença de artistas consagrados que o senhor cita. Por exemplo, a obra de Gustavo Nackle foi aprovada num concurso que tinha, na comissão julgadora, Xico Stockinger.

Schilling — É, deve ter. Deve ser. Porque até é solidariedade de classe. Corporativo. Espírito corporativo. Ninguém quer brigar nessa área. Ninguém quer brigar. Ninguém quer levantar celeuma. O princípio é: "Ah, é genial". Tudo é genial. É criativo, o que tu vais dizer? Tu que não entendeste". Isso aqui (indica uma garrafa térmica sobre a mesa) é o ready made. Se eu boto isso aqui numa exposição não vale nada, mas vamos supor que um artista plástico ponha isso aqui: "Ah, é uma obra maravilhosa. Viram a genialidade do sujeito?". Não é? Eu não posso colocar isso porque não sou artista. Então existe todo um espírito de confraria, é natural que seja assim, um procura ajudar os outros, ninguém critica. Eu nunca vi uma crítica.

ZH — O senhor conhece algum caso de artista que tenha tido a sua obra rejeitada com base na alegação de que "isso não é arte" por alguma dessas comissões?

Schilling — Não sei. Eu não tenho intimidade com esse tipo de coisa. Nunca participei de nenhuma comissão desse tipo. Nunca soube disso. Pode ser, se é isso que tu estás levantando. Tu tens um espaço público só, deve ter 10 candidatos, nove são rejeitados.

ZH — Mas com base nesse critério de que não se trata de arte.

Schilling — Mas eu não sei. Não sei. Não sei. Não sei qual é o critério usado. Não tenho a mínima ideia. Só que é isso, quer dizer, tu vês que a cidade começa a ficar tomada por objetos absolutamente estranhos, que não dizem nada a ninguém a não ser aos críticos de arte. "Ah", num deslumbramento, "você não entendeu, você é uma pessoa reacionária, você é um assassino de judeus, não entende a profunda magnitude dessa obra". Entende? Então as pessoas ficam apavoradas. Essa é que é a verdade.

ZH — O que me intriga é que o senhor fala sempre de uma maneira generalista: "Ninguém sai da Bienal entusiasmado". Eu já vi até crianças entusiasmadas. Uma coisa é a crítica a priori que rejeita. Outra coisa é ir lá, olhar e pensar.

Schilling — Mas a minha crítica não foi à Bienal. Tanto assim que grande parte das estátuas que estão aí não eram de pessoas da Bienal. Esse desse uruguaio, aí, essa estrela... Eu só não queria aquele que parece um tarugo. Que um sujeito que está com esse negócio aí sem ter o que fazer, não vendeu ele, então deixa de doação ao município. Nesse caso...

ZH — Ele criou especialmente para aquele lugar.

Schilling — Bom, só para te falar. O Robert Hughes exatamente diz isso: a arte conceitual virou brincadeira de criança. Entrar num tubo, sair não sei o quê. Eu acho que as crianças se divertem. Mas elas também se divertem num playground. Elas se divertem num carrossel. Tu não leste a entrevista do Robert Hughes?

ZH — Acho que não.

Schilling — É, a famosa entrevista da Veja. Eu reproduzo. Basicamente, o que ele diz... O que me espanta é que isso passe em Porto Alegre por novidade. Essa entrevista já foi feita há mais de dois anos.

ZH — A da Veja? Sim, eu li. Schilling — Ele é tido como um dos maiores críticos de arte contemporâneos. E ele diz: "Olha, eu parei de escrever porque isso virou uma comercialização, um vale-tudo, nada mais significa nada e eu me nego a entrar nesse negócio". Pronto. Entende? Porque às vezes ele fazia menção a respeito de uma determinada peça qualquer de arte e aquilo disparava no mercado. E ele disse: "Eu não vou colaborar com isso. Me nego". Se negou a escrever. Podia continuar a escrever. Está com 68 anos. Por que que o maior crítico de arte, não é da Holanda, é dos Estados Unidos, ele é australiano de origem, mas... né? Peguem a entrevista dele. Eu não disse nada de mais. Essas críticas que eu fiz ao Duchamp ele também fez. Ele disse: não, o Duchamp de um lado liberou os artistas, de outro lado foi uma catástrofe. Eu acho que foi uma catástrofe. Não é Voltaire Schilling só que está dizendo.

ZH — O senhor acha que Duchamp foi referência, por exemplo, para o Monumento a Castello Branco?

Schilling — Não sei. Não sei.



ZH — Mas é só olhar. Schilling — Vem cá, num artigo de jornal...



ZH — É só olhar para ver. Schilling — Bom, não é essa questão. A questão é a seguinte, as pessoas cobram...

ZH — O senhor escreveu que era.

Schilling — As pessoas me cobram: "Por que tu não botaste tal coisa?". Outro quer: "Mas tu tinha que por a monstruosidade na arquitetura". Vem cá, mas eu estou num texto limitado. Nem sei se...

ZH — Mas esta entrevista é justamente para o senhor entrar nesses detalhes.

Schilling — "Porque tem monstruosidades na arquitetura. Porque tem não sei o quê..." É... é... Bom, não era a minha preocupação, tu entende? A minha preocupação é apenas isso, tu entende...

ZH — Mas tem uma diferença entre o senhor e Robert Hughes.

Schilling — Tem, claro. Primeiro uma diferença financeira. (Risos.)

ZH — Digo, uma diferença em relação à atitude diante da obra. Ele não está propondo empacotar o Duchamp e mandar embora. Schilling — Eu, olha, eu não sei, quer dizer, eu pelo menos tenho uma, é um tipo de reação, a reação dele foi outra, foi se refugiar numa, digamos assim, numa vida mais solitária. Talvez seja diferença de temperamentos. Eu não quero desmantelar o que existe aí. Isso aí não vai acontecer. É que há... ZH — Mas o senhor não quer porque não vai acontecer ou porque é preciso haver uma outra resposta? Schilling — Não, não é isso. Digamos assim: doravante, a minha expectativa é que as pessoas encarregadas disso tenham mais cuidado, só isso. Doravante, pensem um pouco: "Pô, mas será que isso realmente é uma coisa meritória para nossa cidade? Ela merece isso?" ZH — Ter cuidado é um conselho bastante amplo. Do ponto de vista de quem julga a obra de arte, quais seriam as principais diretrizes que consubstanciariam esse cuidado? Schilling — Não tenho condições (de responder) porque eu não sou artista. Eu só reajo: isto aqui não está bom, não está bom, não está bom. Minha reação é essa. Não é a questão nem só da feiura, é o mau gosto, tu entende? É o mau gosto. É o mau gosto. E se por trás de mim não tem ninguém, se é um ato absolutamente isolado da minha personalidade, não sei por que vocês então dão valor para isso. ZH — Nós damos valor mesmo que seja um ato isolado. Schilling — Sim, pois é, eu não estou entendendo... ZH — Nós não estamos lhe entrevistando como um deputado ou como um representante de um partido político. Schilling — Eu participei de um debate em que 80% das pessoas concordavam com a minha posição. Se nós chegássemos a uma avaliação, nós vamos ver que Porto Alegre está povoada de 800 mil nazistas, reacionários, burros e ignorantes, o que é um dado absolutamente alarmante sobre a nossa população. Pega os critérios tradicionais de defesa do que eu chamo de talibã estético que nós estamos vivendo. 80% da população de Porto Alegre é isso aí. ZH — Mas me parece que quando lhe chamaram dessa maneira, não era seu gosto que estava em discussão, mas o fato de o senhor pedir que as obras fossem despachadas. Schilling — Não. Não. Não. Não é isso. É sempre a mesma coisa. Mesmo que eu não quisesse tirar, eu te passo "n" críticas onde é sempre a mesma coisa: "o nazista, o nazista, o nazista". É a mesma coisa sempre. É o argumento de praxe. Tu invalida, tu entende? "Isso é coisa do nazismo." Eu estava dizendo: bom, então a campanha antitabagista deve ser suspensa porque foi apoiada por Hitler. Ele não gostava que fumassem. Ele queria desencadear na Alemanha uma campanha antitabagista. ZH — Mas existe uma diferença entre fumar ou não fumar e dizer que obras têm de ser despachadas. Schilling — Não, eu só quero dizer assim... ZH — O senhor disse: "Nós temos sido excessivamente tolerantes". Quando o senhor diz "nós"... Schilling — Os 80%. ZH — A palavra "tolerância" pode ser aplicada à relação entre etnias e nacionalidades. Foi muito usada ao longo do século 20. No que toca à arte, é pouco usada porque em geral artistas e críticos concordam que uma manifestação artística pode ser válida ou não, boa ou ruim, bela ou feia. Mas aquilo que está além da tolerância tem de ser descartado. Também no século 20, o que estava "além da tolerância" foi descartado, e sabemos que isso está sempre associado a experiências bastante ruins na história. Schilling — Sim, sim, sim. ZH — Essa é uma palavra sua. Eu não estou colocando na sua boca. O senhor usou "tolerância". Schilling — Sim, sim. O que eu digo "tolerância" é a ausência de crítica. Então, como não há crítica, tu vais, tu entendes, tu deixas, digamos assim, hoje a arte corresponde ao que o artista acha que é arte, a sua subjetividade. ZH — E não tem de ser assim? Schilling — Bom, agora é assim, mais do que nunca: "Eu decido o que é arte". Tu conheces o caso daquele que vendeu fezes, né? Aliás, só um italiano poderia fazer um negócio desses. O cara vendeu fezes. ZH — Era uma provocação. Schilling — Seja o que for. Andy Warhol pedia que alguns amigos dele urinassem em cima de certas telas que ele deixava no chão. Entende? Esse tipo de coisa. Então, se tu não fazes... Digo "tolerância" no sentido de ausência de crítica. Então de repente tu tens aberrações. É algo assim tipo a criança traquinas: vai fazendo, vai fazendo arte, de repente ela incendeia a casa? Por quê? Porque tu és excessivamente tolerante e conivente. Então talvez se nós exercêssemos sobre a arte conceitual... ZH — O senhor acha que os nossos artistas estão a ponto de incendiar a casa? Schilling — Não, metaforicamente, né? A partir do momento em que você não exerce nenhum tipo de crítica, você abriu a torneira da tolerância por uma série de razões, você termina de certa forma contribuindo para essa situação. De certa forma foi a contribuição que os intelectuais e os críticos fizeram: esse enorme abismo que existe entre as pessoas e a arte hoje em dia. Como é que tu explicas esse fenômeno? Todo mundo é burro, então? Todo mundo é burro? Ninguém entende, todo mundo é burro. Reacionários, canalhas, homossexuais... ZH — É o entendimento que está em jogo? Tem de entender a arte? Será que as pessoas entendem a Mona Lisa, por exemplo? Schilling — Digamos assim, ela não requer a necessidade de um enorme ensaio ou de uma bula. ZH — Mas há enormes ensaios sobre a Mona Lisa. Schilling — Sim, tudo bem, mas isso não é necessário. Não é necessário da parte do espectador que ele se informe de uma enorme literatura para se entusiasmar com a Mona Lisa. ZH — Por que o senhor acha que as grandes obras de arte suscitam permanentemente releituras, se não é necessário? Schilling — Releituras em que sentido? ZH — Releituras, estudos, interpretações. Schilling — Isso mostra a capacidade de transcendência e perenidade da arte. Essa notável capacidade que alguns grandes artistas têm de se perpetuar pelo tempo. Esse é um problema que a arte conceitual abdicou. Quando um Fídias, um Praxíteles esculpia alguma coisa, ou um Leonardo da Vinci, o cara imaginava que isso aí era uma maneira de perpetuar a ele e a sua obra. Hoje em dia não, você faz uma montagem, desmonta, vai embora... ZH — Isso é uma das maneiras de um artista rejeitar o mercado. Era o que estava na pauta dos artistas conceituais: criar uma obra efêmera. Schilling — Ao contrário, ele criou um bem de consumo descartável. ZH — Mas a obra dele não é vendida. Schilling — Bom, isso é um outro problema. Eu acho que se essa obra dele fosse comprada, dificilmente ele rejeitaria um bom par de dólares. Eu não acredito que nenhum artista profissional hoje faça algum tipo de coisa sem querer um dinheiro em troca. Não é possível. ZH — Mas os artistas conceituais que o senhor citou, nos anos 60, queriam fazer isso. Schilling — Bom, tem gente bizarra em todas as áreas. Vocês escrevem no jornal esperando salário. Eu dou minhas aulas esperando salário. E é justo. Agora, o que aconteceu nesse aspecto, voltando à questão da tolerância, foi exatamente a ausência de crítica, tu entende? Então a coisa foi indo, foi indo, e o resultado concreto é que existe um enorme abismo entre o mundo artístico de hoje, especificamente das artes plásticas, e o público em geral. Em qualquer lugar do mundo, não é aqui. ZH — O senhor usou a palavra "tolerância" e agora disse que estava se referindo à crítica. Em vez de "excesso de tolerância", teria havido "ausência de crítica". Me parece que existe uma considerável obra crítica em relação a todos os temas da nossa discussão. A própria estatuária de Porto Alegre tem estudos e livros. O que é preciso fazer, no seu entender, para que essa crítica encontre o seu ponto? Schilling — Vocês supõem a crítica no sentido como a filosofia idealista tentou, no sentido de colaborar, esclarecer. A palavra "crítica" que estou dizendo é em outro sentido. É de denúncia. É uma empulhação, tu tens de denunciar a empulhação. ZH — Tudo é empulhação? Schilling — Não, não, não é isso. Mas tem de denunciar quando é empulhação. ZH — Aquelas obras que o senhor cita são empulhação? Schilling — Eu não sei, eu não estou preocupado com isso. A minha preocupação não é essa. A minha preocupação é de ordem estética. ZH — Mas o senhor acabou de dizer que têm de ser denunciadas. Schilling — Eu não estou dizendo que essas obras são empulhação. Eu não disse isso. São simplesmente cafonas, feias, não correspondem a, digamos assim, ao que eu imagino que seja um lugar gostoso de passar e ver um bom monumento. Necessariamente não precisa ser de beleza, que tenha de ser uma Vênus de Milo, um Apolo, não é isso. Mas que de alguma forma ele tenha uma expressão estética interesssante, aceitável por todos. Ou pelo menos pela maioria. Agora eu volto a te dizer, eu sou cético. Eu acho que nós somos governados por uma tribo esotérica, que domina os jornais, que domina as revistas, que se associa a galerias, que se associa ao marketing, que se associa aos leilões estapafúrdios, e isso aí, e além do mais às coleções dos milionários. Que arte de transgressão é essa em que as principais obras de transgressão são compradas pelos milionários? As pessoas mais conservadoras do Ocidente têm seu dinheiro empregado nisso aí. E obviamente que elas não querem que alguém diga lá: "Olha, o rei está nu. O senhor comprou uma caixa de sabão Omo, não um ready made". Elas não querem saber disso. Agora, volto a insistir nessa questão: como, de que maneira, quais as condições históricas que permitiram que um grupo, essa tribo esotérica domine o universo das artes plásticas, se imponha perante a população e aterrorize a população. As pessoas se sentem aterrorizadas, com medo de comentar qualquer coisa. Elas saem de uma exposição, não gostam e não têm coragem de dizer que não gostam. Lembra um pouco, tu entende, o filme na minha época de geração, a nouvelle vague. A gente ia ao cinema e não entendia. Então tinha em Porto Alegre uns quatro ou cinco especialistas que entendiam o filme. Então aquelas pessoas eram os sacerdotes sibilinos da nossa época. Eles explicavam: "Olha, o (Jean-Luc) Godard quis dizer tal coisa". As pessoas não entendiam e ficavam absolutamente envergonhadas porque não entendiam os filmes. Então tinha que ter um especialista, um crítico de arte, um crítico de cinema que explicava ao vulgo o que aquilo queria dizer. É mais ou menos essa situação que hoje tu encontra nas artes plásticas. ZH — A nouvelle vague era uma empulhação? Schilling — Não, não estou dizendo, estou dizendo que era um tipo de proposta cinematográfica que exigia esse tipo de coisa. Tinha porcaria também. Tinha porcaria. Nem tudo que o Godard fez... Tanto é que se tu contares ao todo tem quatro ou cinco filmes do Godard que são relevantes, e o resto caiu na poeira da história. Quem é que disse que isso que está aqui em Porto Alegre é o supra-sumo, é a maravilha? Por que não se pode aventar a hipótese de que é ruim? Em nenhum momento ninguém pode pensar que a coisa não funcionou, que foi um momento de infelicidade estética da cidade. Por que não pode ser? Por que 800 mil pessoas estão erradas? ZH — Pessoalmente, posso não gostar da escultura do Gustavo Nackle, mas não acho que, por eu não gostar dela, ela tenha que ser despachada para fora da cidade. Ela pode nos dar algum ensinamento. Schilling — Ah, mas tu tens de entender a ironia, a brincadeira, a ironia... ZH — É brincadeira? Schilling — Não, não é... Bom, quem chamou de brincadeira, não sei o quê, foi o... o... ZH — O senhor chamou agora. O senhor disse que era uma brincadeira. Schilling — Eu estou dizendo... É o tom. O tom irônico, né? Tu vês que é o tom irônico. Tu achas que eu vou chefiar brigadas e... ZH — Mas o leitor desta entrevista tem de levar em consideração os termos que o senhor usa. O senhor diz que estamos sendo "aterrorizados". Meu filho de cinco anos foi à Bienal e não voltou — pelo menos perceptivelmente — aterrorizado, voltou falando das coisas que viu lá. Nosso papel nesta entrevista é permitir que o senhor esclareça, detalhe e disseque sua forma de pensar. Qual seria a maneira de essa população — "aterrorizada", para usar sua expressão — lidar com essas obras? Schilling — Em primeiro lugar, não acredito que essa obras vão desaparecer. As circunstâncias históricas em que elas foram gestadas e o apoio que os Estados Unidos dão a isso dificilmente vão fazer com que esse tipo de arte vá desaparecer. Em parte, o que aconteceu é fruto da Guerra Fria. Essa ausência de crítica aconteceu num contexto muito interessante da Guerra Fria. Não é só da Guerra Fria, já era antes, dos anos 30. Os americanos queriam fazer uma confrontação com o que estava acontecendo na Europa, especialmente na União Soviética. Tu observa que o MoMA (Museu de Arte Moderno de Nova York) é inaugurado nos anos 30 exatamente quando Hitler chega ao poder e decreta o fim da arte expressionista na Alemanha. Em 1934, Stalin decreta com seu ministro da Cultura, Zhdanov (Andrei Zhdanov só foi encarregado da política cultural na União Soviética em 1946), o realismo socialista. Essa tolerância que surgiu nos Estados Unidos com a criação artística — faça o que quiser, imagine qualquer tipo de possibilidade criativa — estava estreitamente vinculada ao combate da Guerra Fria — ao nazismo e, depois, ao comunismo. Tanto é que a CIA organizou expedições artísticas ao largo da Europa para exatamente fazerem isso: "Reparem como os artistas americanos têm absoluta liberdade enquanto os soviéticos estão submetidos ao dirigismo, às exigências de um Estado totalitário". Então essa é a origem histórica e sociológica dessa história toda. ZH — O senhor está se referindo ao expressionismo abstrato. Schilling — Isso, e tudo que veio depois. A arte conceitual é derivada do Marcel Duchamp. ZH — Mas o exemplo que o senhor estava dando era claramente o do expressionismo abstrato americano. O crítico era Greenberg, os artistas eram Pollock, De Kooning e outros. Isso faz com que se tenha de rejeitar todos os artistas expressionistas abstratos? Schilling — Não. As qualidades do Pollock são inquestionáveis. Eu nem teria qualificação para desqualificar aquilo que é quase uma unanimidade dentro da arte moderna que é a arte do Pollock. Só estou dizendo de onde vem a tolerância. A tolerância vem exatamente disso: a posição que os Estados Unidos marcaram no sentido de dizer que "a nossa terra é a terra da liberdade, os nossos artistas fazem o que quiserem, não há tipo de censura nenhuma". Esse tipo de arte foi apoiado pelos magnatas americanos. O MoMA foi fundado pela família Rockefeller. Há um claro interesse de que esse tipo de arte corresponda aos anseios de liberdade defendidos pelo Ocidente no seu enfrentamento com o mundo comunista. ZH — Mas, no mundo comunista, os artistas que tentavam fazer alguma coisa parecida estavam a serviço de quem? Foram ferozmente reprimidos e mandados para campos de concentração. Schilling — Não. Não. Não. Não é bem isso. Não digo que eles tenham sido... Até aqueles que pintavam de maneira equivocada no realismo socialista também foram perseguidos. Mas agora tu tens de ver que há uma interpenetração da arte. Agora, por exemplo, há instalações na Rússia... ZH — Mas o senhor atribui a origem desse momento da arte contemporânea a um objetivo político da elite americana. Na União Soviética, o único país comunista nos anos 30, havia artistas em todos os campos que faziam um outro tipo de arte. Maiakovski, que se suicidou em 1930 por razões também estéticas, tinha algum tipo de associação com os magnatas de Nova York? Schilling — Não, não. É que de alguma forma há uma interpenetração. A própria arte dos anos 30 também foi influenciada no Ocidente pelo realismo socialista, em geral com pintores comunistas. Na Alemanha, tu tens a Kathe Köllwitz, uma figura significativa. Os muralistas mexicanos eram todos integrantes de variantes do Partido Comunista. Há uma interpenetração. O que eu quero te dizer é qual pode ser a provável origem dessa excessiva tolerância. Era uma posição claramente ideológica. O nosso artista, nos Estados Unidos, faz o que lhe vem na telha e ninguém tem de se opor. ZH — O senhor não acha isso positivo? Não é positivo que os artistas possam fazer aquilo que lhes dá na telha? Schilling — É. Isso. Agora vem um outro problema... ZH — Hoje, por exemplo, em Cuba, no Vietnã, na Coreia do Norte, na China, entre outros países, os artistas não podem fazer aquilo que lhes dá na telha. Schilling — É. Isso. Bom. Vamos ver agora outra questão. Por que se gerou esse universo enorme de coisas sem sentido? Aí vem um outro problema, que é o descolamento dos artistas daquilo que se chamava grande arte. Se tu olhares ao longo dos 3 ou 4 mil anos da cultura ocidental, o artista exercia o seu metier em função de alguma grandeza. O Partenon, por exemplo, tinha a função de exaltar a cidade e a deusa da cidade. O artista não está criando por si, ele simplesmente está a serviço de uma força maior. E assim você vai ver que os artistas sempre estavam a serviço ou do Estado, ou da Igreja. E depois também a existência de uma nobreza refinada na Europa. Então tu tens realmente uma sustentação. O artista era chamado, o mecenas dizia: "Tu vais fazer isto, isto e isto". Ele usava a criatividade dele em função da visão grandiosa que o mecenas passava para ele. A Eneida do Virgílio foi um projeto feito pelo próprio mecenas, a mando do Augusto: você tem de criar alguma coisa grande do nosso passado romano que não seja "nós, filhos da loba". Por exemplo, Versalhes: é um palácio maravilhoso, uma decoração fantástica. De onde saiu aquilo? Da exigência da monarquia absolutista de Luís XIV. Agora você vê hoje em dia o que está acontecendo. Não existem mais essas forças, foram dissolvidas na era moderna. Não existe mais o Estado absolutista, não existe mais a Igreja com o poder que exerceu na Idade Média, e não existe mais a nobreza, que foi substituída pelo empresariado, pela burguesia, pela classe média. Tu tens hoje o artista isolado — ele, entregue a sua própria subjetividade. Ele já não representa grandeza nenhuma, ele representa apenas a sua subjetividade. ZH — Isso é ruim? Schilling — Não, não estou dizendo que é ruim ou não. Mas o que interessa a subjetividade dessas pessoas? ZH — Não interessa? Schilling — Não. A quem interessa e por que interessa? ZH — E o senhor, o que representa se não a sua subjetividade? Schilling — Olha, de alguma maneira... Tu estás fazendo referência ao meu artigo? ZH — Não, me refiro ao seu papel como intelectual. Schilling — Olha, de alguma maneira, eu, eu, digamos, fui no meu artigo o intérprete dessa insatisfação que existe na nossa cidade. Não sei em outras. Mas aqui, pela repercussão que teve, eu fui intérprete involuntário disso. Então, nesse caso específico, a minha subjetividade se articulou com o mal-estar coletivo das pessoas em relação ao que se passa na nossa cidade especificamente — não estou falando da Bienal — especificamente a estatuária e a escultuária de nossa cidade, especificamente aqueles que foram citados por mim. Só isso. Então eu fui intérprete. Isso pode acontecer. Às vezes você escreve alguma coisa e provoca... ZH — Então a subjetividade de alguém pode interessar aos outros. Schilling — Pode, sim. Pode. Mas isso não é... Agora também é o seguinte: pode não provocar nada. Pode também provocar desinteresse. ZH — Mas pode provocar interesse. Schilling — Pode. Pode. ZH — Quando Rilke escreve, é a subjetividade dele que está em questão. Schilling — Isso. Tudo bem. Tem coisas que tu consegues transformar a tua subjetividade em uma grande arte. Mas isso cabe aos grandes artistas, e não a todos, né? Não são todos os poetas que colocam a sua subjetividade e conseguem a consagração. ZH — Mas o poeta tem o direito de buscar a conexão com o gosto e com o público. Schilling — Não tem dúvida. Não tem dúvida. Ele tem o direito de fazer o que quiser. A priori, todos nós temos o direito de fazermos o que quisermos. Só que eu digo: grande parte dessa subjetividade, na verdade, fracassa. Como grande parte da poesia e da novelística não se sustenta ao longo da história. ZH — Mas o tempo vai selecionando. Schilling — É. Isso mesmo. ZH — Na época de Leonardo e Michelangelo havia outros pintores. Schilling — É. Agora o grande problema... Agora aí vem esse tipo de argumento: sou obrigado, sob o ponto de partida de que eu não estou entendendo as coisas agora, a aceitar tudo que vem porque todos eles se consagrarão. ZH — Há artistas ruins. E há renascentistas ruins. Schilling — Pois é. E por que não se aceita que Porto Alegre tenha cinco ou seis monumentos ruins, feios? Qual é o problema? Por que tem de fazer uma tragédia disso? Tem que doutores escreverem, chamarem de nazista, porque tem cinco ou seis monumentos na cidade que são feios? Porque eu acho aquela casa monstro um pavor? Então pode ter sido a subjetividade daquele artista. Que, para mim, fracassou. Para mim e para muita gente. E para os 800 mil neonazistas que esta cidade abriga. ZH — Para algumas pessoas deu certo. Schilling — Pode ser. Para os 20%. ZH — Zero Hora entrevistou um sargento da Brigada que presta serviço de guarda na entrada do Comando Geral bem em frente a essa obra. Ele fica todos os dias olhando para aquilo, seis horas por dia. Ele gostou da obra e diz que as pessoas que passam por lá param, tiram fotografias, comentam e admiram... Schilling — Tudo bem. Há gosto por bizarrice. As pessoas não vão ver a mulher barbada no circo? Tem tudo, tem de tudo. A bizarrice atrai. Um corpo de um atropelado na rua junta gente para olhar. Põem velinha, põem jornal. É a bizarrice humana. Não tem nada a ver com arte. ZH — Mas a arte sempre namorou o grotesco. Schilling — Sim. E tem coisas do grotesco que são extraordinárias. Esteticamente extremamente relevantes. Não existem, de fato, assim, regras definitivas. Eu posso pintar uma megera e ter um impacto estético extraordinário. Posso pintar uma mulher belíssima e ser um fracasso estético. Mas eu posso pintar até uma cena... Cenas de batalha, por exemplo, as pessoas morrendo. Tem uma tela do Gros famosa, o Napoleão lá em cima, os soldados morrendo. É uma coisa impressionante, os soldados ali, estraçalhados pelas bombas, é uma cena horrível. Mas esteticamente impressionante. Então não é um regra assim tão estreita, que eu só tenha de pintar o belo. Não é bem assim. A coisa é bem mais complicada. Então não significa necessariamente um retorno ao realismo socialista ou coisa desse gênero. Agora, volto a te dizer: acho que enquanto existir essa posição dos Estados Unidos, não haverá alterações, isso aí vai continuar existindo. A força da tribo esotérica é poderosíssima. Ela se encontra na imprensa, na mídia, nas galerias. É formada pelos grandes bancos, pelas grandes fortunas, pelos grandes colecionadores. Só havendo um outro momento histórico, daqui a cem, 150 anos, aí talvez mude. Não sei para que lado. Como tudo muda, né? Mas no momento não há a mínima perspectiva de que possa haver alguma alteração. Quando fizermos de novo outra Bienal aqui ou a de São Paulo, vai ser a mesma coisa: a estética do vazio, mesma coisa. Porque a situação histórica não se alterou. Os Estados Unidos continuam como potência dominante. O individualismo é extremamente enfatizado pelo neoliberalismo. Essas coisas vão continuar existindo. Não vai desaparecer. Vai continuar. Não tem a mínima possibilidade de surgir um regime tirânico, que vai impor censura. Nada disso assinala no horizonte. É uma onda que começou especialmente na II Guerra Mundial e vai indo, vai se espalhando, até haver alguma reação. Não sei que tipo de reação futura. Provavelmente nem vai ter mais pintores nem escultores, porque não precisa mais. Por outro lado há de fato, sim, um certo lamento da minha parte. ZH — E uma nostalgia, não? Schilling — No seguinte sentido: o enorme acervo técnico de qualificação de pintores e escultores vai ser posto fora. Há quantos mil anos o Ocidente começou a fazer escultura? Tudo isso está se perdendo. Um sujeito escreveu para nós assim: "Olha, eu recebi encomenda de fazer cinco caixotes de madeira. Depois eu soube com surpresa que estavam ali empilhados no Cais do Porto como obra de arte". Esses ambientes artísticos estão sendo substituídos por marceneiros, por pedreiros. Não por artistas. Há uma nostalgia? Há, sim.ZERO HORA
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Comentários
Robertson Frizero -
Denuncie este comentário08/12/2009 09:58
Os entrevistadores nitidamente são contrários a Voltaire Schilling, e ler a entrevista na íntegra me faz pensar que o historiador não foi entrevistado, mas interrogado. No final, ficou-me a impressão de que os entrevistadores foram à casa de Schilling para se vingar, para tirar a desforra em nome de seus amigos da arte contemporânea contra o articulista que ousou falar mal da Bienal do Mercosul e de empulhações afins. A questão é saber se a população concorda com a dinheirama pública gasta ali.
Giovani Andreoli - Há momentos da entrevista onde se percebe claramente a hesitação de Schiling. Isso, ao meu ver, denota duas coisas: primeiro, que ele não estava preparado para um embate teórico neste assunto, e sim apenas expressando uma opinião muito pessoal, levando-o a assumir uma postura defensiva, por vezes confusa; segundo, que o entrevistador assumiu uma postura não de "eficiência", e sim de aberta agressão, recorrendo às vezes a argumentos (disfarçados de perguntas capiciosas) lineares, tautológicos.


segunda-feira, 8 de março de 2010

DOSSIE VOLTAIRE SCHILLING VI - GUNTER AXT REFORÇA CRISE NA CULTURA

08 de março de 2010 N°

ENTREVISTA
Sufoco no deserto



A inopinada e indigna forma como se deu a demissão do professor Voltaire Schilling do Memorial do Rio Grande do Sul pode, ao gerar onda de indignação, ter ajudado a destampar a panela onde se cozinhava em fogo lento a apatia dos gestores da cultura e intelectuais gaúchos.Não é de agora que a Secretaria de Estado da Cultura vem servindo de moeda de troca no jogo político e abrigo para políticos de entremez. Quando se trata de Cultura, partidos da base aliada fazem da política um fim em si mesmo e escarnecem do interesse coletivo. Isso num Estado com arraigada tradição cultural como o Rio Grande do Sul.



O outrora produtivo Instituto Estadual do Livro colapsou: está há três anos sem publicar um título. A TVE vem sendo tratada como filho enjeitado. As obras do Multipalco do Theatro São Pedro se arrastam a passos de cágado. A Ospa é um pálido espectro perto da Osesp – agoniza em modorrenta rotina de província e continua sem ver o início das obras de sua tão sonhada sede. Nossos museus, arquivos e casas de cultura vivem à míngua. Há anos não se ouve nenhuma palavra concreta sobre a construção de uma nova Biblioteca Pública, de porte.



Nenhum projeto para um novo museu de arte moderna ou contemporânea. Nenhuma estratégia sólida capaz de atrair recursos de fora. Nada de consistente que ajude a levar a cultura aqui produzida para o mundo. Não se prevê nenhum prédio de arquitetura icônica. O corpo funcional está mal-remunerado e é em número insuficiente para as necessidades mais elementares. A LIC-RS vive em permanente impasse.Não há elaboração intelectual. Não há bons projetos.



Nem mesmo aqueles que poderiam ser conduzidos com simples parcerias, com aporte insignificante de recursos, como melhorar o conteúdo dos sites, firmar convênios com a Secretaria da Educação para ampliar a frequência nos museus, na Cinemateca Paulo Amorim. Sufocamos num deserto, na platitude.Todo o modelo de gestão está superado. As instituições culturais não têm orçamento próprio, não conseguem planejar o futuro, programar-se conforme suas necessidades. Não dispomos de fundos de endowment para independentizá-las de veleidades, imediatismos ou necessidades cotidianas. Seus dirigentes não têm autonomia e são colhidos pela indigência da lógica política, como mostra bem a demissão de Voltaire, ou do apadrinhamento de interesses.



Não há planos, mandatos, prestação de contas, balanços de realizações e de responsabilidade social. Mesmo com a legislação de fundações e Oscips, persistimos nas fórmulas das associações de amigos e das fundações atreladas ao governo.Notem que o Theatro São Pedro, a nossa joia em termos de gestão cultural, sobretudo pela personalidade empreendedora de Eva Sopher, logrou razoável autonomia. É seguido pelo Margs, que graças à relevância de seu acervo tem recebido importantes apoios do empresariado, é amparado por um bom conselho e vem sendo prestigiado com administrações eficazes. São exemplos a serem emulados e empoderados. Mas funcionam como exceções que confirmam a regra.



No mundo inteiro, celebra-se o poder transformador da cadeia criativa, formada por teatro, música, artes visuais, patrimônio histórico, cinema e vídeo, televisão, rádio, mercado editorial, jornais e revistas, software e computação, arquitetura, moda, design e publicidade. Um setor que pode contribuir para formar cidadãos mais críticos, para melhorar a vida das pessoas, combatendo até mesmo chagas como a violência. Você duvida? Em plena crise global, Hollywood se sai bem com sequência de produções com grandes orçamentos e aumento de 3% na aquisição de ingressos nos Estados Unidos, apesar da dura competição dos DVDs e do download ilegal via internet.



Em Nova York, a Filarmônica vendeu 91% dos assentos disponíveis na última temporada. O Metropolitan Opera arrecadou a soma recorde de US$ 2,5 milhões em ingressos apenas no primeiro dia de bilheteria.Sempre digo não existir governo democrático 100% bom ou ruim. O governo Yeda, que pode se mostrar operante e criativo em outros setores, aprofundou uma crise já existente na Cultura. A atual administração, anódina, carente da formulação de políticas específicas, nos empurrou para a pior crise de gestão cultural de nossa história. Só não é ainda mais grave porque algumas iniciativas privadas e administrações municipais vêm ocupando em parte o vazio. Mas todos estaríamos em melhor situação se pudéssemos contar com o governo do Estado.Por que estamos pagando este preço?*Historiador, doutor em História pela USP, organizador de “As Guerras dos Gaúchos” (Ed. Nova Prova, 2008)GUNTER AXT*

DOSSIE VOLTAIRE SCHILLING V :APPEL REFORÇA CRISE DA CULTURA

08 de março de 2010 N° 16268

ENTREVISTA
Um Norte para a Cultura
Gestor responsável pela criação da LIC-RS, primeiro Secretário de Estado da Cultura, Carlos Appel comenta a crise na pasta

Carlos Jorge Appel é a maior referência entre aqueles que já ocuparam o cargo de secretário da Cultura no Rio Grande do Sul. Sua primeira gestão, no governo Pedro Simon (1987 – 1990), congregou toda a comu­nidade cultural após um período obscuro para a produção artística. Mais de 20 anos depois, o questio­namento de grande parte dessa comunidade volta à raiz da questão: qual a importância da pasta para o Estado?Natural de Brusque (SC), Appel é autor de livros de poesia e ensaio, foi professor da UFRGS e crítico literário e hoje dirige a Editora Movimento. Na entrevista a seguir, o ex-secretário fala sobre a crise atual.

Zero Hora – Que diretrizes devem nortear a elaboração de uma política cultural pública num Estado como o Rio Grande do Sul?

Carlos Jorge Appel – Qualquer projeto de gestão cultural deve respeitar premissas básicas e levar em conta o contexto em que se está. Não se pode assumir a Sedac sem se conhecer as dificuldades e as potencialidades da cultura no Rio Grande do Sul. Falo de detalhes desse contexto, porque toda a rede em torno da secretaria é muito grande – são mais de 30 instituições, todas muito diferentes entre si. Também é fundamental se saber qual o papel da pasta no projeto do Estado como um todo. Ainda que não seja prioritária, e que tenha o orçamento mais baixo entre as secretarias, a Cultura precisa ajudar o Estado a pensar suas finalidades e seus princípios. Cabe à Cultura, por meio de projetos convergentes com outras pastas e até instituições municipais e federais, iluminar o Estado, refletir sobre sua condição, dizer quem é e em que situação se encontra.

ZH – A atual secretária, Mônica Leal, justifica a crise afirmando que precisou primeiro “arrumar a casa”, referindo-se à situação financeira em que encontrou a Sedac. Isso o que o senhor diz seria algo para se fazer num segundo momento?

Appel – É lógico que é preciso primeiro deixar a secretaria em condições para se poder trabalhar: organizar suas operações financeiras, conhecer suas instituições e o que é preciso para que funcionem. Essa é uma premissa inicial, assim como estabelecer parcerias pelo Estado e fora dele, para que, a partir daí, se possa de fato trabalhar. A experiência que tive indica que também é fundamental ouvir a comunidade cultural – foi a partir dessas reivindicações que criamos a Lei de Incentivo à Cultura – LIC-RS (na gestão entre 1995 e 1996, no governo Antônio Britto) e, antes, a Sedac (entre 1987 e 1990, no governo Simon). Mas há outro lado: não faz sentido deixar a casa em ordem se não se dá um passo adiante no sentido de fazê-la funcionar com projetos de qualidade, assim não adianta ter um orçamento maior e não ter projetos que o justifiquem.

ZH – Esta pergunta serve tanto para a Sedac quanto para a LIC-RS. Muita coisa mudou desde a criação tanto da secretaria quanto do principal mecanismo de financiamento dos projetos culturais do Estado. A forma com que ambos se apresentam e a função que cumprem, hoje, determina que se pense em readequações estruturais?

Appel – A LIC criada há 15 anos foi a lei possível de ser criada. Acredito que esteja na hora de ser reavaliada de maneira profunda. Houve problemas nos últimos anos, com denúncias de fraude, déficit muito alto, confronto da Sedac com Conselho Estadual da Cultura etc. A atual secretária teve dificuldades para lidar com o mecanismo, saná-lo. Sua gestão sofreu por conta disso. Ela teve de dedicar tempo e energia que poderiam ter sido usados em ações que atendessem mais os anseios da comunidade cultural.

ZH – Mas agora a LIC já está reorganizada. O problema não passou?

Appel – O trabalho nesse sentido foi bom, mas o fato de ter havido tantos problemas talvez signifique algo. De qualquer forma, me parece ser hora de uma grande união. O próximo gestor tem de chamar a comunidade cultural, ouvi-la e saber se peças-chave da engrenagem, como a lei de incentivo, estão funcionando a contento. Se a resposta no caso da LIC for positiva, ótimo. Porém, dada a situação atual, acho fundamental que esse chamamento seja feito. É preciso lembrar que, diferentemente de 1995, quando a LIC-RS foi criada, hoje há fundos e outros mecanismos de incentivo municipais. Há mais alternativas para quem produz cultura. Faz-se necessário perguntar: qual o papel da LIC nesse novo contexto? Defendo a realização de um grande encontro estadual para discutir questões como esta.

ZH – O senhor parece estar acompanhando bem de perto a gestão da cultura no Estado.

Appel – As pessoas vêm falar comigo sobre a Sedac, isso é constante. Também mantenho amigos de áreas mais técnicas com os quais falo sobre as possibilidades da Cultura. Mas é preciso tomar cuidado com avaliações radicais. Sei o quanto é difícil de trabalhar na área, o quanto os agentes culturais gostam de discutir e o quanto é complicado promover articulações entre eles. Mas quem assume o cargo tem de saber quais são essas complicações. Quando esses agentes são ouvidos, as necessidades da área são estudadas e a partir disso se estabelecem focos precisos, as ações se tornam lógicas, coerentes. E bons projetos superam as adversidades. Quem paga a conta, tendo sensibilidade, não resiste a bons projetos.

Zero Hora – Quais, na sua opinião, deveriam ser as prioridades na gestão da Secretaria de Estado da Cultura hoje?

Carlos Jorge Appel – Entre outras coisas, eu diria que deveríamos trabalhar numa aproximação do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Estadual (Iphae) com o Nacional (Iphan), para que as ações de ambos se tornem convergentes – algo que não sei se está acontecendo. Cada um parece trabalhar olhando para um lado quando, no fim das contas, seus projetos vão na mesma direção, visam aos mesmos objetivos e são sentidos nos mesmos locais. Também acho que é urgente pensar em uma nova Biblioteca Pública. Esta, para mim, deveria ser a grande proposição para o próximo gestor da Sedac. Se a secretaria, como se tem sugerido, está longe das nossas prioridades, vamos ficar parados? É tarefa do poder público virar o jogo, dando, por exemplo, um palco nobre para os livros, mostrando para essas pessoas a importância dos livros. Em qualquer lugar, a Biblioteca Pública deve ser um cartão de visitas. E a nossa me parece que perdeu um pouco a condição de referência para a sociedade. Não à toa – ela foi criada na época em que Porto Alegre tinha 250 mil habitantes.

ZH – Ela está defasada?

Appel – Talvez ela esteja um pouco distante das pessoas. Fazer essa aproximação pode ser algo interessante para mostrar o valor da cultura à população. “A preocupação que uma sociedade tem para com os livros (lendo texto que ele próprio escreveu, em material produzido sobre a biblioteca em uma de suas gestões à frente da Sedac) espelha o seu nível econômico, social, político e cultural. Por isso, a Biblioteca Pública é uma espécie de livro transparente, que mostra a alma da cidade e das pessoas que nela vivem.” Não é preciso ir além da América Latina, eu diria que não é preciso sair do Brasil para constatar como uma Biblioteca Pública pode ser qualificada, organizada e mais valorizada pelo governo, e o quanto isso é importante no processo civilizatório e no aumento do nível não só cultural, mas social, político, econômico de um lugar.

ZH – Quais as outras medidas que o senhor sugere aos próximos gestores?

Appel – O Rio Grande do Sul precisa voltar a pensar seu papel no contexto nacional. Não faz muito, o Estado assumiu por duas vezes a presidência do fórum nacional dos secretários da Cultura, o que permitiu que chegássemos mais perto do ministro da área, propondo projetos mais importantes e parcerias mais amplas. Em outras palavras, assumindo uma participação politicamente mais ambiciosa no contexto do país. A reforma do Margs, procedida nos anos 1990 e que deu condições ao museu de crescer tanto quanto se pôde ver nos anos subsequentes, foi realizada a partir de uma parceria com o Ministério da Cultura proposta pelo Estado. Outra necessidade urgente para o Rio Grande do Sul é buscar uma maior continuidade dos projetos implementados em gestões anteriores. A persistência de grandes eventos como a Bienal do Mercosul deve servir de exemplo, assim como festivais de importância fundamental em sua área específica, a exemplo do Festival Internacional de Teatro de Bonecos de Canela. Se alguns projetos têm problemas ou precisam de algumas modificações, sugiro refletir se é melhor mesmo extingui-los em vez de aperfeiçoá-los. Só com continuidade se alcançam resultados tão expressivos como os alcançados por essas duas mostras.

DANIEL FEIX
Multimídia

sábado, 6 de março de 2010

DOSSIE VOLTAIRE SCHILLING IV A Cultura da Secretaria da Cultura

“Não existe nada pior que alguém querendo fazer o bem, especialmente o bem aos outros” Michel Maffesoli, La part du diable, Flammarion, 2002

No último sábado (06/03) a Secretária de Cultura do Estado em entrevista ao Caderno de Cultura de Zero Hora, respondeu as críticas que vem recebendo do meio cultural desde que Luis Paulo Vasconcellos publicou seu provocativo artigo “Desde quando faxina é cultura?”, no mesmo suplemento. A conclusão é simples: como Secretária de Cultura, Mônica Leal é uma ótima Secretária da Fazenda. Defende como foco principal de sua gestão o saneamento das finanças da secretaria da cultura. E apresenta a política cultural que idealiza: “uma política cultural acessível às diversas camadas sociais e aos diversos segmentos sociais”. Prezada Secretária: a senhora poderia ser um pouco mais específica?

A questão colocada por Daniel Feix “Para onde vai a Sedac”? é originada de dois fatos básicos: o fechamento da Sala de Cinema Norberto Lubisco e a demissão do historiador Voltaire Schilling da direção do Memorial do Rio Grande do Sul. Os fatos acirraram o contexto de crítica da comunidade cultural a política desenvolvida na pasta, que não é reconhecida como politica cultural por integrantes do sistema da cultura. É o fato óbvio: o sistema da cultura se mantém de pé graças as equipes de trabalho que tem sobrevivido e mantido de pé todos os órgãos da pasta, a mingua dos recursos estabelecidos pela secretária. Acostumados a sobreviver no deserto de recursos em que se transformou a área cultural em nosso estado, Mônica Leal teve liberdade para executar seu ajuste fiscal a risca, mas esqueceu o fato de que o Plano de Governo Yeda
[1] também afirmava que seu objetivo era de reequipar os órgãos da cultura. Ora, se as ações de redução de gastos são reivindicados como uma das ações principais promovidas pela Secretáriaj, fica impossivel pensar que os equpamentos como o Memorial do Rio Grande do Sul, fossem objeto de investimento, e não o foram. Quer dizer, na prática, fez-se justamente o contrário do que o proposto pelo Plano de Governo.

O fato da resposta da Secretária apontar realizações de sua gestão no plano fiscal não responde a questão fundamental formulada por Daniel Feix e que ainda está de pé: às vésperas de entregar o cargo para concorrer as eleições, qual é de fato a política cultural da Secretaria da Cultura? Passados já tantos meses é natural que as criticas surjam no cenário cultural. O problema é que elas são agravadas pela tomada de decisões equivocadas e fechamentos de espaços culturais. Ora, de fato o contexto de critica já é a própria avaliação pública das ações da pasta, o que é o ônus de ser governo. Isto não pode ser feito a partir do senso comum, ou da opinião em geral, mas a partir das contribuições da Polícy Cycle Approach, ou “Abordagem do Ciclo de Políticas”, formulada inicialmente por Stephen Ball
[2] e colaboradores, marco teórico onde acreditamos seja possível realizar a avaliação da trajetória da ação cultural no Governo Yeda e consequência do balanço que Feix se propôs a iniciar.

Para Ball são três os contextos ou arenas políticas que devem ser consideradas para avaliar as políticas públicas: o “contexto de influência”, onde atuam as redes culturais em torno dos partidos e onde nasce o discurso de base da ação política; o “contexto da produção do texto” onde estão os textos políticos legais, oficiais ou pronunciamentos, produtos de disputas e acordos e que revelam o quanto a política pública é uma intervenção textual; e o “contexto da prática”, aquele onde as políticas não são apenas concretizadas, mas também interpretadas e sujeitas às interpretações. Diz Ball “Políticas serão interpretadas diferentemente uma vez que histórias, experiências, valores, propósitos e interesses são diversos. A questão é que os autores dos textos políticos não podem controlar os significados de seus textos. Partes podem ser rejeitadas, selecionadas, ignoradas, deliberadamente mal entendidas, réplicas podem ser superficiais, etc. Além disso, interpretação é uma questão de disputa”

Para Ball as formas como os dirigentes conduzem suas ações na formulação de políticas públicas está diretamente relacionado com estes três contextos. Sendo assim, como poderíamos caracterizar a política atual da Secretaria da Cultura a partir dos contextos em que se desenvolve? No contexto de influência, observa-se a pouca participação das redes culturais ao redor dos partidos no governo. O Partido Progressista, da Secretária, possui mais ação no campo da juventude do que na cultura. A trajetória do PSDB-RS e de Yeda Crusius
[3] trazem poucas referências a participação de entidades culturais na formulação do projeto de governo para a cultura. A Secretária, por outro lado, quando vereadora teve a louvável organização de um seminário sobre museus militares no legislativo, mas no cargo de secretária, por força legal, rompeu com a Associação de Amigos da Cinemateca Paulo Amorin. De fato, salvo melhor juízo, os avanços que a pasta conquistou devem-se mais a iniciativa de suas equipes em participar de seleções nacionais de fomento à projetos - como o Petrobrás Cultural - de onde retiram recursos para a inovação em cultura do que das iniciativas da Secretária para ampliar os recursos de sua pasta no governo Yeda.

Com relação ao contexto de “produção de textos” também fica evidente o descaso com a cultura. O modelo de gestão do governo Yeda Crusius
[4] apenas cita a Secretaria de Cultura; também não encontram-se discursos políticos da Secretária da Cultura na página do Governo – que perde ali de 10 a 0 para a ex- secretaria da Educação Marisa Abreu, uma presença constante e a verdadeira “menina dos olhos” do Governo Yeda, que fez a educação tema de vários discursos. Entre os 341 discursos, não há um único pronunciado por Mônica Leal. Os seis únicos discursos da Secretária da Cultura estão disponíveis na página do SEDAC e tratam de temas diversos: gestão e inclusão, Festival de Gramado, preservação da memória, Mário Quintana, Tradicionalismo e Cultura. Para se ter uma idéia, a governadora possui 44 artigos publicados e 248 discursos políticos publicados que, excetuando-se os artigos sobre Oswaldo Aranha ou os discursos sobre o a Revolução Farroupilha, pouco ou quase nada revelam sobre de defesa da questão cultural em nosso estado.

Especificamente quanto ao “contexto da prática” como podemos resumir as interpretações que vem sendo desenhadas sobre as ações de cultura da Secretária? Primeiro é a crítica a adoção do estilo liberal, percebido naqueles equipamentos e setores onde a cultura se identifica a belas artes, considerada em sua distância da cultura popular. Ela tem atrás de si a idéia de arte como privilégio de uma elite escolarizada. A promoção da vinda de grandes obras de arte insere-se neste contexto. Segundo é a indicação dos traços do estado autoritário que possui, aquele em que o Estado se apresenta como o produtor oficial da cultura e selecionador da produção cultural da sociedade civil. Ela pode ser vista na promoção de eventos culturais no litoral ou na programação de inverno da Secretaria. A demissão de Voltaire Schilling insere-se no nó gordio da Secretaria: coordenando um equipamento com potencial de grandes eventos, Schilling tinha como política a formação de publico consumidor de cultura através de seus Cadernos. Uma política de base, discreta, e não de grandes eventos. A insatisfação da Secretária dá-se justamente pelo fato de que a formação de público não é política de Estado. O que, subliminarmente, sugere que a política de estado seja simplesmente, aquela que dê mídia. Entramos no campo da simulação das políticas públicas de cultura, onde a produção do espetáculo é considerada superior a produção da realidade cultural.

O terceiro é a indicação dos traços da cultura populista, aquela que manipula uma abstração denominada cultura popular como ícone do estado, ao associar a produção cultural do povo gaúcho exclusivamente ao tradicionalismo ou a valorização da Revolução Farroupilha, sem considerar o campo da identidade local e das culturas marginais. Finalmente, é a crítica a defesa de uma política neoliberal no âmbito da cultura, que identifica o universo da cultura a eventos para as massas, cuja principal característica é a produção cultural efêmera (centenas de eventos) sem permanências nas culturas locais. De reboque, é a critica a intenção de privatizar instituições culturais, o que significa alienar-se de sua responsabilidade – a manutenção do sistema cultural do estado – através da reforma da LIC e da implementação da FAC – Fundo de Apoio a Cultura.

Mas o contexto das práticas também inclui alterações de sentido que devem ser consideradas para sua definição. É o que emerge da questão se a cultura deve ou não se “meter” em problemas sociais. Em outro momento, Mônica Leal assinalou que, as propostas da cultura estavam inseridas nos Programas Estruturantes por que eram colaboradoras dos processos de inclusão. A questão está mal formulada porque há um erro conceitual. O problema é aqui o emprego equivocado do termo Inclusão, que a rigor, deve ser utilizado preferencialmente para em processos de ensino para o atendimento de alunos com necessidades educacionais especiais, conforme a Declaração de Salamanca de 1994
[5]. Inclusão é o principio que defende que a escola deve atender a todas as crianças, inclusive as com deficiências ou superdotadas, com uma pedagogia especial. O motor da crítica de Vasconcellos ao caráter paliativo da proposta de política cultural de inclusão, é ao final, a constatação da transferência indevida de um conceito do sistema pedagógico para o âmbito do sistema da cultura.[6]

O que significa esta operação conceitual elaborada pela Secretária da Cultura? Há um livro Slavoj Zizek intitulado "The Parallax View”
[7]onde o autor define como o uso de uma perspectiva de paralaxe como aquela que produz o deslocamento ilusório de um objeto provocada por uma mudança na posição de observação. É portanto, no campo do artifício – como aponta Vasconcellos – que a chamada “política de inclusão pela cultura” se localiza. Ora, não há a rigor nada de errado com o fato de que a Secretária repute como fundamental para sua gestão que suas ações no sistema da cultura visem colaborar com outras iniciativas, inclusive da educação, como no combate à violência. Não duvidamos de que provavelmente são bem vindas para os beneficiados por tais ações. O problema é chamar de política de estado de cultura aquilo que pode ser apenas compreendido como função de subordinação da pasta da cultura à pasta da educação e assistência social.

Já chamamos a atenção da Secretária para os seus riscos ao assumir uma posição subalterna na direção da ação cultural nos Projetos Estruturantes do governo do estado (Cultura faz falta, sim senhora! Zero Hora, 24/5/2008 e Programa Camarote TVCOM, 11/06/2008). Entendemos que a Secretária da Cultura, munida das melhores intenções e tentando mostrar serviço, ao fazer a defesa de uma suposta política de inclusão em sua área, terminou por dar um “tiro no pé”, provocando aquilo que Zizek designou de "parallax gap" (um hiato, uma lacuna de paralaxe), ou seja, no espaço que separa duas políticas entre as quais não existe qualquer mediação possível, produziu uma ligação por um impossível "curto-circuíto" de níveis que nunca poderão se encontrar, como é o caso da proposta de política cultural de inclusão, exceto, se a Secretária da Cultura estiver pensando na construção de rampas e elevadores de acesso para os portadores de deficiência nos órgãos culturais, numa palavra, acessibilidade, o que os mesmos e suas equipes agradeceriam com fervor. É nesse sentido profundo que se entende a defesa de uma suposta “maquiagem” da política cultural do estado defendida por Luis Paulo Vasconcellos, com a qual concordamos, mas cuja expressão mais correta seria a de bricolage.

A Secretária de Cultura deve tirar proveito do debate a respeito de suas políticas de cultura: para expor mais seu projeto ou para fazer seu mea-culpa. É preciso lembrar, em primeiro lugar, que a Secretária ficou por um longo período a vontade para desenvolver seu projeto, devido à fraqueza da oposição em acompanhar de forma crítica as ações do governo estadual na cultura. Por um lado é falta de empenho da esquerda local, da qual a secretaria se beneficiou politicamente, e por outro, é reflexo da ausência de mecanismos, até bem pouco tempo, de Transparência Pública para acessar informações da secretaria e que poderiam ser resolvidos de forma simples com Portais na Internet, como fazem muitos órgãos públicos. Em segundo lugar, é preciso lembrar que o escândalo político envolvendo órgãos do Governo Yeda teve o efeito de provocar uma cortina de fumaça, beneficiando diretamente a secretária, já que sua pasta e gestão passou desapercebida à critica cultural. Mas passados os desgastes, é justamente a Secretaria da Cultura, a mais frágil de todas, que pode se transformar no calcanhar de aquiles do governo Yeda nesta próxima eleição.A prova disto é que agora, emerge um acompanhamento pela setorial de cultura da esquerda local e pelos partidos que radicalmente se opõem ao seu governo
[8]. As poucas pessoas que apenas agora, motivados pela constatação da existência de uma “Secretaria Esquecida”, iniciam os primeiros ensaios de critica pública, não vem obtendo respostas as suas perguntas. Estas questões devem orientar a agenda da política cultural até o final do seu mandato pois elas envolvem questões centrais de definição de uma política cultural.

Em primeiro lugar, a discussão sobre o modelo de gestão de cultura em andamento. A adoção ou não de uma visão neoliberal na cultura do estado deve ser a primeira questão do debate público. A Secretária deve ser capaz de responder a população se de fato suas ações são de caráter público, ou se está assimilando padrões da cultura de massa e da fashion culture. O poder público presta serviços culturais mantendo bibliotecas e escolas de arte e financiando produções culturais propostas pela sociedade. Política cultural significa cidadania cultural.

Em segundo , a discussão do vinculo entre política cultural e acesso a direitos culturais. Direitos, não eventos culturais. A Secretaria de Cultura deverá mostrar serviço neste campo porque nos princípios desta crítica está a idéia de que há direitos de acesso e fruição de bens culturais que somente serviços públicos de cultura, com equipes multiprofissionais, bibliotecas abertas e com acervo e arquivos históricos organizados podem fornecer. E cabe à Secretaria o esforço de bancar com recursos próprios do Estado tais processos. Mônica Leal paga o preço por ter seguido fielmente a Cartilha de Yeda Crusius: melhor teria sido se tivesse sido capaz de lhe lançar o desafio de uma luta por mais recursos para sua pasta. A redução de custos tem um significado em políticas públicas: a manutenção do status quo.

Em terceiro lugar, a discussão de como se desenvolve a política de atendimento dos direitos de criação cultural. Cultura é trabalho da sensibilidade e imaginação, memória e experiência, que permitem grupos se reconhecerem como sujeitos culturais. Por esta razão tão importante quanto os espaços consagrados são os novos espaços que a atual gestão proporciona, ou espaços informais de cultura, na cidade e no interior, no campo e na cidade. Finalmente, a Secretária deverá mostrar o que vem fazendo para garantir o espaço da sociedade na participação das decisões públicas de cultura e como pretende equacionar a transparência do financiamento cultural do Estado. Quando a Secretária da Cultura responder a estas questões, ela terá chegado naquela que é sentida como sua maior carência: a de um verdadeiro projeto cultural para a secretaria da cultura.
[1] Conforme http://www.scp.rs.gov.br/uploads/planoGovernoYeda_2007_2010.pdf
[2] Ball, S.J.Policy sociology and critical social research: a personal review of recent education policy and policy research. British Educational Research Journal. Manchester, v. 23, no. 3, p. 257-274, 1997; Ball, S.J. What is policy?Texts, trajectories and toolboxes. Discurse, London, v. 13, no. 2, p 10-17, 1993.
[3] Conforme www.pp-rs.org.br e http://www.advbrio.com.br/2006/eventos/forum_gov/
2008/yeda_crusius/Curriculum%20Vitae%20-%20Governadora%20Yeda%20Crusius.doc
[4] Conforme http://www.estado.rs.gov.br/arquivos/arqs_anexos/modelodegestao.pdf
[5] Conforme portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf
[6] A esse respeito, exemplos de políticas de inclusão podem ser encontradas a nível federal em http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/docsubsidiariopoliticadeinclusao.pdf.
[7] Há uma tradução pela Fundo de Cultura Econômica Argentina de 2006.
[8] Conforme www.pt-rs.org.br e www.psol.org.br