Há cerca de um ano, baixei por um plano de saúde para uma cirurgia no Hospital da PUC. A Emergência já era lotada: pacientes do Interior e da Capital disputavam comigo a atenção dos médicos. Mas, se podemos dizer assim, ainda era uma situação “administrável”: recebi a atenção necessária, a identificação dos sinais de diagnóstico foi feita com cuidado, os exames foram realizados de acordo com o protocolo, a determinação para a intervenção cirúrgica tomada e o leito providenciado. A anestesista tratou de me tranquilizar: pode-se dizer que nesse tempo ainda era possível ser tratado como um ser humano pelo sistema de saúde. Fui salvo.
Hoje esta realidade está cada vez mais distante.É a imagem que fica ao vermos a reportagem de Zero Hora (25/09). Mas não se trata apenas de uma situação de calamidade do sistema de saúde pública e privada, como aponta o Simers. Por que centenas de médicos e enfermeiros esforçam-se para cumprir sua missão e fracassam nesta tarefa? A razão, para Robert Kurz, deve ser buscada no fato de que a crise da saúde é parte integrante da reprodução atual do capital, que atinge agora camadas sociais que até então haviam sido poupadas, como a classe média. A reprodução capitalista é perversa e caracterizada, entre outras coisas, pela defesa de um estado “magro”: o fim do Estado social se dá menos pela redução de verbas e mais pelos investimentos aquém dos necessários, desproporcionais às reais necessidades de saúde e educação. É a morte lenta.
Zygmund Baumann destaca que esta é a forma de o capital lidar com aquilo que ele denomina de “lixo humano”: “Todo modelo de ordem é seletivo e exige que se cortem, aparem, segreguem, separem ou extirpem as partes da matéria-prima humana que sejam inadequadas para a nova ordem, incapazes ou desprezadas para o preenchimento de qualquer de seus nichos. Na outra ponta do processo de construção da ordem, essas partes emergem como ‘lixo’, distintas do produto pretendido, considerado ‘útil’”. O desmantelamento do sistema de saúde é a forma dissimulada e perversa do capital de dar cabo dessa grande quantidade de “lixo” que para ele somos nós, processo de aniquilação de certo número de seres humanos pela negação de acesso ao sistema de saúde. Numa palavra, a saúde transformou-se na nossa Matrix.
Quando havia ricos e pobres, o acesso aos leitos se dava pelos planos de saúde. Agora, quando desaparecem as diferenças estruturais de classe na estrutura de reprodução capitalista, somente os muito ricos ocupam os leitos dos hospitais, enquanto que o resto disputa o que sobrar. A “solução barata” encontrada pelos governos recentes, na melhor das hipóteses, conseguiu uma miséria generalizada. Cabe aos cidadãos, às vésperas das eleições, prestar atenção nas propostas para a reforma da saúde pública e privada e, aos candidatos, formular suas propostas com conteúdo
Publicado em Zero Hora em 26/08/2010