quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A politecnia como poção mágica

Gosto muito do José Clóvis. Sua história está inscrita na DS: como na história de Asterix, que habita o último reduto não ocupado pelos romanos na Gália, José Clovis habita o último reduto petista não entregue ao jogo da política tradicional. Para resisitr aos romanos, na estória de Goscinny e Uderzo, os aldeões contavam com uma poção mágica preparada pelo druida Panoramix. Só Obelix não precisa da poção, já que caiu no caldeirão dela quando era criança. A poção mágica de José Clóvis se chama politecnia. A proposta de Ensino Médio Politécnico é, na realidade, o sonho de todo militante de esquerda: ela é o outro nome da educação socialista, educação crítica do sistema capitalista inspirada nos estudos de Marx, Engels e Lênin incorporados ao pensamento educacional brasileiro de esquerda através do GT Trabalho e Educação da ANPEd e o termo dominante do pensamento dos educadores de esquerda durante a década de 90.



Precisamos de uma educação de esquerda? É claro que sim, urgentemente.  A proposta de José Clóvis é boa, mas ainda tem a avançar neste sentido. Primeiro, a SEC precisa  mostrar capacidade de organização dos debates; segundo, precisa manter a posição de abertura porque é uma construção coletiva e terceiro, precisa enfrentar a contradição de base do projeto: como efetivar uma proposta educacional socialista no interior do capitalismo? Socialista, a grosso modo,  porque a proposta quer “desenvolver consciências criticas capazes de compreender a nova realidade” ao mesmo  tempo que quer “atender as demandas do mundo do trabalho para a educação” e, e.... o que mais mesmo? E aí que mostra sua fragilidade. Ela coloca a educação “no espaço de lutas sociais pela emancipação do ser humano “(p.18), mas como fazer isso no interior do capitalismo, justamente o regime onde a educação é vista como um “custo morto” (Kurz)  e onde quanto maior a oferta de mão de obra-qualificada, maior a desvalorização da força de trabalho?



A questão é fornecer ao aluno os instrumentos que  o permitam construir coletivamente um projeto de mudança social – e é isso, justamente, o que não está em questão, já que a proposta prevê no Anexo 3 que a implantação de novos cursos atenderá os critérios dos Arranjos Produtivos Locais (APL), numa palavra, as empresas das regiões. Quer dizer, a proposta de politecnia é um avanço frente ao taylorismo, mas é um avanço relativo, já que subentende que o monopólio do poder sobre as condições de trabalho permanece com o Capital. Para ser uma proposta radical, desejo que bate oculto no coração da DS, seu foco deve voltar-se  não para o imediatismo do mercado de trabalho, mas para o desenvolvimento das potencialidades libertárias pelo trabalho contra a exploração do capital.



Isso não significa negar a possibilidade da educação socialista ou da proposta apresentada, ao contrário. Acontece com a proposta da SEC algo semelhante à publicidade: uma parte da proposta atinge o alvo, mas não se sabe qual é. A politecnia pode ser uma boa poção mágica, mas ela só funcionará se for como a poção de Asterix, radical na sua forma e capaz de transformar os alunos em seres indestrutíveis frente às forças do Capital. Aliás, melhor seria se os alunos caíssem de inteiro no caldeirão de suas idéias. Mas isto é outra historia.

Publicado em Zero Hora em 30/11/2011.


quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Por que defendo Raul Pont




A disputa interna entre as correntes do PT para a indicação do seu candidato a Prefeitura esquece o que deveria ser o centro do debate: quem reúne as condições para fazer um bom governo. Para mim, Raul Pont deveria ser o candidato natural, mas não é. A candidatura de Adão Villaverde tem um olhar voltado para as classes médias e os grupos que lhe dão suporte estão de olho nas questões conjunturais do cálculo do voto. Esquecem que Raul Pont possui uma experiência muito maior no interior do Poder Executivo, primeiro como vice-Prefeito, e depois como Prefeito, do que Adão Villaverde e sua indicação só acontece porque o PT mudou de estratégia para a conquista do poder - menos ideologia, mais centrismo – resultando em governos mais marcados pelo continuísmo do que pela ideologia.

A definição do candidato petista não deveria ser assim, ao contrário, deveria estar baseada naqueles candidatos que mais realizações efetivas fizeram enquanto prefeitos e que mais encarnam a ideologia do partido. Quer dizer, o PT ao invés de basear seu cálculo do voto na análise de conjuntura, deveria investir no velho e bom voto retrospectivo e ideológico, levando em conta o julgamento do melhor candidato em função de seu desempenho na administração. Não é o que está ocorrendo quando vemos as tendências do PT preocupadas no alinhamento do candidato com o poder estadual e federal e as correntes, alinhando-se a um e outro em função de seu proprio interesse. Perde a cidade a oportunidade de ver um debate de idéias e anuncia-se um debate “morno” do tipo “fica o que está bom, muda o que não está” que caracterizou a campanha de 2004.

As tendências do PT esquecem que Porto Alegre, junto com São Paulo, Belo Horizonte e Florianópolis, é uma capital na qual o eleitor conhece distinções substantivas entre direita e esquerda. A capital foi administrada pelo PT por dezesseis anos, inclusive por Raul Pont, e isto não pode ser deixado de lado na escolha do candidato a prefeito pelo partido. A avaliação retrospectiva foi um fator decisivo em várias cidades, como Fortaleza, onde o eleitor levou mais em conta o passado dos candidatos na administração. Diz Antonio Lavareda e Helcimara Telles “Deste modo, além do voto ideológico, encontrado em outras cidades, observa-se também um comportamento mais pragmático, baseado no exame da gestão”(Como o Eleitor Escolhe seu Prefeito, FGV, 2011).

Se Adão Villaverde for o candidato, teremos uma campanha “paz e amor”. Prefiro Raul Pont, do bom e velho PT, com uma trajetória mais sólida e discurso de oposição forte. O PT em seu passado recente, aproximou-se demasiadamente do centro do espectro político e isto levou ao fim de sua ideologia. Agora, ao verem-se aproximarem-se as eleições municipais, é hora de dizer: “PT, volte a ser esquerda radical!. Você se divertiu agindo como centro, mas agora está perdoado por isto – está na hora de levar os ideais de esquerda a sério outra vez!”.

sábado, 12 de novembro de 2011

Por trás da polêmica do IDEB






A ideia de Gustavo Ioschpe de tornar obrigatório afixar no portão de entrada das escolas os resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, o IDEB, tornou-se perigosa porque foi encampada por três projetos de lei apresentados na Câmara dos Deputados. O próprio MEC alertou no início da tramitação que tais projetos eram constrangedores para as escolas, e é consenso entre os órgãos de classe, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), que há inúmeros problemas nas escolas brasileiras que independem do esforço dos professores e que afetam o processo de ensino – como as condições das instalações, a falta de energia elétrica e água em escolas rurais, etc. A conclusão é que a proposta do economista cobra dos profissionais de ensino o que deve ser responsabilidade do Estado, estabelece uma competição desnecessária entre as instituições educacionais, aumenta o estresse profissional de professores e reduz a autoestima de alunos. Se a proposta vencer, será praticada uma violência simbólica contra a escola: ela será jogada, de uma vez por todas, ao sabor da ideologia pura de mercado, ao ser submetida ao princípio da competição, cujo efeito é reduzir a autonomia escolar, substituir a defesa do desenvolvimento integral do aluno pela busca de indicadores baseados em dados quantitativos – e não qualitativos – e na gestão de recursos financeiros.




O que está por trás dessa discussão? O pressuposto de Ioschpe é que teorias e métodos econômicos podem ser aplicados à educação. É o que faz em sua obra “A ignorância custa um mundo” (ed. Francis, 2004), na qual defende a analogia entre produtividade física do capital e educação. Defende, entre outras ideias, que “basta imaginar que a escola é uma instituição especializada na produção de treinamento” (p.33) e que “os princípios da economia também se aplicam ao 'mercado' da educação” (p.152). Mais grave, o autor propõe uma reforma do ensino brasileiro baseada, entre outras coisas, no “fim da gratuidade do ensino público universitário” (p.231, grifo meu) e no ”fim do desconto no IR para gastos com educação” (p.243). Para mim, a “economia da educação” de Ioschpe é o mais puro pensamento de direita, na qual a economia, a defesa de índices, o mercado e o liberalismo são o remédio pronto para a solução de todos os males da educação. É nela que se fundamenta a defesa da afixação do IDEB nas fachadas das escolas. Em “Rumo ao Abismo” (Bertrand Brasil, 2011), Edgar Morin mostra o quanto esse paradigma é equivocado quando se trata da educação. Para Morin, "a ciência econômica, ao mesmo tempo em que é a ciência social matematicamente mais avançada, é a ciência social humanamente mais retrógrada”, pois “se abstraiu das condições sociais, históricas, políticas, psicológicas, ecológicas, inseparáveis das atividades econômicas” (Morin, p.48). A afixação do índice do IDEB na fachada das escolas é o simulacro perverso e deformador desse universo econômico. O indicador aliena porque compartimentaliza, separa e isola aquilo que os educadores veem de forma interdependente: as condições de produção do trabalho escolar. Sua falsa racionalidade baseia-se num mecanismo ideológico elementar: a tentação do sentido. Diante dos terríveis problemas educacionais que vivemos hoje, a valorização de indicadores surge como portador de sentido, mas esconde por trás uma perversa lógica econômica baseada na defesa da competição. A ilusão vendida por Ioschpe é que, se indicadores servem para economistas, devem servir para os profissionais do ensino. Nada mais perverso, porque o que ele não diz é que a economia capitalista não é um mundo equilibrado, ao contrário, é um mundo repleto de catástrofes no qual os problemas da educação são justamente um de seus produtos.




Sua posição não poderia ser diferente: está inscrita em seu DNA. Filho de conhecido empresário, é acionista da Ioschpe-Maxiom, companhia fundada em 1918 que se expandiu do ramo madeireiro para o setor financeiro e industrial, chegando a lucros de 58,597 milhões no terceiro trimestre de 2010. Quer dizer, faz parte do habitus (Pierre Bourdieu) dele a incorporação em seu modo de agir, sentir e pensar do modo de ser de sua classe social, a classe dominante. Procurei em vão na internet informações sobre sua experiência como professor de escola pública e não encontrei nada – repito nada! - que o qualifique como tal. A pergunta que não quer calar é: como pode alguém que não teve a experiência de sala de aula dizer que é melhor para os professores que o IDEB seja afixado na fachada de sua escola? Mais: como pode sugerir que instrumentos da economia sejam orientadores para a educação? A minha resposta é: não pode. É necessária a experiência de professor para sugerir caminhos para a educação, e a "economia da educação" nada mais é do que ópio para as massas, e a defesa de indicadores, mitificação ideológica . É como se dissesse: “educador, não te metas com a verdade dos índices porque eles são a nossa verdadeira natureza”. No universo de Ioschpe não existem nem pessoas nem contradições, apenas fórmulas matemáticas: “[...] minhas pesquisas e conclusões são respaldadas por números e estatísticas” (A Ignorância... p.14). Diz o filósofo Slavoj Zizek: “O difícil é encontrar poesia e espiritualidade nessa dimensão”.






Ora, além de ser moralmente errado aplicarem-se conceitos de investimento e capital às pessoas, há o risco de indicadores como o IDEB serem utilizados de forma inadequada nas decisões de políticas educacionais. Se os governos levarem em consideração somente os valores apontados no índice, as contribuições e as análises culturais da educação não serão consideradas. Isso é terrível. A educação tem um papel econômico, é claro, mas não a ponto de perdemos as referências às questões sociais de base que tratam, justamente, da crítica às condições de reprodução da escola no interior do capitalismo. Ioschpe defende a ideia de afixar o índice do IDEB na fachada das escolas como seu gesto de amor para defender a educação, mas seu verdadeiro amor é o Capital e seu pensamento, ideologia a serviço da servidão.




Publicado no Jornal da Universidade (UFRGS
), outubro de 2011

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Menos iPod, mais miojo





Sou pré-histórico. Não tenho iPhone, iPad e nem iPod. Meu celular tem inúmeras funções graças a Steve Jobs, mas só uso uma ou duas. E quanto a tela touch screen, alguém pode me explicar porque os nomes da agenda deslizam tão rápido que mal consigo selecioná-los?





Desculpe, estou ficando velho e as rabugices marxistas vem à tona. Não entendo porque tanta idolatria com os feitos de Jobs. Quem disse que suas invenções fizeram avançar a humanidade? Seus aparelhos são o tormento de inúmeros professores: os alunos perdem a concentração da sala de aula porque estão ouvindo seu iPod; você não consegue falar com uma pessoa porque ela está no seu iPhone - “só um instante, só um instante!” - e não abro mão da experiência táctil que um livro possibilita – vade retro iPad!





A celebração dos feitos de Jobs oculta o fato de que todo avanço tecnológico cobra um preço. A invenção do avião foi também a do desastre aéreo; a do navio, o naufrágio e a do trem, o descarrilhamento. Toda a invenção cria o seu acidente, diz Paul Virilio. O avanço digital também tem o seu: torna nossa sociedade mais individualista e compulsiva. Pessoas caminham como zumbis nos parques alheios a beleza natural e a caminhada a dois passa a ser uma caminhada individual; ficam obcecados com a telinha do computador e não desviam o olhar sequer quando você lhes dirige a palavra e a leitura de textos em um iPad só faz as pessoas terem menos paciência para lerem textos longos. Como repetem os adoradores das criações de Jobs, tudo ficou mais fácil com ele, é verdade – outra forma de dizer que seu sucesso se deve ao fato de reconhecer que somos todos estúpidos. “É fácil de usar? Então estou dentro”.A questão é que as criações de Jobs não são instrumentos passivos de informação “Eles fornecem o conteúdo de nossos pensamentos, mas também modelam o processo de pensamento”, diz Nicholas Carr. Isto que dizer que devemos parar de usá-los? É claro que não! só que devemos ser mais críticos quanto ao condicionamento que provoca ao nos possibilitar receber informação de forma rápida e superficial.





Confesso que fiquei mais triste quando morreu em 2007 Momofuku Ando. O inventor do macarrão instantâneo e fundador da Nissin Foods Products morreu aos 96 anos de ataque cardíaco. Ando teve a idéia de criar o macarrão instantâneo depois da 2ª Guerra Mundial quando via as pessoas passando inúmeras horas na fila para comprar alimentos no mercado negro devido ao racionamento. Qual foi a invenção mais importante para a humanidade, a do miojo – nenhuma unanimidade, dirão os nutricionistas – que mata a fome e socializa ou a do iPod que aliena e individualiza?





Alto lá.! É claro que Jobs tem imenso valor, mas não por suas invenções, mercadorias que o Capitalismo adora, mas pela simplicidade das idéias que expressou no famoso discurso de Stanford ”você tem de encontrar o que você ama”. Sorte de Jobs que encontrou algo que também o deixou rico.


Publicado em Zero Hora em 10/10/2011


sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Os eleitos, as eleitas

A realização pela Câmara Municipal de Porto Alegre do Seminário Internacional “As Eleitas, Os Eleitos: como parlamentares tornam-se parlamentares” é uma resposta àqueles que defendem o fim do legislativo junto à crítica do reajuste dos vencimentos dos parlamentares. Você pode concordar ou não com a idéia de reajuste, mas daí passar a acreditar na inutilidade da política e dos representantes locais é um perigo para a democracia. Todos os painelistas foram unânimes em valorizar a importância da boa política, da necessidade de formar novos bons políticos – vá-la, vá-la, sociedade e estado ainda não chegaram a um consenso quanto ao seu salário, ok, ok – mas não se pode por esta razão perder a fé nas instituições públicas da democracia.

Toda a programação do Seminário Internacional fez jus ao que se espera que um grande parlamento faça: debater exaustivamente e em alto nível sua função na sociedade, aproximar a pesquisa universitária dos agentes públicos, promover um diálogo entre agentes sociais e principalmente, reforçar na comunidade a ideia de que a democracia local precisa ser fortalecida pelo cidadão. Precisamos que os parlamentos locais lutem por uma sociedade melhor e os pesquisadores apontaram elementos para a sua defesa: o fato de que os vereadores, após a Constituição de 1988, tornaram-se um elo forte na constituição de políticas públicas nos municípios; o fato de que 93% dos quase 50 mil parlamentos estão localizados em pequenas cidades; o fato de que o militantismo, ou seja, a forma como as pessoas se engajam nas agremiações partidárias, é questão central para o fortalecimento da política local. O que não significa que não tenhamos problemas a resolver: o fato de que somente uma minoria (7%) das cidades tem parlamentos com visibilidade e acesso à imprensa; o fato de que 38% das mulheres sofrem resistência da família, sendo 22% dos cônjuges, para entrar na política, são alguns exemplos dos desafios que as Câmaras Municipais ainda tem de enfrentar.

Enquanto isso, parcela da sociedade ainda ignora o que fazem seus vereadores. Mais, desconhece o esforço daqueles que tem sua agenda dedicada a melhorar a cidade. Devemos separar o bom do mal político, é claro, mas devemos reconhecer o valor da boa política para o desenvolvimento da cidade. Às vésperas de mais um pleito eleitoral e no momento em que se tecem as articulações para as eleições de prefeitos e vereadores, sejam quem forem “Os Eleitos” ou “As Eleitas” a quem entregaremos nosso voto nas próximas eleições, o que está em jogo é o valor que damos a idéia de representação, a boa escolha eleitoral e às instituções da sociedade democrática.
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A sinuca da educação

"A verdadeira utopia é a crença em que o sistema global existente pode se reproduzir indefinidamente. A única maneira de ser verdadeiramente realista é imaginar o que, dentro das coordenadas desse sistema, só pode parecer impossível." Slavoj Zizek

O snooker é um jogo de mesa, tacos e bolas surgido na Grã-Bretanha em 1875 e que recebeu no Brasil o nome popular de sinuca. Praticado por milhares de pessoas, com adaptações oriundas dos jogos americanos, um de seus movimentos é denominado bricol, que consiste em lançar a bola branca para que toque uma tabela antes de tocar a primeira bola objetivo. A bola branca repica e atinge outro alvo.

Algo semelhante ocorre quando Gustavo Ioschpe publica em Veja o artigo “Você acha que as escolas particulares brasileiras são boas?”. Depois de criticar o sistema público, Ioschpe volta -se contra o sistema privado, que na sua opinião, é no mínimo sofrível. E critica a satisfação dos pais que tem seus filhos nas escolas privadas, que sofreriam daquilo que os alemães chamam de Schadenfreude “a satisfação diante da desgraça alheia”.

O bricol praticado por Ioschpe é simples: ele mira nas escolas privadas para atingir as escolas públicas. Seu artigo contém uma mensagem perversa: privatizem a escola pública! Ela está inscrita na comparação com o sistema chileno, que privatizou grande parte de sua educação básica quando então começou a selecionar os melhores “Se a escola atrair os melhores, provavelmente será a melhor”, diz. Ioschpe acerta na defesa da participação dos pais na educação dos filhos mas erra ao defender a ideologia liberal da pior espécie: a defesa da concorrência, da hegemonia da educação para o trabalho e da culpa dos professores pelas fraquezas do sistema de ensino. A escola privada brasileira é ruim porque a pública é muito pior, conclui.

Eu teria muito a dizer porque discordo de sua posição mas Zero Hora fez isso por mim na reportagem da última segunda-feira. Com um título que sugeria o pior “Estado cai no ranking do Enem”, a matéria mostrou que o Rio Grande do Sul perdeu a supremacia no ranking do Exame Nacional do Ensino Médio sim, mas, observando com atenção comparativamente os dados das vinte melhores escolas públicas do Estado com as respectivas vinte melhores privadas da capital, a surpresa. Primeiro, a média do estado avançou 6 pontos percentuais para mais; segundo, as três primeiras escolas públicas do Estado - o Colégio Militar de Porto Alegre,o Colégio Politécnico de Santa Maria e o Colégio Tiradentes - ficaram respectivamente com 693,69, 693,43 e 665,93, valores superiores aos das duas primeiras escolas privadas do Estado - o Colégio Leonardo da Vinci – Alfa e o Colégio Marista Nossa Senhora do Rosário - que ficaram respectivamente com 661,68 e 647,43 pontos e portanto, foram superadas pelas escolas públicas. Onde estão as piores escolas públicas apontadas por Ioschpe?

Temos que melhorar a educação? É claro que sim. Há muitas escolas públicas com problemas? Evidente, mas não melhoramos a educação pública desvalorizando o esforço dos professores e dos sistemas que funcionam em nome da privatização, mas exatamente com pregam os “radicais de esquerda”, através de um engajamento sociopolítico concreto de todos em defesa de uma educação libertária crítica a raiz do sistema capitalista. Como em uma parede de Paris em 68 “sejamos realistas: exijamos o impossível!”

Não é a vida da gente









Se você acha que critica sociológica de novela não serve para nada, pare agora de ler este artigo. Vou avisar mais uma vez: se você acha que tudo pode em termos de “licença poética”, pare agora de ler. Eu avisei.
A estréia de A vida da gente é destas pérolas da indústria cultural brasileira: não há dúvida da qualidade da sua produção e do trabalho de atores e diretores, mas quando o negócio é fazer um retrato da realidade, quanta diferença!
Vejamos: o par romântico mergulha em pleno inverno numa das lagoas no frio da serra gaúcha; a mocinha põe na bagagem um biquini entre as roupas para a ir a serra (!)e um ônibus antigo que você nunca viu na rodoviaria faz a ligação de Porto Alegre à região em instantes e voilá, eis a vida da gente como ela é!
Verdade seja dita: Jaime Monjardin é um cara honesto! Ele disse com todas as letras no Jornal do Almoço (26/9): “Não esperem continuidade na novela”, querendo dizer com isso que a nossa geografia será submetida aos critérios da chamada “licença poética”.
Licença poética uma ova! Essa é a forma reiterada de massificação de nossa cultura. A conquista da hegemonia na televisão tem um preço: a homogeneização da cultura, a padronização dos signos na televisão que não poupa ninguém. Há algo errado neste mundo onde tudo é sempre igual e onde sempre lhe dão mais do mesmo. Ele parece a realidade, mas não é: as cenas devem-se passar nas ruas chiques de Porto Alegre, ou nas paisagens paradisíacas da serra, pois para os roteiristas e produtores é o que o público quer ver, a nossa vida. Não, não é a nossa vida, é uma reconstrução inviesada dela.
No fundo, no fundo não é a nossa vida porque é a vida carioca que mais uma vez os roteiristas e autores querem retratar, com fachada gaúcha como pano de fundo. E dá-lhe um dia a dia sem expressões idiomáticas, com geografia que não corresponde ao real, com hábitos deslocados da terra apresentados como se fossem dela. A versão gaúcha proposta pela Globo é semelhante ao café descafeinado de que fala Slavoj Zizek: a imagem vendida não quer ofender ninguém e pede até que nem nos comprometamos com ela. Tudo é permitido a nós consumidores e podemos desfrutar de todas as belas imagens da serra gaúcha desde que desprovidas de toda a sua substância.
É a caracteristica da produção de mercadorias do capitalismo em que vivemos. Hoje, tudo o que nos cerca deve conter em si o remédio para os males que causa, diz Zizek. Você pode beber todo o café que quiser, já que ele é descafeinado, expressão de nosso panorama ideológico atual. Neste sistema você pode desfrutar das coisas desde que sem a sua essência e voilá ei-nos diante da serra gaúcha no inverno sem frio, mergulhando nus em lagos gelados com biquíni na bagagem para consumo em rede nacional. Nessa novela na serra ninguém treme do frio? Cadê o frio? É como o carro que você não precisa mais dirigir, e que numa tacada, tira todo o prazer que a direção provoca. Monjardin, menos....aqui nos comprometemos com a realidade sim: frio já!.Cadê o inverno gaúcho? Como diria Robin “santa enganação Batman!”

domingo, 10 de julho de 2011

Decifra-me ou te devoro

O que torna profundamente atual o pensamento do esloveno Slavoj Zizek, de quem a editora Boitempo acaba de lançar Em Defesa das Causas Perdidas e Primeiro como Tragédia, depois como Farsa, é seu trabalho sobre a ideologia. Não se trata da retomada de O Mapa da Ideologia, obra sua já conhecida dos brasileiros, mas do aprofundamento de aspectos de O Sublime Objeto da Ideologia (Siglo XXI, 2005, inédito no Brasil).

Nesse livro de 2005, Zizek integrou de forma original as percepções psicanalíticas da fantasia à crítica marxista da ideologia. Isto lhe lhe permitiu, pela primeira vez, propor uma teoria de como funciona a ideologia no plano subjetivo: “Não existe a crença comum, o que existe é a crença em que os outros creem”.Zizek reconstrói os processos que fazem homens, em determinadas circunstâncias, justificarem e darem um ar de verdade a uma mentira, numa espécie de construção coletiva . O “vamos fingir que as regras funcionam” oculta, entretanto, o fato de que as instituições no capitalismo contemporâneo estão falidas e ninguém de fato acredita nelas. Agimos como na fantasia de Papai Noel: nem os adultos nem as crianças acreditam mais nele. Pior: agimos assim com nossas instituições, inclusive com a democracia. A subjetividade também está sob tremenda pressão da ideologia: cuidado, o capitalismo quer dar um significado a sua vida, diz Zizek. Ele toma como exemplo os anos que passamos consumindo publicidade, uma das melhores formas de se pensar o que acontece com nossa subjetividade. Nos anos 1960, a propaganda automobilista vendia as qualidades de um carro; nos anos 1970, o status que ele oferece ao consumidor para finalmente, hoje, ser a promessa de libertação da sociedade opressora.

Para Zizek, o capitalismo contemporâneo é profundamente ideológico: “A política desse capitalismo é a despolitização para que não haja mais uma ideologia clara”. Na sociedade de consumo (um conceito caro a Baudrillard), a ideologia vendida é a ideologia da diversão como na expressão latina Carpe diem (“Aproveitem o dia”). Nada mais comprovador do conceito de Lacan – apropriado por Zizek – de gozo excedente, um gozo que nos suborna para mascarar os nossos problemas. A solução, para Zizek, é o retorno à noção de economia política tal como proposta por Marx: politizar a economia, e é nesse sentido que Zizek mais se aproxima de outro teórico do marxismo, Robert Kurz.

A ideologia do capitalismo contemporâneo, sustenta Zizek, quer que acreditemos que a economia não tem nada haver com a política: ela quer uma sociedade apolítica, e para isso constrói a ideia de que é besteira discutir política. Nisto reside a radicalidade de Zizek: ele quer que a democracia se garanta sem as influências das pressões de mercado.Yannis Stavrakakis, em A Esquerda Lacaniana – Psicanálise, Teoria, Política (Fondo de Cultura Econômica, 2010, inédito no Brasil), deu-se conta que o pensamento de Zizek consolidou-se ao longo dos últimos 15 anos, período em que a psicanálise e a teoria lacaniana passaram a ser recursos importantes na reorientação da teoria política contemporânea. Essa posição, para qual boa parte dos cientistas políticos torce o nariz, origina-se no próprio pensamento de Lacan, que não foi apolítico – ao contrário, fez críticas ao American way of life, ao capitalismo americano e à sociedade de consumo, o que o levou a associar sua noção de mais-gozo à noção de mais-valia de Marx.

Nesse caminho estão Zizek, Cornelius Castoriadis, Alain Badiou e especialmente Ernesto Laclau, para quem “a teoria lacaniana aponta ferramentas decisivas para a formulação de uma teoria da hegemonia”, daí a definição de seu horizonte teórico-politico em termos de “esquerda lacaniana”, nítido campo de intervenções políticas e teóricas a partir da psicanálise – mas não somente dela – que parte para a crítica da hegemonia capitalista contemporânea.Em Primeiro como Tragédia, depois como Farsa, lançado simultaneamente pela Verso (Londres) e Flamarion (Paris) em 2009, Zizek pergunta se estamos preparados para a história que se impõe sobre nossas cabeças desde os ataques de 11 de Setembro. Ele mostra as manobras por detrás das ideologias levantadas pela atual crise (2008) e que levou bilhões de dólares para os bancos. Para Zizek, o que é profundamente ideológico é tratar as crises do capitalismo como algo estranho ao próprio capitalismo, ideia que deseja vender a imagem de um mercado capitalista regulado de outro modo. Ao contrário, ele nos mostra cada vez mais o capitalismo sobrevivendo abaixo de terapias de choque, num mercado que exige violência extramercado para seu funcionamento.

Já na obra Em Defesa das Causas Perdidas, Zizek vai contra o pensamento hegemônico que vê a democracia liberal, as vezes dita pós-moderna, como o melhor dos mundos frente ao passado das lutas comunistas. Isso não quer dizer que as “causas perdidas” que defende estejam abrigadas pelo teto do Fórum Social Mundial: para Zizek, seu lema “Um outro mundo é possível” mostra que seus protagonistas ainda relacionam-se demais com a estrutura já posta pelo capitalismo. Para fazer seu caminho, ele faz a opção por retornar ao marxismo a sua maneira, o que tem o peculiar efeito de chamar a atenção mundial sobre sua obra: não há dúvida, o que Zizek faz é tornar sedutor o marxismo para as novas gerações. Para isso articula Lacan, Hegel e Marx com cinema, música, cultura popular e a crítica dos objetos de consumo. Em Defesa das Causas Perdidas, entretanto, padece do problema comum aos grandes pensadores contemporâneos: como produzem demais, escrevem demais, torna-se frequente encontrar traços de obras anteriores nas seguintes. Não há como deixar de ver no capítulo 2, Lições do Passado, o eco de suas obras anteriores sobre Robespierre e Mao, ou dos estudos anteriores que fez sobre o stalinismo publicados em espanhol. Há, entretanto, reflexões sobre o pensamento de Heidegger extremamente originais e que não haviam aparecido anteriormente, contudo. E é claro, Zizek sempre é um grande contador de causos que sintetizam brilhantemente suas ideias. Em um determinado momento de sua obra, ele cita a ficha de um hotel americano: “Prezado cliente: para garantir que você vai desfrutar sua estadia conosco, o fumo está totalmente proibido neste hotel. Qualquer violação deste regulamento resultará numa multa de US$ 200”. Assim é o capitalismo, diz Zizek: estamos condenados a ser castigados se recursarmos a desfrutá-lo plenamente. Zizek quer nos mostrar o cinismo do capitalismo contemporâneo em sua caminhada em direção a um capitalismo autoritário, contrário ao direitos humanos, como anuncia o caso chinês. E o grande perigo é que ele pode estar certo.

Publicado no Caderno de Cultura de Zero Hora, 8/6/2011

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Primeiro como tragédia, depois como farsa




No documentário Examined Life (2008), de Astra Taylor, Slavoj Zizek aparece em um imenso lixão americano vestido como um trabalhador do meio, numa imagem que não poderia ser melhor para resumir seu pensamento: lá onde fica aquilo que jogamos fora, aquilo que não damos importância e não perguntamos para onde vai está a metáfora do capitalismo que vivemos hoje, um sistema que se mostra maravilhoso em sua forma e mercadorias, mas que faz isso apenas mostrando um lado da história e ocultando todas as lutas sociais. Aquilo que não nos é dito e que leva a sua aceitação tem um nome para Zizek: ideologia.



Pois é justamente a análise da ideologia do período entre o 11 de Setembro e o colapso financeiro mundial de 2008 que é o centro de sua argumentação em Primeiro como tragédia, depois como farsa. Zizek, junto com Alain Badiou e Ernest Laclau, constitui o centro da “Nova Esquerda Lacaniana”, cuja principal característica é aplicar conceitos da psicanálise e da filosofia à critica da ideologia liberal. É o que faz em riqueza de detalhes nesta obra ao mostrar como a tese de Fukuyama do fim da história e a crença na democracia liberal capitalista finalmente foi vencida – ou morreu duas vezes. Primeiro, com o 11 de Setembro, que simbolizou o colapso da utopia política democrática liberal – sem, no entanto, afetar a face econômica – e segundo, com a crise financeira de 2008, símbolo do fim da face econômica do sonho de Fukuyama. A análise das condições e consequências dos acontecimentos desse período e da ideologia capitalista que determina a sua percepção faz-se no meio de uma compreensão engajada – Zizek adota o lado da defesa da idéia comunista, que ainda vive.



Renovando o pensamento de esquerda, com um texto repleto de ironia e exemplos notáveis, Zizek desvela a face perversa de um capitalismo cínico que se diz democrático, mas que oculta em seu interior um monstro autoritário prestes a nascer.


Publicado no Le Monde Diplomatique, julho de 2011

quarta-feira, 6 de julho de 2011

A Letra Escarlate das Escolas



A Letra Escarlate é um filme de Roland Joffé que conta a estória de Hester Prynne (Demi Moore), uma mulher que vive em 1666 e é submetida a humilhação de usar uma letra "A" vermelha marcada a ferro em sua carne. O efeito é devastador, fazendo-a sentir vergonha de si mesmo ao mostrar para todos o pecado que cometeu contra seu marido, o adultério.

Algo semelhante ocorre quando se trata da proposta da Câmara dos Deputados defendida por Gustavo Ioschpe (ZH, 4/6/2011). Ela é, de certa forma, a Letra Escarlate das Escolas. Ioschpe é muito qualificado, é verdade, mas qualificado em quê? Numa área denominada de Economia da Educação, que usa a econometria como ferramenta para medir de maneira quantitativa o impacto de diversas variáveis sobre aprendizagem.

Nada mais distante das idéias de autores como Henry Giroux, Rubem Alves e Marilena Chauí. Para estes autores, subjaz a discussão a definição da lógica de mercado como o portador da racionalidade sociopolitica e agente do bem-estar no interior da escola. Neste campo situam-se todos aqueles que vêem os direitos sociais apenas como mais um horizonte de serviços do estado a serem definidos pela ideologia do mercado, outra forma de encolher o espaço público democrático dos direitos à educação e ampliar nele o espaço do privado. É o caso de Ioschpe.

No outro campo estão os defensores da autonomia da escola que criticam o desejo de ver suas ações mediadas por termos como rendimento escolar e serem submetidos à coleta de indicadores de quantidade e não qualidade. Eles reduzem a autonomia escolar pelo estabelecimento de metas baseadas em indicadores de desempenho e a gestão de receitas e despesas. Para os que pleiteiam anotar nas fachadas escolares o conceito do IDEB, a nossa Letra Escarlate, autonomia escolar é sinônimo de gerenciamento empresarial da escola. Nada mais perverso.

Marilena Chauí definiu o tipo de qualidade perseguida por este regime: aqui “qualidade”, competência e excelência existem sim, mas não no sentido que aspiram professores e estudantes, mas no sentido daqueles pré-requisitos que atendem “às necessidades de modernização da economia”, numa palavra, as chamadas exigências da produtividade. Para Chauí, ela é baseada em três critérios: quanto uma escola produz, em quanto tempo produz e qual o custo do que produz e, voi-lá, eis-nos diante do campo da econometria de Ioschipe que os educadores repudiam.

O problema é que discute-se critérios da qualidade do trabalho escolar como se fossem os mesmos da produtividade capitalista - quantidade, tempo e custo – e não são. Os professores que questionam este modelo não são incompetentes como diz Ioschpe, apenas buscam qualidade e não quantidade em seu trabalho.


Publicado em Zero Hora, 06/6/2011

terça-feira, 5 de julho de 2011

Pequena história do teatro gaúcho

A importância da história do Teatro Gaúcho está no fato de que seus produtores, atores e textos assumiram uma posição que extrapolou as fronteiras do Rio Grande do Sul ao longo do século XX. Por esta razão era de se pensar que sua historia fosse uma grande evolução, quando na verdade não é uma seqüência fortuita de mudanças, estilos ou nomes, mas processos estruturados que acompanham a história da sociedade gaúcha no Brasil. As grandes mudanças tecnológicas, comportamentais e culturais do século XX afetaram profundamente o Teatro Gaúcho, colocando questões fundamentais para a área teatral na virada do século XXI. Este teatro, que conheceu nos anos 70 e 80 do século XX o processo de profissionalização, é um campo repleto de debates que envolvem discussões estéticas, políticas e formas de sociabilidade de grupos teatrais, ainda pouco conhecido das novas gerações. Uma exposição, a ser inaugurada no próximo dia 16 de agosto na Câmara Municipal, mostra que o longo camiinho em direção a profissionalização foi lento e nele, o teatro gaúcho oscilou sempre entre as mesmas questões: a relação do teatro amador com profissional, a problemática da distinção entre teatro de alto nível e teatro para as massas, a busca pelo apoio privado e a demanda por políticas públicas, chegando-se hoje, às vésperas de mais uma edição do projeto Porto Alegre em Cena, a grande questão: o Festival, mais do que uma política pública, não teria se transformado no espelho no qual o teatro gaúcho se olha, mas que, paradoxalmente, não quer se enxergar?

Para entender esse paradoxo e preciso voltar à história. O teatro foi introduzido no Brasil no período colonial como instrumento para catequese. Com o desenvolvimento da atividade econômica o teatro passou a fazer parte das atividades cívicas e religiosas. O amadorismo predominou no inicio do teatro brasileiro e gaúcho: as encenações eram interpretadas por todos: padres, freiras, índios, escravos alforiados, portugueses e jovens brasileiros. Em 17 de junho de 1771 entra em vigor Alvará Régio que tem o objetivo de incentivar a construção de “teatros públicos bem regulados, pois deles resulta a todas as nações grande esplendor e utilidade”. Em Porto Alegre, as primeiras casas de espetáculos surgiram ao longo do século XVIII, em modestos padieiros do Largo da Quitanda e do Largo da Forca. Já nesta época, os poderes públicos, através da Câmara Municipal, participam da vida teatral, acompanhando a construção da “Casa da Comédia”, construída em 1794 as “festas reais”.

A vinda da família real ao Brasil, em 1808, impulsionou a construção de teatros no Brasil. Em Porto Alegre, é construída a “Casa da Ópera” na Rua Uruguai, também chamado Beco da Ópera. Na cidade surge ainda o Teatro Dom Pedro II, na Rua Mal Floriano, chamado de “teatrinho”, que funcionou até a inauguração do Teatro São Pedro, em 1858, o primeiro grande teatro de Porto Alegre. Nos subúrbios, pequenos teatros tentam organizar-se, como o Teatro Variedades, na Voluntários da Pátria, em 1879, o Teatro Partenon, da Sociedade Dramática Melpômene em 1889, o Teatro Felix da Cunha, na Praça Menino Deus, entre outros. Datam desta época as principais questões do campo teatral até hoje: dividido entre adotar uma estética nacional ou européia, entre a valorização do teatro amador ou do teatro profissional, entre a produção de um teatro para elites ou teatro para as massas, o teatro gaúcho inicia o século XX com angústias e inquietações.

Em 1919, surgem as primeiras iniciativas com apoio da municipalidade para impulsionar o campo teatral. É o nascimento do projeto de construção de um teatro municipal, defendido pela classe teatral mas que só se concretiza meio século mais tarde, quando é instalalado o Teatro de Câmara, na Rua da República, o Teatro Renascença e a Sala Álvaro Moreira, a partir dos anos 70. Enquanto o inicio do século XX vê a emergência das vanguardas artísticas, com o teatro do alemão Bertolt Brecht, Frederico Garcia Lorca e Vladimir Maiakovski, onde expressionistas, surrealistas e simbolistas revolucionam a encenação no mundo, no Brasil impera o teatro de revista voltado para as massas. A nova dramatugia ainda levaria anos para inspirar o teatro brasileiro e gaúcho. O período do entre guerras foi de grande importância para o teatro brasileiro, já que a guerra colocava riscos para as companhias européias chegarem ao Brasil e impulsionava o trabalho dos grupos locais.

Um dos primeiros grupos de teatro amador do Rio Grande do Sul foi o Teatro do Estudante. Criado em 1941 inspirado no Teatro do Estudante do Brasil era patrocinado pela união Estadual dos Estudantes. Foi o berço de atores como José Lewgoy e Walmor Chagas que, junto com outros grupos, fundou em 1948 a Federação Rio-Grandense de Amadores Teatrais (FRAT). Para Walmor Chagas, o que diferenciava o Teatro do Estudante dos demais grupos era a vertente mais “intelectualizada”, universitária, com um “repertório universal”, diferente do teatro mais popular feito por Procópio Ferreira, Renato Viana e Dulcina no Rio de Janeiro. O Teatro do Estudante viajou em 1954 para o interior do Rio Grande do Sul e no ano seguinte o grupo dividiu-se em três novos grupos amadores: a Comédia da Provinicia, o Teatro Universitário da União Estadual dos Estudantes (liderado por Antonio Abujamra) e o Clube de Teatro da Federação de Estudantes Universitários do Rio Grande do Sul, liderados por Cláudio Heemann. Enquanto que o Clube de Teatro não tinha diretor artístico nem base financeira, e vivia discutindo, lendo e ensaiando peças, o Teatro Universitário contava com um estatuto próprio e era definido como teatro amador. Nesse momento, segundo Silvia Ferreira, diretora do Grupo Comédia da Província, ampliam-se os espaços dedicados ao teatro na imprensa e as verbas governamentais começam a chegar às representações teatrais.

O debate entre teatro amador e profissional foi constante durante a década de 50. As primeiras tentativas de profissionalização ocorrem com a Sociedade de Teatro Studio, que possuía uma equipe com funções bem definidas. Paradoxalmente o teatro gaúcho ainda era visto, pelos artistas do centro do país, como um teatro predominantemente amador. A idéia de profissionalização avança mais em 1958, com a criação do Curso de Arte Dramática na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que atendia a necessidade de sistematização do ensino teórico e a necessidade de um mergulho na prática da interpretação, base para um teatro profissional em Porto Alegre. Foi convidado para dirigir o curso o diretor italiano Ruggero Jacobi. O curso iniciou com dois cursos, o de Arte Dramática, para formar atores, com teste vocacional prévio, e o Curso de Cultura Teatral, para interessados. Uma demanda para as políticas públicas foi a necessidade de criação de um teatro municipal para as atividades cênicas.

Um dos primeiros grupos de teatro a surgir com a bandeira da luta pelo profissionalismo foi o Teatro de Equipe, fundado por Mario de Almeida, Paulo José, Paulo Cezar Pereio e Milton Matto. Depois, Rugerro Jacobi, ao criar o Teatro do Sul, também pensava em termos de profissionalização, defendendo a idéia de patrocínio por empresas e a necessidade dos poderes públicos financiarem a atividade teatral como fator de cultura para as massas. Era o movimento de renovação do teatro brasileiro chegando ao Rio Grande do Sul. Em 1960 o Teatro de Equipe inaugura seu teatro e caminha em direção a profissionalização, com espetáculos no interior com grande público. Entretanto, isto não é suficiente para manter os artistas e muitos vão para o centro do país, como Antonio Abujamra e José Lewgoy. Os anos 60 foram de crise do teatro, envolvido com problemas como a falta de público, recursos e com a interrupção de iniciativas, como a do Teatro de Equipe, que pára de funcionar em 1962, o que levou a classe teatral a reinvidicar maior participação do poder público. O Estado atuava, mas não do modo desejado: era o problema da censura, que levou ao desaparecimento do teatro secundarista, resistindo apenas na Universidade e em alguns cursos livres de teatro. Em 1967, é criado o Grupo de Teatro de Arena em Porto Alegre, por alunos do CADE e do grupo de Teatro Independente, funcionando entre 64 e 65.

A partir de 1972, o Departamento de Artes Dramáticas da UFRGS (DAD), o teatro de Arena e o grupo Província, com Luis Paulo Vasconcellos e outros concentram as iniciativas teatrais. No final de 1978, Geisel havia regulamenta a profissão de artista, que passou a possuir um sindicato e um registro de trabalho e que permitiram a grupos de atores usarem a pessoa jurídica do próprio sindicato para trabalhar, para superar a burocracia. Nesse período o Estado atuou frente ao teatro de duas formas: como apoiador e como censurador. Durante o regime militar, a censura foi comum. Para as produções culturais era necessário fazer uma apresentação para a censura antes da estréia, sendo geralmente o último ensaio. Havia o recurso, é claro, de anunciar-se não como um espetáculo, mas como leitura dramática, o qual não exigia censura prévia. Como não era permitido cobrar ingressos, daí nasceu o hábito de passar o chapéu ao final de cada espetáculo.

Mas este também foi o período do Plano de Interiorização e Ação Cultural do Departamento de Assuntos Culturais da Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, que patrocinava espetáculos e os levava para o interior do estado em grandes turnês. Foco de polêmicas, porque somente apóia espetáculos infantis, visando criar hábitos nas comunidades do interior e beneficiar alunos de escolas públicas. Teve o mérito de criar, por outro lado, um mercado de trabalho para artistas locais, criando condições de sobrevivência para muitos artistas. Em 1976 foram promovidos 540 espetáculos.Mas também era o periodo da censura. Por conta dessa política foram publicados manifestos contra a ação do Estado, como, por exemplo, quando da proibição da peça O Aprendiz de Feiticeiro, de Maria Clara Machado, uma peça infantil e quando o Teatro de Arena foi fechado por conta da leitura dramática da peça “Rasga Coração”, texto proibido de Oduvaldo Vianna Filho, anos depois.O reforço do apoio público vem a partir de 1975, quando o Serviço Nacional de Teatro começou a financiar grupos que atendessem determinados requisitos em suas montagens, além de subvencionar companhias profissionais que quisessem viajar para outros centro. Isto levou ao governo estadual a patrocinar um projeto de interiorização do teatro, mais voltado para peças infantis. Era a idéia de formação de público consumidor de teatro a ocultar as iniciativas mais críticas do meio. No inicio dos anos 80, Porto Alegre possuía dois núcleos teatrais fortes, o Teatro de Arena e o Grupo Província, com suporte do DAD, mas a censura dificultava os trabalhos: faltavam salas públicas e amparo governamental para os grupos existentes mais críticos e os artistas reivindicavam a regulamentação da sua profissão.

Uma das distinções da área cultural era que o teatro era a única área de produção artística em que existia um curso superior entre os anos 70 e 80. Nesse contexto existiam basicamente dois tipos de grupos de teatro em Porto Alegre: os grupos de criação coletiva, influenciados pelo método de trabalho do grupo carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone, onde havia uma grande divisão de tarefas e a produção era coletiva, e os grupos que funcionavam num formato mais tradicional trabalhando com textos de autores teatrais, como os grupos do Grêmio Dramático Açores, Vende-se Sonhos, Faltou o João, entre outros. A divisão entre teatro intelectualizado, como os trabalhos do Faltou o João, e propostas mais lúdicas, como a do grupo Vende-se Sonhos. O Balaio de Gatos, considerado o mais “maluco” de sua geração, pretendia encarnar a vanguarda e estética punk em seus trabalhos. Outros, tiveram a criação de peças ontológicas como Bailei na Curva, de 1983, do grupo Do Jeito que Dá e finalmente, existiam aqueles grupos onde a idéia de liderança do trabalho é muito forte, como no grupo Tear dirigido por Maria Helena Lopes e o Teatro Vivo de Irene Brietzke. Eram grupos de pesquisa, voltadas para a profissionalização, chegando a radicalização, como Oi Nóis Aqui Traveiz.

O inicio da profissionalização do teatro gaúcho inicia com a peça Bailei na Curva, que contava com um produtor, Geraldo Lopes, da Opus Produções, responsável por trazer grandes shows para Porto Alegre. Ele deu uma noção profissional ao teatro, com novos equipamentos e uma preocupação com o acabamento dos espetáculos, processo que visava administrar melhor a execução da peça, sedimentando o mercado e o espaço cultural. A partir de então ficou claro a necessidade dos grupos em trabalharem com um produtor teatral, ainda que a criação continuasse coletiva. Mas os atores ainda dependiam para sobreviver de adotar outras formas de trabalho nesse período, como locução, dublagem, publicidade e até ministrando aulas. O Estado e o municipio já contavam com uma organização voltada para o Teatro, na Secretaria Estadual da Cultura administrando o Teatro de Arenae o Teatro São Pedro e a Secretaria Municipal de Cultura com o Teatro de Cãmara, Teatro Renascença e outros espaços. Em Porto Alegre, em 1991, Luciano Alabarse assume a Coordenação de Artes Cênicas da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, cargo em que permanece até 1994, sendo responsável por inúmeros projetos que movimentam a cena porto-alegrense. Entre suas iniciativas, estão a criação do projeto Novas Caras, em que artistas iniciantes têm a oportunidade de mostrar seu trabalho nos teatros municipais, e a Sessão Maldita, realizada no porão do Teatro Renascença, que semanalmente, à meia-noite, apresenta espetáculos de caráter experimental.

O “Porto Alegre em Cena” constituiu, depois das iniciativas dos anos 70, o grande esforço de atuação do Estado no campo teatral. Idealizado por Luciano Alabarse com patrocínio da pela Prefeitura e apoiadores, teve sua curadoria entre 1994 a 2001 e de 2005 em diante e provoca uma transformação fundamental no modo de atuação do Estado no campo teatral. Parcerias, mas também, megaproduções transformam-se no modo de ação das políticas públicas para a área. O evento é considerado um dos maiores festivais de teatro da América Latina, e traz, anualmente, no mês de setembro, atrações nacionais e internacionais à capital gaúcha, além de peças produzidas no Rio Grande do Sul. Durante os seus primeiros quinze anos de existência, o Porto Alegre em Cena teve diferentes e variados espetáculos. Desde os clássicos de Shakespeare Hamlet e Romeu e Julieta, Le Costume de Peter Brook (um dos maiores diretores teatrais do mundo), até obras como Cacilda! (que comenta a história do teatro brasileiro, com a presença de Zé Celso, que é considerado o mais provocador dos encenadores brasileiros). E também teve grandes polêmicas, como a obra Oresta do grupo italiano Socìetas Raffaello Sanzio, que foi dirigida por Romeo Castelucci e acabou se sagrando como uma obra bastante polêmica que teve grande audiência negativa por parte da plateia; pois se tratava de uma obra que trazia à cena animais vivos e tinha por personagens homens com problemas físicos e mentais. O Porto Alegre em Cena colocou Porto Alegre no cenário do teatro internacional com espetáculos variavam entre grandes clássicos e obras modernas; e, também, obras que recebiam críticas boas e ruins.

O Porto Alegre em Cena é o espelho do teatro gaúcho e onde, paradoxalmente, ele não quer se enxergar. Suas virtudes, sua história, seus vícios, tudo vêem se refletir ali. Isso acontece porque, de certa forma, o que faz em seu interior é atualizar os dilemas da história da teatro gaúcho. Todos admiram o projeto, mas paradoxalmente, as maiores críticas vem da área teatral, que nele não deseja se mirar. É uma política pública que recebe elogios porque colocou o mundo teatral em Porto Alegre, mas que recebe também críticas pelo pouco espaço que concede a produção local. Nele pode-se perguntar se os grupos de Porto Alegre participam menos porque são ainda amadores e o os do centro do país participam mais porque são profissionais; pode-se indagar se os espetáculos são de um teatro para elite ou se são voltados para as massas e finalmente, pode-se perguntar se os textos locais são superiores ou inferiores aos universais. Tudo é recolocado pelo Porto Alegre em Cena, e é este justamente o seu mérito. Todos veem os espetáculos do Porto Alegre em Cena, mas muitos atores e produtores gaúchos ainda lhe torcem o nariz. É deste espelho que se trata, e a idéia que pode contribuir para os debates é se o teatro gaúcho está vivo não porque tem uma política cultural consagrada para a área, mas porque através dela se recolocam novamente os temas e dilemas do teatro gaúcho. Numa palavra, o valor do Porto Alegre em Cena esta no fato de que rememora a identidade cultural gaúcha, a atualiza, pois coloca, de uma forma ou de outra, a grande questão: que teatro queremos nós, gaúchos, fazer? Prova de que, ao iniciar o século XXI, nosso teatro padece dos males e virtudes de um século atrás, mas com a disposição de um profundo autoquestionamento.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Homenagem à Loureiro



Num momento em que o presidente do Senado, José Sarney, revela sua intenção em apagar parcela da memória daquele Legislativo, é salutar a iniciativa do vereador João Dib (PP). Para lembrar a passagem do 47º aniversário de morte do ex-prefeito José Loureiro da Silva, o parlamentar promoveu, no dia 3/6, novamente ato solene que faz há mais de 18 anos junto ao monumento. O simples fato de Dib não esmorecer em suas homenagens deveria ser motivo de admiração. Na oportunidade, Leandro Telles, emocionado, lembrou os principais momentos da trajetória do ex-prefeito. Pode-se imaginar que vêm à memória de João Dib as discussões entre ele e Loureiro para a conclusão da avenida Farrapos, pela criação do Hospital de Pronto Socorro, para a construção do Centro de Saúde Modelo, e, principalmente, o quanto foi difícil a construção do primeiro Plano Diretor de Porto Alegre. Mas tudo isso é mais do que a demonstração de valor à herança de um notável prefeito. A estátua que observa o projeto do aeromóvel quase parece dizer: “Se fosse comigo, já estava concluído”. É disto que se trata: o que a memória de Dib preserva é a defesa de uma utopia para a cidade. Ela é a defesa do ideal de modernização da Capital. Como Robert Musil define, utopia tem mais a ver com “senso de possibilidade” do que com “senso de realidade”. Isso Loureiro tinha muito. Em tempos de preparativos para mais uma Copa do Mundo, nada mais necessário.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Zizek: cuidado, ele pode estar certo!




O que a esquerda vem fazendo nas últimas décadas é seguir brutalmente o destino de render-se, de acomodar-se, de fazer os "compromissos necessários " com o inimigo declarado. Slavoj Zizek









Diz-se que quando pediram a Slavoj Zizek para contar um segredo, ele teria respondido "- o comunismo vai ganhar". A frase resume o espírito daquele que tem sido um dos mais importantes teóricos de esquerda da atualidade. Zizek é o que podemos chamar de filósofo "arrasa-quarteirão": a palestra que proferiu no Salão Pedro Calmon da Faculdade de Economia da UFRJ, na praia Vermelha, em 2008, foi um imenso sucesso. Emir Sader relata que ao final da conferência, sob salva de palmas, disparou "– Chega! Guardem suas energias para quando chegar o comunismo". Em 2003, na Argentina, não foi diferente: Zizek reuniu mais de dois mil e quinhentos estudantes e professores atentos durante horas, experiência magistralmente registradas no documentário Zizek! de Astra Taylor. Paradoxalmente, este ícone da esquerda é o que mais dispara críticas à esquerda atual " o que a esquerda vem fazendo nas últimas décadas é seguir brutalmente o destino de render-se, de acomodar-se, de fazer os "compromissos necessários " com o inimigo declarado. Representa o socialismo, porém pode seguir plenamente o thatcherismo econômico; representa a ciência, mas pode seguir plenamente o império da multidão de opiniões, representa a democracia popular verdadeira, porém também pode jogar o jogo da política como espetáculo e dos pactos eleitorais; representa a fidelidade a certos princípios, porém pode ser totalmente pragmático". Para a esquerda local, já se disse tudo, menos que é masoquista. Agora se pode dizer.

Zizek retornou novamente ao Brasil para duas conferências: a primeira em São Paulo (21/5), no Sesc Pinheiros, integrando a programação do Seminário "Revoluções: uma política do sensível" e no Rio de Janeiro (24/05) no Cinema Odeon Petrobrás. Em ambos fez a conferência "Revoluções: quando a situação é catastrófica, mas não é grave" e o lançamento de seus dois novos livros, "Em defesa das causas perdidas" e "Primeiro como tragédia, depois como farsa", ambos pela Boitempo. A promoção reúne entidades de peso como a FLACSO, CLACSO, Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, PUC-RJ entre outras. Intelectual de produção vasta, sua trajetória é pouco conhecida dos brasileiros. Nascido em 1949 em Liubliana, Eslovênia, Zizek concluiu seu bacharelato em Artes, Filosofia e Sociologia em 1971 e obteve seu doutorado em Filosofia pela Universidade de Liubliana em 1985. Nos anos 70 fez parte da Escola da Eslovênia, onde estudou o pensamento de Hegel e nos anos 80 militou no movimento alternativo, chegando a ser candidato a Presidente de seu pais. Tomou contato com o pós-estruturalismo francês, estudando Jacques Lacan e escreveu uma imensa obra que inclui Porque não sabem o que fazem (1991), Goza teu síntoma!(1992), As Metastases do gozo (1994), O Espinoso Sujeito (1999), Bem vindo ao deserto do real (2003), Visão em Paralaxe (2008) e Lacrimare rerum (2009), entre outras.

O que torna profundamente atual o pensamento de Zizek é o seu trabalho sobre a ideologia. Não se trata da retomada de sua obra "O mapa da Ideologia", conhecida dos brasileiros, mas do aprofundamento de aspectos de sua obra pouco conhecida "O sublime objeto da ideologia" (2005) em que integrou de forma original as percepções psicanalíticas da fantasia à critica marxista da ideologia. Isto lhe lhe permitiu, pela primeira vez, propor uma teoria de como funciona a ideologia no plano subjetivo "Não existe a crença comum, o que existe é a crença em que os outros crêem." Zizek reconstrói os processos que fazem que homens, em determinadas circunstâncias, justifiquem e dêem um ar de verdade a uma mentira, numa espécie de construção coletiva . O "vamos fingir que as regras funcionam" oculta, entretanto, o fato de que as instituições no capitalismo contemporâneo estão falidas e ninguém de fato acredita nelas. Agimos como na fantasia de Papai Noel: nem os adultos, nem as crianças, acreditam mais nele. Pior: agimos assim com nossas instituições, inclusive com a democracia. A subjetividade também está sobre tremenda pressão da ideologia: cuidado, o capitalismo quer dar um significado a sua vida, diz Zizek. Ele toma como exemplo os anos que passamos consumindo publicidade, uma das melhores formas de se pensar o que acontece com nossa subjetividade. Nos anos 60, a propaganda automobilista vendia as qualidades de um carro; nos anos 70, o status que ele oferece ao consumidor para finalmente, hoje, ser a promessa de libertação da sociedade opressora. Para Zizek, o capitalismo contemporâneo é profundamente ideológico "a política desse capitalismo é a despolitização para que não haja mais uma ideologia clara." Na sociedade de consumo (Baudrillard), a ideologia vendida é a ideologia da diversão como na frase do filme Sociedade dos Poetas Mortos "Carpe Diem" (aproveitem o dia!). Nada mais comprovador do conceito de Lacan - apropriado por Zizek - de gozo excedente, um gozo que nos suborna para mascarar os nossos problemas. A solução, para Zizek, é o retorno à noção de economia política tal como proposta por Marx: politizar a economia e é nesse sentido que Zizek mais aproxima-se de outro teórico do marxismo, Robert Kurz. A ideologia do capitalismo contemporâneo, defende Zizek, quer que acreditemos que a economia não tem nada haver com a política: ela quer uma sociedade a-política, e para isso constrói a idéia de que é besteira discutir política. Nisto reside a radicalidade de Zizek: ele quer que a democracia se garanta sem as influências das pressões de mercado. E claro que os defensores do mercado rugem sem cessar quando ouvem falar de Zizek,chamando-o de intelectual bufão.

Yannis Stavrakakis, em La Izquierda Lacaniana – psicoanálisis, teoria, política (FCE, 2010), mostra que o pensamento de Zizek consolidou-se ao longo dos últimos quinze anos, período em que a Psicanálise e a Teoria Lacaniana passaram a ser recursos importantes na reorientação da teoria política contemporânea. Essa posição, para qual boa parte dos cientistas políticos torce o nariz, origina-se no próprio pensamento de Jacques Lacan, que não foi apolítico, ao contrário, fez criticas ao american way of life, ao capitalismo americano e a sociedade de consumo, o que o levou a associar sua noção de mais-gozo à noção de mais-valia de Marx. Nesse caminho estão Zizek, Cornelius Castoriadis, Alain Badiou e especialmente Ernesto Laclau, para quem "a teoria lacaniana aponta ferramentas decisivas para a formulação de uma teoria da hegemonia", daí a definição de seu horizonte teórico-politico em termos de Esquerda lacaniana, nítido campo de intervenções políticas e teóricas a partir da psicanálise - mas não somente com ela - parte para a critica da hegemonia capitalista contemporânea.

Em "Primeiro como tragédia, depois como farsa", lançado simultaneamente pela Verso ( Londres) e Flamarion (Paris) em 2009, Zizek pergunta se estamos preparados para a história que se impõe sobre nossas cabeças desde os ataques de 11 de setembro. Ele mostra as manobras por detrás das ideologias levantadas pela crise de 2008 e que levou bilhoes de dólares para os bancos. Para Zizek, o que é profundamente ideológico é tratar as crises do capitalismo como algo estranho ao próprio capitalismo, idéia que deseja vender a imagem de um mercado capitalista regulado de outro modo. Ao contrário, ele nos mostra cada vez mais o capitalismo sobrevivendo abaixo de terapias de choque, mercado que exige violência extra-mercado para seu funcionamento. Para Zizek, a tarefa da esquerda critica é expor as características mortais do sistema capitalista mundial. Ele sabe que há algo de pobre na sociedade e acredita profundamente que o comunismo será reinventado para sanar a sociedade. E para isso, dirige-se aos comunistas desiludidos "- não tenha medo de se juntar a nós. Você já teve seu divertimento anticomunista e está perdoado por ele. É tempo de se levar a sério de novo". Ele vai além, mostra o mal-estar e a falta de sentido da democracia moderna e faz a pergunta paradoxal: estamos realmente vivendo em uma democracia? "A Itália de hoje é efetivamente uma espécie de laboratório experimental de nosso futuro", diz. Sua revolta é: como é possível admitir que milhares morram de fome enquanto os bancos enriquecem com seus trilhões de dólares?

Já na obra "Em defesa das causas perdidas", Zizek vai contra o pensamento hegemônico que vê a democracia liberal, as vezes dita pós-moderna, como o melhor dos mundos frente ao passado das lutas comunistas. Isso não quer dizer que as "causas perdidas" que defende estejam abrigadas pelo teto do Fórum Social Mundial: para Zizek, seu lema "Um outro mundo é possível" mostra que seus protagonistas ainda relacionam-se demais com a estrutura já postas pelo Capitalismo. Para fazer seu caminho, ele faz a opção por retornar ao marxismo à sua maneira, o que tem o peculiar efeito de chamar a atenção mundial sobre sua obra: não há dúvida, o que Zizek faz é tornar sedutor o marxismo para as nova gerações. Para isso articula Lacan, Hegel e Marx com cinema, música, cultura popular e a critica dos objetos de consumo. "Em defesa das causas perdidas" entretanto, padece do problema comum aos grandes pensadores contemporâneos: como produzem demais, escrevem demais, torna-se freqüente encontrar traços de obras anteriores nas seguintes. Não há como deixar de ver no capítulo II Lições do passado o eco de suas obras anteriores sobre Robespierre e Mao, ou dos estudos anteriores que fez sobre Estalinismo publicados em espanhol. Há, entretanto, reflexões sobre o pensamento de Heidegger extremamente originais e que não haviam aparecido anteriormente. E é claro, Zizek sempre é um grande contador de causos que sintetizam brilhantemente suas idéias. Em um determinado momento de sua obra, ele cita a ficha de um hotel americano que diz: "Prezado cliente: para garantir que você vai desfrutar sua estadia conosco, este hotel está totalmente liberado do fumo. Qualquer violação deste regulamento resultará numa multa de $ 200". Assim é o Capitalismo, diz Zizek: estamos condenados a ser castigados se recursarmos a desfruta-lo plenamente. Zizek quer nos mostrar o cinismo do capitalismo contemporâneo em sua caminhada em direção a um capitalismo autoritário, contrário ao direitos humanos, como já anuncia o caso chinês. E o grande perigo é que ele pode estar certo.






Publicado no site do Jornal Le Monde Diplimatique em 9/6/2011

terça-feira, 7 de junho de 2011

Slavoj Zizek e o Direito









A idéia de que a Ciência Política, Antropologia e Sociologia são ciências auxiliares do Direito ainda não está totalmente estabelecida como uma prática. Os campos tradicionais das Ciências Sociais tendem a dialogar mais entre si do que com o campo do Direito, produzindo seu aparente isolamento destas disciplinas. Este isolamento, por outro lado, tem sido rompido com o esforço de juristas e cientistas sociais que reivindicam a importância de abordagens interdisciplinares no campo jurídico.

Entre estes autores podem ser citados Michel Foucault. Seu estudo “A verdade e as formas jurídicas” mostrou aos estudiosos do Direito à importância de buscar na história de sua disciplina como sua prática exerce poder, um saber-poder. Renovação semelhante foi introduzida por François Ost em “O Tempo do Direito” onde o autor realiza um diálogo entre as noções de Direito e Tempo, revelando como se determinam mutuamente a construção de quatro medidas: memória, perdão, promessa e questionamento.

Nesse campo de contribuições interdisciplinares para o estudo do Direito um autor que merece destaque é Slavoj Zizek. Nascido na Liubliana, capital da Eslovênia em 1949, doutorou-se em Filosofia na sua cidade natal e estudou Psicanálise na Universidade de Paris. Conhecido pelo uso que fez da obra de Jacques Lacan para uma nova leitura da cultura popular, abordou temas como o cinema de Alfred Hitchcock e David Lynch, o leninismo e tópicos como fundamentalismo e tolerância. Intelectual de uma vasta produção, sua obra articula filosofia, psicanálise, crítica da cultura, política e cinema. Rotulado como pós-marxista, pós-lacaniano, critico da pós-modernidade e do multiculturalismo, Zizek é um ferrenho critico da hegemonia do capitalismo global. Autor de obras como “Um mapa da ideologia”, “Visão em Paralaxe”, “Bem vindo ao deserto do real”, O Sublime Objeto da Ideologia” e mais uma dezenas de livros em várias línguas, Zizek situa-se na linha de frente do debate cultural contemporâneo de esquerda e junto com Cornelius Castoriadis, Ernest Laclau e Alain Badiou constitui a chamada “Nova Esquerda Lacaniana”, caracterizada por construir estudos originais que servem de crítica à hegemonia da ideologia liberal.

Marcelo Grillo em sua obra “O direito na filosofia de Slavoj Zizek”(Editora Alfa-Omega) defende a importância do autor para perscrutar o conceito de Direito. Zizek, diferente da visão marxista superficial, não vê o Direito como integrante da super-estrutura da sociedade. Ao contrário, Zizek vê o Direito no seio das contradições da sociedade capitalista, com críticas à sociedade e a democracia liberal fundamentais para a construção de um novo conceito de Direito. Por exemplo, não se pode, para Zizek, elogiar a China como potência capitalista emergente enquanto se vê a repressão aos direitos dos trabalhadores em seu interior. O Direito, nesse aspecto, é um dos campos da luta ideológica contemporânea, e Zizek receia que a força do neoliberalismo termine por reduzir a capacidade do Direito em realizar a justiça.

É o que demonstra Zizek ao analisar o drama da defesa dos direitos humanos “A nova normatividade emergente para os direitos humanos é, entretanto, a forma em que apareceu seu exato oposto”, frase enigmática mas que significa, que em nome dos direitos humanos, o que estamos fazendo é violar esses mesmos direitos. Em “Os direitos humanos e o nosso descontentamento”(Ed. Pedago), Zizek fala das relações entre os diversos países que compunham a antiga Iugoslávia. Analisando as intervenções militares sob a justificação humanitária, Zizek mostra que o que estava em jogo era a oposição entre o forte nacionalismo de Milosevic e a herança multicultural dos iugoslavos, representados pelos bósnios. Para Zizek, justificar a intervenção militar com base nos direitos humanos terminou por retirar das vítimas a capacidade de reagir, de fazer sua própria história.

Para Zizek, toda política de intervenção baseada na doutrina dos direitos humanos que age sem provocar a politização das vitimas deve ser considerada ideologia do intervencionismo militar a serviço de propósitos econômicos específicos. A inspiração desta posição é Hannah Arendt, que em sua obra “As origens do Totalitarismo diz: “o conceito de direitos humanos, que é baseada na suposta existência de um ser humano em si, desmoronou no mesmo instante em que aqueles que diziam acreditar nele se confrontaram pela primeira vez com seres humanos que realmente haviam perdido todas as outras qualidades e relações específicas – exceto que ainda eram humanos”.

A critica de Zizek aos direitos humanos não se faz, evidente, aos direitos humanos em sim, mas ao fato de que no atual contexto mundial eles atendem aos interesses da nova ordem internacional dominada pelos EUA. A cada intervenção realizada, Zizek questiona a base dos critérios das escolhas “porque os albaneses na Sérvia e não os palestinos em Israel ou os curdos na Turquia. Porque Cuba é boicotada enquanto o regime norte-coreano, muito mais rígido, recebe ajuda gratuita para desenvolver capacidades atômicas “seguras”?. Com isto Zizek quer dizer que as intervenções que se fazem em nome dos direitos humanos são mais em função de supostas razões morais do que intervenções em vistas uma luta política definida. Nesse sentido, a realidade de uma luta política é convertida numa luta moral do bem contra o mal.

Em meio a uma obra polêmica e original, Zizek é um pensador extremamente instigante para o Direito ao clamar pelo retorno da Política e ao fazer a crítica da política dos direitos humanos ao serviço do Capital.












Publicado no Jornal O Estado do Direito, nº 30, p. 21.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Museus e Exposições




Foi Christian Goldsmith que no último dia 17 chamou a atenção no Correio do Povo para a importância das exposições nos museus, em especial, o fato de que nossos museus estão recebendo acervos mundiais. Confesso que sou conservador em termos de museologia. Desde que Andréas Huyssein apontou para o fato de que os museus estão cada vez mais se tornando parte da indústria cultural, museólogos e historiadores se defrontam com o problema de como construir suas exposições e para que fins. Na era das massas, fotografias originais do passado dão lugar a plloters adesivados imensos, objetos originais cedem espaço à réplicas. Por todo o lado vemos a substituição de modelos tradicionais de produção museólogica por modelos ditos “modernos”. Na adoção de novos recursos, entretanto, podemos perder o fundamental: a exposição deve estimular à reflexão, a tecnologia deve servir à educação. O que muitas vezes se vê, no entanto, é a adoção de recursos que visam a fascinação do público e a estimulação de seus sentidos em detrimento da relação com o saber. Vai-se aos museus para gozar e não para aprender.

Para o pequeno museu, isto é um drama. Como competir com exposições do porte de “Titanic”? Como competir com exposições internacionais? Atrair público para os museus entrou em sua fase concorrêncial: ganha quem fizer as exposições que impressionem mais os sentidos. Entramos na era do mega-evento, era do museu-espetáculo. Confesso meu mal estar com tudo isso. Pode-se fazer boas exposições com poucos recursos, focando no objeto e na didática, saída adotada pelos pequenos museus do interior, por exemplo. As exposições estão ficando cada vez mais perenes: como são mega-exposições, levam meses para serem construídas para depois desaparecer como por completo nos depósitos dos museus. No Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre, desenvolvemos o projeto Exposições Itinerantes, que hoje conta com 81 exposições que vão para escolas e instituições, preservando a pesquisa e multiplicando seu alcance junto ao público. (
http://www2.camarapoa.rs.gov.br/default.php?reg=1508&p_secao=117).

O espaço museal está absorvendo rápido demais a idéia de que sua função é incrementar o turismo. Transformado em lugares de comércio, está se distanciando de sua função primordial: a educação. Nesta data, os museológos devem decidir a quem servem: se a um sistema que valoriza a performance, ficarão com a mega-exposição e todo o conjunto de signos que ela envolve. Mas se preferirem um sistema que valoriza a cidadania, voltar-se-ão para o trabalho educativo dos museus. Pois não há nada de pior nesta data de que ver as instituições que deveriam preservar a memória serem as primeiras a efetuar seu esquecimento.


Publicado no Jornal Correio do Povo em 23/05/2011

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Para onde foi o comunismo?



"A principal crítica que faço ao capitalismo liberal não é que ele seja prejudicial, mas que não pode durar para sempre. O comunismo precisa ser reinventado" Slavoj Zizek.

Em 2009, uma série de conferências realizadas em Londres
[1] constatou que três coisas levaram a hegemonia da idéia do capitalismo liberal: as derrotas da esquerda mundial na década de 90, o retrocesso das políticas do estados-de- bem-estar-social e a integração das economias socialistas ao mundo capitalista. Por outro lado, lembraram seus participantes, este contexto de hegemonia ideológica entre o 11 de Setembro e a crise financeira de 2008, sofreu um baque que trouxe de volta um tema caro aos pensadores de esquerda, a defesa da idéia de emancipação política. Entre os palestrantes do referido seminário destacou-se Slavoj Zizek, cujas obras tem analisado o cenário político mundial e suas contradições, na análise da política de países tão diversos como o Afeganistão, os Estados Unidos e à China. Expoente do que Yannis Stavrakakis denominou de “Esquerda Lacaniana”, Zizek rejeita o pensamento da antiga esquerda estalinista e da nova esquerda, apresentando em suas obras uma reorientação da Teoria Política e da análise crítica do mundo contemporâneo, numa perspectiva surpreendente que seria impossível imaginar dez anos atrás. Entre seus principais representantes, encontra-se também Cornelius Castoriadis e Alain Badiou.[2] .

Para Zizek existe um resto no comunismo que não pode ser desprezado. O pensamento de esquerda que defende a democracia liberal é limitado porque não podemos confiar nas empresas para produzir solidariedade social. A esquerda atual aceita com muita naturalidade que o capitalismo seja nosso destino final – só nos resta corrigir alguns equívocos e revoltarmo-nos contra o desperdício irracional de recursos,etc, etc. Para Zizek as experiências reais comunistas foram sangrentas sim, mas não podem ser comparadas aos massacres levados a efeito pelo capitalismo global atual em sua fúria predatória pelo mundo inteiro. Se queremos mudar este estado de coisas, se queremos emancipação política, precisamos de filosofia, e nesse sentido, o comunismo ainda tem valor ao estabelecer a igualdade como um padrão para as políticas que possam vir a surgir.

Dunker
[3] enumera três características do pensamento de Zizek que o tornam referência nos estudos sobre o cenário internacional. Em primeiro lugar é o fato de que Zizek é um intelectual engajado, tomando posição e relendo os aspectos simbólicos ocultos nas mais diversas práticas políticas. Filho de comunistas linha-dura e após amargar anos de desemprego – Zizek foi reprovado para o concurso de professor de filosofia – redigiu os discursos da burocracia estalinista do Comitê Central da Liga Comunista da Eslovênia. Assim viu a formação do discurso nacionalista sérvio e a construção ideológica de Kosovo que percebeu como realização imaginária da identidade nacional iugoslava, uma mitologia histórica contemporânea. Percebeu assim os limites do marxismo de seus contemporâneos vivendo os enlances do socialismo e do capitalismo, seja pela imposição do socialismo iugoslavo ou pelo interesse do capital ocidental na emancipação da Eslovênia.

Em segundo lugar, como fundador da Escola Lacaniana da Eslovênia, uma frente ampla de resistência política que inclui diversos autores e suas reflexões sobre teatro, artes plásticas e música, teve oportunidade de ampliar o campo de análise dos fatos políticos. Foi nesse período dos anos 80 que Zizek foi à Paris e estudou Psicanálise – sua tese de doutorado é sobre Hegel e Lacan. Com isso, Zizek conseguiu fazer uma reflexão não apenas sobre a desintegração dos Estados socialistas do Leste Europeu como ao mesmo tempo discutir a fragmentação política do capitalismo pós-moderno. Obras como O sublime objeto da ideologia (1989) apresenta a tese de que a ideologia atual só funciona porque se articula a uma fantasia, cenário imaginário que oculta um antagonismo social. Se o marxismo falava da “liberdade” da venda da força de trabalho, para Zizek isto é uma fantasia, já que ao vender “livremente” sua força de trabalho, o que o trabalhador perde é justamente a sua liberdade. Sua critica não é a substituição de homens por coisas, mas ao próprio desconhecimento da relação estrutural de seus elementos “a fantasia ideológica não se opõe a realidade, mas estrutura a própria realidade social”
[4].

Em terceiro lugar, Zizek deseja o retorno aos fundamentos da política ou o exercício da política propriamente dita (proper politics). Ela se opõe a pós-política do pós-marxismo inglês e do multiculturalismo, pois entende que as discussões sobre identidade étnica, sexual ou nacional terminam por desconhecer a importância da noção de classe, e assim despolitizam o político. Ela se opõe a arquipolítica, aqui entendida como diluição da política na ascensão do ideal comunitário de destino (religião), porque esta sempre termina em terror. Ela se opõe a ultra-política, definida como certa forma de decisionismo à maneira de Carl Schmitt, que permite distinguir um “terror bom “ de um “terror mal”.
[5] Para Zizek, a política propriamente dita considera o antagonismo do Capital como ponto central, o tema da luta pela liberdade como objetivo e o estudo das formas de perturbar as fantasias ideológicas dominantes como estratégia política.

É a partir desta base teórica que Zizek propõe o retorno aos fundamentos do Comunismo, daquilo que ele chama de idéia comunista. Em Aprés la tragédie, la farce!
[6] Zizek demonstra que estamos vendo sem criticar a consolidação de uma nova etapa do Capitalismo onde a democracia e o livre mercado cessam seus laços e em seu lugar emerge a face autoritária do Capitalismo. É o caso do novo capitalismo chinês que surge das cinzas de seu comunismo. Herdeiro do autoritarismo dos antigos governos asiáticos totalitários, é inspirado no modelo de Cingapura após a queda do regime soviético. O capitalismo chinês representa um grande perigo para a idéia de comunismo não porque representa o seu abandono, mas porque significa uma versão autoritária que não exige grandes mudanças políticas, mas ao contrário, centralização com controle da liberdade de expressão, sem falar do uso indiscriminado da pena capital. O mesmo pais que teve com Mao a Revolução Cultural - e portanto foi a fundo na proposta comunista – foi o que reuniu mais condições para o capitalismo autoritário. Para Zizek a China diz simbolicamente ao mundo é que é possível apenas ganhar dinheiro sem dar importância a democracia e aos direitos humanos. E isso, para Zizek, é inconcebível.

No Capitalismo, as supostas liberdades de escolha se reduzem apenas aquilo que o sistema já escolheu “como a opção entre Pepsi ou Coca-Cola”. De fato, Zizek tem uma experiência pessoal muito significativa no campo do comunismo, já que ele viu, melhor do que ninguém, antigos partidários do comunismo desiludidos assumirem como os mais preparados a gestão da nova economia capitalista. Zizek recusa este realismo capitalista como resposta à utopia comunista ditado pelos adeptos do Fim da História (Fukuyama) e acreditou que devia estar em outro lugar a resposta. A confirmação veio com o final dos felizes anos 90, o 11 de setembro, com a emergência de muros entre Israel e Cisjordânia e na fronteira dos Estados Unidos com o México e se completa com a revolta das populações dos países islâmicos. O mercado e a ditadura não funcionam bem quando deixados por sua conta porque eles precisam de violência sobre o social para funcionar e se baseiam na existência de desigualdades sociais. Zizek defende o conceito de igualdade tal como pregado pelo comunismo como princípio para refundar a política. Ele não abandona a idéia de democracia, mas critica por exemplo as posições das democracias no caso do Tibete em seu conflito com a China, em 2008. Ali onde as democracias viam opressão, Zizek via um Tibete capitalizando-se subterraneamente: mais forte que o autoritarismo chinês era o fim das relações tradicionais na região promovidas pelo capitalismo.

Zizek não quer saber se a idéia do comunista é pertinente hoje. Ao contrário, pergunta: "Como a nossa situação atual aparece da perspectiva da idéia comunista?”. Ao recuperar a dialética do velho e do novo, ele nos mostra de que de nada adianta aprender novos termos para nossa época se não damos conta dos velhos termos - sociedade liquida (Bauman), sociedade pós-moderna (Lyotard), sociedade do risco (Beck) e sociedade da informação (Castells) – todas estas reflexões nos fazem perder tempo para fazer a questão central “o que era eterno no velho conceito de comunismo?”, única forma verdadeira de apreender o que há de novo no mundo.


Zizek afirma que na luta política é preciso defender um mínimo não negociável: para o revolucionário de hoje é não ceder para a sedução de um capitalismo de face humana. A pobreza e a miséria são dados estruturais do capitalismo. Zizek tem todas as respostas para os destinos da política atual? é claro que não!. Mas ele faz perguntas essenciais para a luta ideológica.
.




[1] A Conferência realizou-se em Londres, de 12 a 15 de maio de 2009, no Birbeck Institute, e os discursos das conferências foram publicados por Slavoj Zizek e Alain Badiou na obra “L’Idée du communisme pela Editora Lignes, em 2010. Entre os conferencistas estavam Terry Eagleton, Michel Hardt, Toni Negri, Gianni Vattimo, entre outros.
[2] Conforme Yannis Stavrakakis, La Izquierda lacaniana. Psicanálise, teoria, política. Buenos Aires, Fondo de Cultura Econômica, 2010. Professor da Escola de Ciências Politicas da Universidade Aristótles de Tessalônica, Stavrakakis é autor de Lacan e o Político (2008), Laclau. Aproximaciones críticas a su obra (2008) e o Populismo como espejo de la democracia (2009).
[3] Cristian Dunker “Zizek: um pensador e suas sombras”IN: DUNKER, Christian e PRADO, José Luiz Aidar. Zizek critico: a política e a psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo, Hacker, 2005.
[4] Idem, p. 53.
[5] O decisionismo é uma premissa dos estudos políticos de Carl Schmitt que afirma que toda lei necessita de uma decisão baseada na realidade. Essa definição é essencial para fundamentar o nascimento das Constituições dos Estados Nacionais, e com isso a natureza dos poderes instituintes do Estado. Conforme Ana Paula Arruda Moraes, A soberania como questão de decisão sobre o estado de exceção. Uma análise sobre a ótica de Carl Schmitt. IN: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6483
[6] Paris, Flammarion, 2010.






Publicado no Jornal da Universidade, abril 2011

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Bin Laden is dead!

A morte de Bin Laden é a forma escolhida pela maior potência do planeta para a comemoração dos dez anos do ataque às torres gêmeas. Centenas de americanos comemoraram a vingança consumada na morte do homem mais perseguido do planeta. Este é o momento Jack Bauer americano, momento em que os Estados Unidos assumem a prerrogativa de serem o lado do bem do planeta e que ao mesmo tempo suspendem todas as garantias de direitos em nome de algo maior, a realização de sua verdade. Quando Jack Bauer, no seriado 24 horas, usou de tortura para seus fins, o pensador Slavoj Zizek imediatamente apontou que este era o imaginário dos EUA. A morte de Osama é o lado real, complexidade objetiva da politica dos EUA e que mostra como a política americana pode ser seu exato oposto.
Qual a mensagem secreta americana com tudo isto: que os Estados Unidos são o senhor da justiça do mundo. Matar Obama sem julgamento? os americanos dizem que sim, foi resistencia, etc, e tal. No fundo, no fundo, o terrorismo não tem nenhum sentido e não se pode medi-lo por suas conseqüências: nesse sentido, a morte de Osama não inaugura nada, não é o fim do terrorismo propriamente dito. Levará – e já há a preocupação americana com isso – a levar o terrorismo ao extremo, exacerbando o atual estado de coisas. Porque não foi Osama que inaugurou o terror, ele já existe em toda a parte, na violência institucional, física e mental de nosso mundo, apenas em doses homeopáticas. Substituir o julgamento por um tribunal por uma corte militar é apenas outra forma de terror. Diz Baudrillard” o terrorismo apenas cristaliza todos os ingredientes em suspenso”.
Talvez o que seja curioso que até o presente momento, a morte de Osama seja, para a maioria das pessoas, uma morte virtual. Nossa realidade é virtual, nossos sistema de informação também, o que mostra o quanto estamos além do principio de realidade. E a morte de Osama também: uma imagem de seu corpo morto lançada na Internet é desmentida; o anúncio da morte fala de um corpo lançado imediatamente ao mar, nos termos dos procedimentos mulçumanos. Quem afinal viu Osama morto? Que o maior feito antiterrorista americano não deixe vestígios mais parece ser é a lição que os americanos levaram do próprio Osama, a de ser capaz de fazer algo sem deixar marcas, o que é a definição de Crime Perfeito de Baudrillard.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Aniversário de Porto Alegre

Porto Alegre completa 239 anos no dia 26 de março.É o aniversário da cidade. A expressão aniversário vem do latim anniversarius, “o que volta anualmente”, de vertere, “voltar”. É a data em que a cidade é repleta de eventos que a homenageiam, expressão que vem do antigo francês homage, “demonstração de respeito pelo senhor feudal”. Quando comemoramos o aniversário da cidade, atualizamos não apenas uma data, mas demonstramos nosso respeito à cidade em que vivemos. Comemorar só tem sentido quando significa festejar com os outros e assumir em grupo uma atitude de reverência. Porto Alegre tem hoje quase um milhão e meio de habitantes. Tem portanto, muita gente para comemorar seu aniversário. Mas realmente comemoramos o aniversário da cidade? Em um aspecto superficial sim, quando lembramos sua história nas imagens do passado e nos damos conta da mudança que sofreu neste tempo. Pois se trata de rememorar uma história da qual os portoalegrenses são seus protagonistas e que tem momentos importantes: a transformação da cidade em metrópole, o nascimento de suas instituições, o combate as formas de pobreza e exclusão social. Em um aspecto mais profundo, ainda temos muito a comemorar no aniversário da cidade. Os portoalegrenses ainda não respeitam o suficiente a cidade em que vivem: dizem que gostam da cidade mas continuam a suja-la todos os dias; reivindicam melhores condições de vida mas continuam a preferir o automóvel à bicicleta tornando a cidade um inferno; dizem que fazem a sua parte mas continuam com o disperdício de água que atormenta administradores públicos. Se gostamos tanto da cidade como dizemos nesse dia, deveríamos ser mais capazes de demonstrar esse afeto. Existem muitas reflexões que o aniversário de uma cidade provoca nos seus cidadãos. Regra geral refletimos sobre seu passado, presente e futuro, avaliamos nosso potencial econômico e o estado de nossos indicadores sociais. Sugiro dois conceitos com que possamos pensar a cidade neste dia. O primeiro é o de Cuidado: o aniversário da cidade deve nos motivar a pensar como podemos demonstrar nossa respeito com a cidade em nossas ações no dia a dia. Como cada cidadão cuida da cidade? - refletimos sobre isso raramente. O segundo é o de confiança: é preciso acreditar que, se fizermos nossa parte para o bem para a cidade, os outros também o farão. O aniversário da cidade é uma festa sim, mas implica riscos: o risco de que de agora em diante passamos a nos envolver diretamente com os destinos da capital, o que é outra forma de exercer nossa cidadania comprometendo-nos diretamente com a vida pública.