segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Edital de Ocupação, democracia de acesso em primeiro lugar


A Câmara Municipal de Porto Alegre lançou na última segunda-feira (22/2) a 4ª Edição do Edital de Ocupação do Teatro Glenio Peres. Com capacidade de 80 lugares, o espaço tem uma história que vale a pena ser revista.

Quando de sua criação em meados dos anos 80, o projeto original previa no Legislativo apenas a construção de um auditório. Foi assim que ele foi inaugurado, como Auditório Glênio Peres, em homenagem ao notável politico da cidade. A idéia era a existência de espaços para as atividades legislativas, como a Sala Ana Terra e as Salas de Comissões, que tem vida paralela ao trabalho do plenário, centro da atividade legislativa na Câmara de Vereadores.

Quando Margareth Moraes foi eleita a primeira presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre, sua trajetória na área de cultura foi determinante para a transformação do então auditório em teatro. Além de alterar sua denominação e finalidade, Moraes deu-lhe condições para operar enquanto teatro, com a aquisição de mesa de luz e iluminação própria.

Mas o caminho não seria nada fácil. A concepção jurídica hegemônica defendia que o espaço do legislativo é privativo da atividade legislativa. Apontavam para o desvio de finalidade, ainda que, vissem o mérito nas iniciativas. A razão era o fato de que, juridicamente, ainda que Poder autônomo, o prédio é patrimônio do Executivo destinado para atividade legislativa. Produção cultural é tarefa do Executivo.
Este argumento sofreu um refluxo importante com o sucesso da atividade cultural como forma de acesso ao poder legislativo. Além do mais, a cultura começou a conquistar espaços notáveis na organização economica. Os parlamentos deram-se conta do valor da cultura e educação em seu interior: elas prometiam uma porta de acesso à política, que então recebia inúmeras críticas da população. A idéia de atividade cultural "espraiou-se" pelos legislativos do interior. Memória e atividades culturais foram incluidas nas agendas das Câmaras Municipais. A idéia de "regime de colaboração" vem ao socorro do legislativo, que não invade o espaço do Executivo, apenas "colabora" na esfera e no espaço de seu competência.


A Edição do Edital na gestão da vereadora Sofia Cavedon acrescenta um novo patamar ao seu teatro.Enquanto que as gestões de Sebastião Melo e Nelcir Tessaro, tiveram o mérito de criar e manter o Edital como atividade complementar, Sofia tem como ponto central de seu programa de gestão o reforço da atuação do legislativo na área cultural e educativa. Deu provas disso reforçando a equipe do legislativo para produção cultural, determinando em seu gabinete gestores para cultura da Casa e já está dando os primeiros passos para a reforma do espaço do Teatro.


A consequência é que o Lançamento do Edital foi um sucesso. "Nunca na história...." daquele espaço, um público tão envolvido na área esteve presente e atento. Pela primeira vez, com a presença de representantes da cultura da União e do Estado, demostrou-se que a cultura é ferramenta política por excelência. Mais, sua ação chama a atenção da comunidade cultural para os parlamentos e, numa palavra, ao legislativo democratizar o acesso a seu espaço para produção cultural, ele mesmo se transforma em co-ator do sistema da cultura.

Sofia realizou um evento cultural com sucesso para marcar o inicio de uma politica para a área cultural do legislativo. Fez isso numa época em que as pessoas estão voltadas para 3 coisas: o Carnaval, as férias e o Big Brother. Razão a mais para aplaudir o sucesso desta iniciativa, que mostram a importância do campo da cultura para os parlamentos. Revela para a área cultural que ela não pode ficar alheia ao que se passa no seu legislativo e tem, a partir de agora, a responsabilidade de escolher muito bem os candidatos que deseja ver representando seus interessses no legislativo. Fica a idéia para as câmaras do interior: e se cada plenário não pudesse ser transformado, além de uma sala de aula, em um teatro? Fica a idéia para Sofia Cavedon: que tal reunir as câmaras municipais e propor-lhes a edição de uma Carta dos Parlamentos como Espaço da Educação e da Cultura, necessário caminho para iniciar uma mudança de mentalidade na relação do legislativo com estas áreas.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A perspectiva zizekiana dos direitos humanos

Conta-se que um operário alemão obteve um emprego na Sibéria num tempo em que toda a correspondência era lida por censores. Ele então combina um código com seus amigos: se uma carta estiver escrita em azul, o que diz é verdade; se for vermelha, é mentira. Tempos depois, eles recebem uma carta em tinta azul: "Tudo aqui é maravilhoso: as lojas vivem cheias, a comida é abundante, os apartamentos são grandes e bem aquecidos, os cinemas exibem filmes do Ocidente, há muitas garotas, sempre prontas para um programa - o único senão é que não se consegue encontrar tinta vermelha".
A estória é contada por Slavoj Žižek, em "Bem vindo ao deserto do real" (Boitempo, 2003) . Ela serve para o autor colocar o ponto de partida de sua obra: uma investigação rigorosa da ideologia, do totalitarismo e principalmente da língua que usamos para descrever nossos conflitos presentes "Esta falta de tinta vermelha significa que atualmente todos os termos usados para descrever o presente conflito - "guerra contra o terrorismo", "democracia e liberdade", "direitos humanos", etc - são termos falsos, que mistificam nossa percepção da situação em vez de nos permitir pensa-la".

Nascido em 21 de março de 1949 na Eslovênia, Žižek, formou-se em Sociologia e Filosofia em 1971, concluiu Mestrado e Doutorado em Filosofia entre 1975 e 1981 e em 1985 realizou pós-doutorado em Psicanálise. Influenciado pelo pensamento de Derrida, Althusser, Foucault e Lacan, colabora na construção da "Escola Lacaniana da Eslovênia" cuja característica central é o distanciamento da clínica psicanalítica em direção à filosofia e o pensamento alemão. Daí as preocupações, presentes na obra de Žižek, com o poder, a cultura, a arte, especialmente o cinema.
Professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Eslovênia, seu temperamento mais revolucionário do que teórico produz seu deslizamento em direção à política. Ativo militante político, candidatou-se à Presidente nas eleições de 1990 em seu pais. Esta é a razão do fato de sua obra ser muito mais política e moral do que teórica, como a influência do lacanismo faria supor. A medida que sua obra foi traduzida para o mundo, Žižek ganhou fama e notoriedade, passando a ser convidado para ser professor de diversas universidades como Paris VIII, Minnesota, Nova York, Princenton, Michigan, Georgetown, desenvolvendo atividades nos Estados Unidos, Europa, Australia, e Japão.
Zizek abordou o tema dos direitos humanos em diversas obras. Em “La suspensión política de la ética”(FCE, 2005), o autor critica certa política humanitária de direitos humanos que se faz como ideologia do intervencionismo militar. Para Zizek, toda ideologia que serve especificamente para fins econômicos e políticos deve ser rejeitada, porque se trata de um humanitarismo que despolitiza, uma defesa pura do individuo contra as despóticas máquinas do Estado. “Sem dúvida, a pergunta é: que tipo de politização é posta em marcha por aqueles que intervêem a favor dos direitos humanos contra os poderes a que se opõem?“ No caso do ataque americano a Saddam Hussein, Zizek vê que haviam interesses polítco–econômicos (o petróleo) que levavam a terminar com o sofrimento do povo iraquiano. O problema para Zizek é que a doutrina dos direitos humanos terminou por sustentar uma intervenção baseada na inclusão do país na economia de mercado global. Ou seja, foi incapaz de colaborar para a construção de um projeto coletivo propriamente iraquiano de transformação sociopolitica.

Zizek retornou ao tema em “Sobre la violência “(Paidós, 2009), descrevendo as conseqüências de duas situações limites para a experiência dos direitos humanos. A primeira, relativa ao modo de tratamento dados aos negros pela política de Nova Orleãns logo após o furação Katrina e a segunda, a proposta de construção de um muro na costa africana do Rif, pequeno território espanhol numa área enclave entre Espanha e Marrocos. “As imagens apresentadas – uma complexa estrutura com a última tecnologia – tinham uma estranha semelhança com o Muro de Berlim, só que com a função oposta. Este muro estava destinado a impedir as pessoas de entrar, não de sair ”.

Mas é em sua obra “Os direitos humanos e o nosso descontentamento” (Edições Pedago, 2008) é que Zizek apresenta sua critica ao modo como tem sido reelaborada a noção de Direitos Humanos nos tempos da guerra humanitária. Para Zizek, de forma paradoxal, só interessa a noção de direitos humanos tal qual propalado pela herança cristã, curiosamente, repleta de humanitarismo, ao contrário da atual, ateu e materialista, onde cada parte tem seu lugar. Para o cristianismo, a virtude vem da possibilidade de acesso ao Universal. De fato, Zizek em “A marioneta e o anão: o cristianismo entre a perversão e subversão”(Relógio D’Agua, 2006) assim como Alain Badiou, São Paulo (Boitempo, 2010) propuseram análises deliberadamente políticas para denunciar tendências perversas do cristianismo e o caráter revolucionário de seu núcleo materialista.

No caso dos ataques a Bósnia, a critica feita por Zizek ao mau uso da noção de direitos humanos advém do fato de que a retórica de proteção termina por reduzir as vítimas a uma impotência que lhes retira a capacidade de agir. Pior, é uma ideologia que apregoa que não são capazes de fazer a sua própria história, da qual seriam meros figurantes. Zizek faz coro com Jacques Ranciére, para quem os homens e lugares políticos nunca se tornam meramente vazios. O vazio é dado por alguém ou algo “Se aquele que sofre uma repressão desumana é incapaz de decretar os direitos humanos que são seu último recurso, então alguém tem que herdar seus direitos para decretá-los em outro lugar. Isto é o que chamo de “direito de interferência humanitária” – um direito que algumas nações adotam para suposto benefício de populações vitimizadas, e, muito frequentemente, contra a recomendação das próprias organizações humanitárias. O “direito à interferência humanitária” poderia ser descrito como uma espécie de “devolução ao remetente”: os direitos não usados, que foram enviados aos carentes em direitos, são devolvidos aos remetentes”

Para Zizek, toda vez que o discurso dos direitos humanos significa o direito das potencias ocidentais de intervir política, cultural e militarmente nos países do Terceiro Mundo, estamos diante de uma forma de despolitizar os direitos humanos, pois estamos novamente diante da noção pré-política de Bem contra o Mal. Zizek quer mais: quer que sejamos capazes de, ao defender os direitos humanos, dar as vitimas subjetivação política. Trata-se, a maneira de Michel Foucault, de uma análise biopolítica dos direitos humanos, sem a qual, segundo Zizek, perderemos toda a distinção entre Democracia e Totalitarismo.

Slavoj Zizek quer propor um insight particular e pertubador: a critica da apropriação dos direitos humanos pela ideologia do intervencionismo militar. Ao contrário, Zizek prega que o discurso sobre direitos humanos seja um discurso político capaz de colocar um movimento uma polítização dos inocentes contra o poder. Caso contrário, o discurso dos direitos humanos se transformará numa espécie de anti-politica: tão importante quanto a defesa dos direitos humanos em geral, é a defesa dos direitos políticos em particular, o que rompe, de certa forma, a dialética do universal e do particular ao qual estamos acostumados. Mas isto é Zizek.