Num momento em que o presidente do Senado, José Sarney, revela sua intenção em apagar parcela da memória daquele Legislativo, é salutar a iniciativa do vereador João Dib (PP). Para lembrar a passagem do 47º aniversário de morte do ex-prefeito José Loureiro da Silva, o parlamentar promoveu, no dia 3/6, novamente ato solene que faz há mais de 18 anos junto ao monumento. O simples fato de Dib não esmorecer em suas homenagens deveria ser motivo de admiração. Na oportunidade, Leandro Telles, emocionado, lembrou os principais momentos da trajetória do ex-prefeito. Pode-se imaginar que vêm à memória de João Dib as discussões entre ele e Loureiro para a conclusão da avenida Farrapos, pela criação do Hospital de Pronto Socorro, para a construção do Centro de Saúde Modelo, e, principalmente, o quanto foi difícil a construção do primeiro Plano Diretor de Porto Alegre. Mas tudo isso é mais do que a demonstração de valor à herança de um notável prefeito. A estátua que observa o projeto do aeromóvel quase parece dizer: “Se fosse comigo, já estava concluído”. É disto que se trata: o que a memória de Dib preserva é a defesa de uma utopia para a cidade. Ela é a defesa do ideal de modernização da Capital. Como Robert Musil define, utopia tem mais a ver com “senso de possibilidade” do que com “senso de realidade”. Isso Loureiro tinha muito. Em tempos de preparativos para mais uma Copa do Mundo, nada mais necessário.
terça-feira, 14 de junho de 2011
quinta-feira, 9 de junho de 2011
Zizek: cuidado, ele pode estar certo!
O que a esquerda vem fazendo nas últimas décadas é seguir brutalmente o destino de render-se, de acomodar-se, de fazer os "compromissos necessários " com o inimigo declarado. Slavoj Zizek
Diz-se que quando pediram a Slavoj Zizek para contar um segredo, ele teria respondido "- o comunismo vai ganhar". A frase resume o espírito daquele que tem sido um dos mais importantes teóricos de esquerda da atualidade. Zizek é o que podemos chamar de filósofo "arrasa-quarteirão": a palestra que proferiu no Salão Pedro Calmon da Faculdade de Economia da UFRJ, na praia Vermelha, em 2008, foi um imenso sucesso. Emir Sader relata que ao final da conferência, sob salva de palmas, disparou "– Chega! Guardem suas energias para quando chegar o comunismo". Em 2003, na Argentina, não foi diferente: Zizek reuniu mais de dois mil e quinhentos estudantes e professores atentos durante horas, experiência magistralmente registradas no documentário Zizek! de Astra Taylor. Paradoxalmente, este ícone da esquerda é o que mais dispara críticas à esquerda atual " o que a esquerda vem fazendo nas últimas décadas é seguir brutalmente o destino de render-se, de acomodar-se, de fazer os "compromissos necessários " com o inimigo declarado. Representa o socialismo, porém pode seguir plenamente o thatcherismo econômico; representa a ciência, mas pode seguir plenamente o império da multidão de opiniões, representa a democracia popular verdadeira, porém também pode jogar o jogo da política como espetáculo e dos pactos eleitorais; representa a fidelidade a certos princípios, porém pode ser totalmente pragmático". Para a esquerda local, já se disse tudo, menos que é masoquista. Agora se pode dizer.
Zizek retornou novamente ao Brasil para duas conferências: a primeira em São Paulo (21/5), no Sesc Pinheiros, integrando a programação do Seminário "Revoluções: uma política do sensível" e no Rio de Janeiro (24/05) no Cinema Odeon Petrobrás. Em ambos fez a conferência "Revoluções: quando a situação é catastrófica, mas não é grave" e o lançamento de seus dois novos livros, "Em defesa das causas perdidas" e "Primeiro como tragédia, depois como farsa", ambos pela Boitempo. A promoção reúne entidades de peso como a FLACSO, CLACSO, Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, PUC-RJ entre outras. Intelectual de produção vasta, sua trajetória é pouco conhecida dos brasileiros. Nascido em 1949 em Liubliana, Eslovênia, Zizek concluiu seu bacharelato em Artes, Filosofia e Sociologia em 1971 e obteve seu doutorado em Filosofia pela Universidade de Liubliana em 1985. Nos anos 70 fez parte da Escola da Eslovênia, onde estudou o pensamento de Hegel e nos anos 80 militou no movimento alternativo, chegando a ser candidato a Presidente de seu pais. Tomou contato com o pós-estruturalismo francês, estudando Jacques Lacan e escreveu uma imensa obra que inclui Porque não sabem o que fazem (1991), Goza teu síntoma!(1992), As Metastases do gozo (1994), O Espinoso Sujeito (1999), Bem vindo ao deserto do real (2003), Visão em Paralaxe (2008) e Lacrimare rerum (2009), entre outras.
O que torna profundamente atual o pensamento de Zizek é o seu trabalho sobre a ideologia. Não se trata da retomada de sua obra "O mapa da Ideologia", conhecida dos brasileiros, mas do aprofundamento de aspectos de sua obra pouco conhecida "O sublime objeto da ideologia" (2005) em que integrou de forma original as percepções psicanalíticas da fantasia à critica marxista da ideologia. Isto lhe lhe permitiu, pela primeira vez, propor uma teoria de como funciona a ideologia no plano subjetivo "Não existe a crença comum, o que existe é a crença em que os outros crêem." Zizek reconstrói os processos que fazem que homens, em determinadas circunstâncias, justifiquem e dêem um ar de verdade a uma mentira, numa espécie de construção coletiva . O "vamos fingir que as regras funcionam" oculta, entretanto, o fato de que as instituições no capitalismo contemporâneo estão falidas e ninguém de fato acredita nelas. Agimos como na fantasia de Papai Noel: nem os adultos, nem as crianças, acreditam mais nele. Pior: agimos assim com nossas instituições, inclusive com a democracia. A subjetividade também está sobre tremenda pressão da ideologia: cuidado, o capitalismo quer dar um significado a sua vida, diz Zizek. Ele toma como exemplo os anos que passamos consumindo publicidade, uma das melhores formas de se pensar o que acontece com nossa subjetividade. Nos anos 60, a propaganda automobilista vendia as qualidades de um carro; nos anos 70, o status que ele oferece ao consumidor para finalmente, hoje, ser a promessa de libertação da sociedade opressora. Para Zizek, o capitalismo contemporâneo é profundamente ideológico "a política desse capitalismo é a despolitização para que não haja mais uma ideologia clara." Na sociedade de consumo (Baudrillard), a ideologia vendida é a ideologia da diversão como na frase do filme Sociedade dos Poetas Mortos "Carpe Diem" (aproveitem o dia!). Nada mais comprovador do conceito de Lacan - apropriado por Zizek - de gozo excedente, um gozo que nos suborna para mascarar os nossos problemas. A solução, para Zizek, é o retorno à noção de economia política tal como proposta por Marx: politizar a economia e é nesse sentido que Zizek mais aproxima-se de outro teórico do marxismo, Robert Kurz. A ideologia do capitalismo contemporâneo, defende Zizek, quer que acreditemos que a economia não tem nada haver com a política: ela quer uma sociedade a-política, e para isso constrói a idéia de que é besteira discutir política. Nisto reside a radicalidade de Zizek: ele quer que a democracia se garanta sem as influências das pressões de mercado. E claro que os defensores do mercado rugem sem cessar quando ouvem falar de Zizek,chamando-o de intelectual bufão.
Yannis Stavrakakis, em La Izquierda Lacaniana – psicoanálisis, teoria, política (FCE, 2010), mostra que o pensamento de Zizek consolidou-se ao longo dos últimos quinze anos, período em que a Psicanálise e a Teoria Lacaniana passaram a ser recursos importantes na reorientação da teoria política contemporânea. Essa posição, para qual boa parte dos cientistas políticos torce o nariz, origina-se no próprio pensamento de Jacques Lacan, que não foi apolítico, ao contrário, fez criticas ao american way of life, ao capitalismo americano e a sociedade de consumo, o que o levou a associar sua noção de mais-gozo à noção de mais-valia de Marx. Nesse caminho estão Zizek, Cornelius Castoriadis, Alain Badiou e especialmente Ernesto Laclau, para quem "a teoria lacaniana aponta ferramentas decisivas para a formulação de uma teoria da hegemonia", daí a definição de seu horizonte teórico-politico em termos de Esquerda lacaniana, nítido campo de intervenções políticas e teóricas a partir da psicanálise - mas não somente com ela - parte para a critica da hegemonia capitalista contemporânea.
Em "Primeiro como tragédia, depois como farsa", lançado simultaneamente pela Verso ( Londres) e Flamarion (Paris) em 2009, Zizek pergunta se estamos preparados para a história que se impõe sobre nossas cabeças desde os ataques de 11 de setembro. Ele mostra as manobras por detrás das ideologias levantadas pela crise de 2008 e que levou bilhoes de dólares para os bancos. Para Zizek, o que é profundamente ideológico é tratar as crises do capitalismo como algo estranho ao próprio capitalismo, idéia que deseja vender a imagem de um mercado capitalista regulado de outro modo. Ao contrário, ele nos mostra cada vez mais o capitalismo sobrevivendo abaixo de terapias de choque, mercado que exige violência extra-mercado para seu funcionamento. Para Zizek, a tarefa da esquerda critica é expor as características mortais do sistema capitalista mundial. Ele sabe que há algo de pobre na sociedade e acredita profundamente que o comunismo será reinventado para sanar a sociedade. E para isso, dirige-se aos comunistas desiludidos "- não tenha medo de se juntar a nós. Você já teve seu divertimento anticomunista e está perdoado por ele. É tempo de se levar a sério de novo". Ele vai além, mostra o mal-estar e a falta de sentido da democracia moderna e faz a pergunta paradoxal: estamos realmente vivendo em uma democracia? "A Itália de hoje é efetivamente uma espécie de laboratório experimental de nosso futuro", diz. Sua revolta é: como é possível admitir que milhares morram de fome enquanto os bancos enriquecem com seus trilhões de dólares?
Já na obra "Em defesa das causas perdidas", Zizek vai contra o pensamento hegemônico que vê a democracia liberal, as vezes dita pós-moderna, como o melhor dos mundos frente ao passado das lutas comunistas. Isso não quer dizer que as "causas perdidas" que defende estejam abrigadas pelo teto do Fórum Social Mundial: para Zizek, seu lema "Um outro mundo é possível" mostra que seus protagonistas ainda relacionam-se demais com a estrutura já postas pelo Capitalismo. Para fazer seu caminho, ele faz a opção por retornar ao marxismo à sua maneira, o que tem o peculiar efeito de chamar a atenção mundial sobre sua obra: não há dúvida, o que Zizek faz é tornar sedutor o marxismo para as nova gerações. Para isso articula Lacan, Hegel e Marx com cinema, música, cultura popular e a critica dos objetos de consumo. "Em defesa das causas perdidas" entretanto, padece do problema comum aos grandes pensadores contemporâneos: como produzem demais, escrevem demais, torna-se freqüente encontrar traços de obras anteriores nas seguintes. Não há como deixar de ver no capítulo II Lições do passado o eco de suas obras anteriores sobre Robespierre e Mao, ou dos estudos anteriores que fez sobre Estalinismo publicados em espanhol. Há, entretanto, reflexões sobre o pensamento de Heidegger extremamente originais e que não haviam aparecido anteriormente. E é claro, Zizek sempre é um grande contador de causos que sintetizam brilhantemente suas idéias. Em um determinado momento de sua obra, ele cita a ficha de um hotel americano que diz: "Prezado cliente: para garantir que você vai desfrutar sua estadia conosco, este hotel está totalmente liberado do fumo. Qualquer violação deste regulamento resultará numa multa de $ 200". Assim é o Capitalismo, diz Zizek: estamos condenados a ser castigados se recursarmos a desfruta-lo plenamente. Zizek quer nos mostrar o cinismo do capitalismo contemporâneo em sua caminhada em direção a um capitalismo autoritário, contrário ao direitos humanos, como já anuncia o caso chinês. E o grande perigo é que ele pode estar certo.
Zizek retornou novamente ao Brasil para duas conferências: a primeira em São Paulo (21/5), no Sesc Pinheiros, integrando a programação do Seminário "Revoluções: uma política do sensível" e no Rio de Janeiro (24/05) no Cinema Odeon Petrobrás. Em ambos fez a conferência "Revoluções: quando a situação é catastrófica, mas não é grave" e o lançamento de seus dois novos livros, "Em defesa das causas perdidas" e "Primeiro como tragédia, depois como farsa", ambos pela Boitempo. A promoção reúne entidades de peso como a FLACSO, CLACSO, Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, PUC-RJ entre outras. Intelectual de produção vasta, sua trajetória é pouco conhecida dos brasileiros. Nascido em 1949 em Liubliana, Eslovênia, Zizek concluiu seu bacharelato em Artes, Filosofia e Sociologia em 1971 e obteve seu doutorado em Filosofia pela Universidade de Liubliana em 1985. Nos anos 70 fez parte da Escola da Eslovênia, onde estudou o pensamento de Hegel e nos anos 80 militou no movimento alternativo, chegando a ser candidato a Presidente de seu pais. Tomou contato com o pós-estruturalismo francês, estudando Jacques Lacan e escreveu uma imensa obra que inclui Porque não sabem o que fazem (1991), Goza teu síntoma!(1992), As Metastases do gozo (1994), O Espinoso Sujeito (1999), Bem vindo ao deserto do real (2003), Visão em Paralaxe (2008) e Lacrimare rerum (2009), entre outras.
O que torna profundamente atual o pensamento de Zizek é o seu trabalho sobre a ideologia. Não se trata da retomada de sua obra "O mapa da Ideologia", conhecida dos brasileiros, mas do aprofundamento de aspectos de sua obra pouco conhecida "O sublime objeto da ideologia" (2005) em que integrou de forma original as percepções psicanalíticas da fantasia à critica marxista da ideologia. Isto lhe lhe permitiu, pela primeira vez, propor uma teoria de como funciona a ideologia no plano subjetivo "Não existe a crença comum, o que existe é a crença em que os outros crêem." Zizek reconstrói os processos que fazem que homens, em determinadas circunstâncias, justifiquem e dêem um ar de verdade a uma mentira, numa espécie de construção coletiva . O "vamos fingir que as regras funcionam" oculta, entretanto, o fato de que as instituições no capitalismo contemporâneo estão falidas e ninguém de fato acredita nelas. Agimos como na fantasia de Papai Noel: nem os adultos, nem as crianças, acreditam mais nele. Pior: agimos assim com nossas instituições, inclusive com a democracia. A subjetividade também está sobre tremenda pressão da ideologia: cuidado, o capitalismo quer dar um significado a sua vida, diz Zizek. Ele toma como exemplo os anos que passamos consumindo publicidade, uma das melhores formas de se pensar o que acontece com nossa subjetividade. Nos anos 60, a propaganda automobilista vendia as qualidades de um carro; nos anos 70, o status que ele oferece ao consumidor para finalmente, hoje, ser a promessa de libertação da sociedade opressora. Para Zizek, o capitalismo contemporâneo é profundamente ideológico "a política desse capitalismo é a despolitização para que não haja mais uma ideologia clara." Na sociedade de consumo (Baudrillard), a ideologia vendida é a ideologia da diversão como na frase do filme Sociedade dos Poetas Mortos "Carpe Diem" (aproveitem o dia!). Nada mais comprovador do conceito de Lacan - apropriado por Zizek - de gozo excedente, um gozo que nos suborna para mascarar os nossos problemas. A solução, para Zizek, é o retorno à noção de economia política tal como proposta por Marx: politizar a economia e é nesse sentido que Zizek mais aproxima-se de outro teórico do marxismo, Robert Kurz. A ideologia do capitalismo contemporâneo, defende Zizek, quer que acreditemos que a economia não tem nada haver com a política: ela quer uma sociedade a-política, e para isso constrói a idéia de que é besteira discutir política. Nisto reside a radicalidade de Zizek: ele quer que a democracia se garanta sem as influências das pressões de mercado. E claro que os defensores do mercado rugem sem cessar quando ouvem falar de Zizek,chamando-o de intelectual bufão.
Yannis Stavrakakis, em La Izquierda Lacaniana – psicoanálisis, teoria, política (FCE, 2010), mostra que o pensamento de Zizek consolidou-se ao longo dos últimos quinze anos, período em que a Psicanálise e a Teoria Lacaniana passaram a ser recursos importantes na reorientação da teoria política contemporânea. Essa posição, para qual boa parte dos cientistas políticos torce o nariz, origina-se no próprio pensamento de Jacques Lacan, que não foi apolítico, ao contrário, fez criticas ao american way of life, ao capitalismo americano e a sociedade de consumo, o que o levou a associar sua noção de mais-gozo à noção de mais-valia de Marx. Nesse caminho estão Zizek, Cornelius Castoriadis, Alain Badiou e especialmente Ernesto Laclau, para quem "a teoria lacaniana aponta ferramentas decisivas para a formulação de uma teoria da hegemonia", daí a definição de seu horizonte teórico-politico em termos de Esquerda lacaniana, nítido campo de intervenções políticas e teóricas a partir da psicanálise - mas não somente com ela - parte para a critica da hegemonia capitalista contemporânea.
Em "Primeiro como tragédia, depois como farsa", lançado simultaneamente pela Verso ( Londres) e Flamarion (Paris) em 2009, Zizek pergunta se estamos preparados para a história que se impõe sobre nossas cabeças desde os ataques de 11 de setembro. Ele mostra as manobras por detrás das ideologias levantadas pela crise de 2008 e que levou bilhoes de dólares para os bancos. Para Zizek, o que é profundamente ideológico é tratar as crises do capitalismo como algo estranho ao próprio capitalismo, idéia que deseja vender a imagem de um mercado capitalista regulado de outro modo. Ao contrário, ele nos mostra cada vez mais o capitalismo sobrevivendo abaixo de terapias de choque, mercado que exige violência extra-mercado para seu funcionamento. Para Zizek, a tarefa da esquerda critica é expor as características mortais do sistema capitalista mundial. Ele sabe que há algo de pobre na sociedade e acredita profundamente que o comunismo será reinventado para sanar a sociedade. E para isso, dirige-se aos comunistas desiludidos "- não tenha medo de se juntar a nós. Você já teve seu divertimento anticomunista e está perdoado por ele. É tempo de se levar a sério de novo". Ele vai além, mostra o mal-estar e a falta de sentido da democracia moderna e faz a pergunta paradoxal: estamos realmente vivendo em uma democracia? "A Itália de hoje é efetivamente uma espécie de laboratório experimental de nosso futuro", diz. Sua revolta é: como é possível admitir que milhares morram de fome enquanto os bancos enriquecem com seus trilhões de dólares?
Já na obra "Em defesa das causas perdidas", Zizek vai contra o pensamento hegemônico que vê a democracia liberal, as vezes dita pós-moderna, como o melhor dos mundos frente ao passado das lutas comunistas. Isso não quer dizer que as "causas perdidas" que defende estejam abrigadas pelo teto do Fórum Social Mundial: para Zizek, seu lema "Um outro mundo é possível" mostra que seus protagonistas ainda relacionam-se demais com a estrutura já postas pelo Capitalismo. Para fazer seu caminho, ele faz a opção por retornar ao marxismo à sua maneira, o que tem o peculiar efeito de chamar a atenção mundial sobre sua obra: não há dúvida, o que Zizek faz é tornar sedutor o marxismo para as nova gerações. Para isso articula Lacan, Hegel e Marx com cinema, música, cultura popular e a critica dos objetos de consumo. "Em defesa das causas perdidas" entretanto, padece do problema comum aos grandes pensadores contemporâneos: como produzem demais, escrevem demais, torna-se freqüente encontrar traços de obras anteriores nas seguintes. Não há como deixar de ver no capítulo II Lições do passado o eco de suas obras anteriores sobre Robespierre e Mao, ou dos estudos anteriores que fez sobre Estalinismo publicados em espanhol. Há, entretanto, reflexões sobre o pensamento de Heidegger extremamente originais e que não haviam aparecido anteriormente. E é claro, Zizek sempre é um grande contador de causos que sintetizam brilhantemente suas idéias. Em um determinado momento de sua obra, ele cita a ficha de um hotel americano que diz: "Prezado cliente: para garantir que você vai desfrutar sua estadia conosco, este hotel está totalmente liberado do fumo. Qualquer violação deste regulamento resultará numa multa de $ 200". Assim é o Capitalismo, diz Zizek: estamos condenados a ser castigados se recursarmos a desfruta-lo plenamente. Zizek quer nos mostrar o cinismo do capitalismo contemporâneo em sua caminhada em direção a um capitalismo autoritário, contrário ao direitos humanos, como já anuncia o caso chinês. E o grande perigo é que ele pode estar certo.
Publicado no site do Jornal Le Monde Diplimatique em 9/6/2011
terça-feira, 7 de junho de 2011
Slavoj Zizek e o Direito
A idéia de que a Ciência Política, Antropologia e Sociologia são ciências auxiliares do Direito ainda não está totalmente estabelecida como uma prática. Os campos tradicionais das Ciências Sociais tendem a dialogar mais entre si do que com o campo do Direito, produzindo seu aparente isolamento destas disciplinas. Este isolamento, por outro lado, tem sido rompido com o esforço de juristas e cientistas sociais que reivindicam a importância de abordagens interdisciplinares no campo jurídico.
Entre estes autores podem ser citados Michel Foucault. Seu estudo “A verdade e as formas jurídicas” mostrou aos estudiosos do Direito à importância de buscar na história de sua disciplina como sua prática exerce poder, um saber-poder. Renovação semelhante foi introduzida por François Ost em “O Tempo do Direito” onde o autor realiza um diálogo entre as noções de Direito e Tempo, revelando como se determinam mutuamente a construção de quatro medidas: memória, perdão, promessa e questionamento.
Nesse campo de contribuições interdisciplinares para o estudo do Direito um autor que merece destaque é Slavoj Zizek. Nascido na Liubliana, capital da Eslovênia em 1949, doutorou-se em Filosofia na sua cidade natal e estudou Psicanálise na Universidade de Paris. Conhecido pelo uso que fez da obra de Jacques Lacan para uma nova leitura da cultura popular, abordou temas como o cinema de Alfred Hitchcock e David Lynch, o leninismo e tópicos como fundamentalismo e tolerância. Intelectual de uma vasta produção, sua obra articula filosofia, psicanálise, crítica da cultura, política e cinema. Rotulado como pós-marxista, pós-lacaniano, critico da pós-modernidade e do multiculturalismo, Zizek é um ferrenho critico da hegemonia do capitalismo global. Autor de obras como “Um mapa da ideologia”, “Visão em Paralaxe”, “Bem vindo ao deserto do real”, O Sublime Objeto da Ideologia” e mais uma dezenas de livros em várias línguas, Zizek situa-se na linha de frente do debate cultural contemporâneo de esquerda e junto com Cornelius Castoriadis, Ernest Laclau e Alain Badiou constitui a chamada “Nova Esquerda Lacaniana”, caracterizada por construir estudos originais que servem de crítica à hegemonia da ideologia liberal.
Marcelo Grillo em sua obra “O direito na filosofia de Slavoj Zizek”(Editora Alfa-Omega) defende a importância do autor para perscrutar o conceito de Direito. Zizek, diferente da visão marxista superficial, não vê o Direito como integrante da super-estrutura da sociedade. Ao contrário, Zizek vê o Direito no seio das contradições da sociedade capitalista, com críticas à sociedade e a democracia liberal fundamentais para a construção de um novo conceito de Direito. Por exemplo, não se pode, para Zizek, elogiar a China como potência capitalista emergente enquanto se vê a repressão aos direitos dos trabalhadores em seu interior. O Direito, nesse aspecto, é um dos campos da luta ideológica contemporânea, e Zizek receia que a força do neoliberalismo termine por reduzir a capacidade do Direito em realizar a justiça.
É o que demonstra Zizek ao analisar o drama da defesa dos direitos humanos “A nova normatividade emergente para os direitos humanos é, entretanto, a forma em que apareceu seu exato oposto”, frase enigmática mas que significa, que em nome dos direitos humanos, o que estamos fazendo é violar esses mesmos direitos. Em “Os direitos humanos e o nosso descontentamento”(Ed. Pedago), Zizek fala das relações entre os diversos países que compunham a antiga Iugoslávia. Analisando as intervenções militares sob a justificação humanitária, Zizek mostra que o que estava em jogo era a oposição entre o forte nacionalismo de Milosevic e a herança multicultural dos iugoslavos, representados pelos bósnios. Para Zizek, justificar a intervenção militar com base nos direitos humanos terminou por retirar das vítimas a capacidade de reagir, de fazer sua própria história.
Para Zizek, toda política de intervenção baseada na doutrina dos direitos humanos que age sem provocar a politização das vitimas deve ser considerada ideologia do intervencionismo militar a serviço de propósitos econômicos específicos. A inspiração desta posição é Hannah Arendt, que em sua obra “As origens do Totalitarismo diz: “o conceito de direitos humanos, que é baseada na suposta existência de um ser humano em si, desmoronou no mesmo instante em que aqueles que diziam acreditar nele se confrontaram pela primeira vez com seres humanos que realmente haviam perdido todas as outras qualidades e relações específicas – exceto que ainda eram humanos”.
A critica de Zizek aos direitos humanos não se faz, evidente, aos direitos humanos em sim, mas ao fato de que no atual contexto mundial eles atendem aos interesses da nova ordem internacional dominada pelos EUA. A cada intervenção realizada, Zizek questiona a base dos critérios das escolhas “porque os albaneses na Sérvia e não os palestinos em Israel ou os curdos na Turquia. Porque Cuba é boicotada enquanto o regime norte-coreano, muito mais rígido, recebe ajuda gratuita para desenvolver capacidades atômicas “seguras”?. Com isto Zizek quer dizer que as intervenções que se fazem em nome dos direitos humanos são mais em função de supostas razões morais do que intervenções em vistas uma luta política definida. Nesse sentido, a realidade de uma luta política é convertida numa luta moral do bem contra o mal.
Em meio a uma obra polêmica e original, Zizek é um pensador extremamente instigante para o Direito ao clamar pelo retorno da Política e ao fazer a crítica da política dos direitos humanos ao serviço do Capital.
Publicado no Jornal O Estado do Direito, nº 30, p. 21.
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