quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Somos todos lixo


Há cerca de um ano, baixei por um plano de saúde para uma cirurgia no Hospital da PUC. A Emergência já era lotada: pacientes do Interior e da Capital disputavam comigo a atenção dos médicos. Mas, se podemos dizer assim, ainda era uma situação “administrável”: recebi a atenção necessária, a identificação dos sinais de diagnóstico foi feita com cuidado, os exames foram realizados de acordo com o protocolo, a determinação para a intervenção cirúrgica tomada e o leito providenciado. A anestesista tratou de me tranquilizar: pode-se dizer que nesse tempo ainda era possível ser tratado como um ser humano pelo sistema de saúde. Fui salvo.


Hoje esta realidade está cada vez mais distante.É a imagem que fica ao vermos a reportagem de Zero Hora (25/09). Mas não se trata apenas de uma situação de calamidade do sistema de saúde pública e privada, como aponta o Simers. Por que centenas de médicos e enfermeiros esforçam-se para cumprir sua missão e fracassam nesta tarefa? A razão, para Robert Kurz, deve ser buscada no fato de que a crise da saúde é parte integrante da reprodução atual do capital, que atinge agora camadas sociais que até então haviam sido poupadas, como a classe média. A reprodução capitalista é perversa e caracterizada, entre outras coisas, pela defesa de um estado “magro”: o fim do Estado social se dá menos pela redução de verbas e mais pelos investimentos aquém dos necessários, desproporcionais às reais necessidades de saúde e educação. É a morte lenta.


Zygmund Baumann destaca que esta é a forma de o capital lidar com aquilo que ele denomina de “lixo humano”: “Todo modelo de ordem é seletivo e exige que se cortem, aparem, segreguem, separem ou extirpem as partes da matéria-prima humana que sejam inadequadas para a nova ordem, incapazes ou desprezadas para o preenchimento de qualquer de seus nichos. Na outra ponta do processo de construção da ordem, essas partes emergem como ‘lixo’, distintas do produto pretendido, considerado ‘útil’”. O desmantelamento do sistema de saúde é a forma dissimulada e perversa do capital de dar cabo dessa grande quantidade de “lixo” que para ele somos nós, processo de aniquilação de certo número de seres humanos pela negação de acesso ao sistema de saúde. Numa palavra, a saúde transformou-se na nossa Matrix.


Quando havia ricos e pobres, o acesso aos leitos se dava pelos planos de saúde. Agora, quando desaparecem as diferenças estruturais de classe na estrutura de reprodução capitalista, somente os muito ricos ocupam os leitos dos hospitais, enquanto que o resto disputa o que sobrar. A “solução barata” encontrada pelos governos recentes, na melhor das hipóteses, conseguiu uma miséria generalizada. Cabe aos cidadãos, às vésperas das eleições, prestar atenção nas propostas para a reforma da saúde pública e privada e, aos candidatos, formular suas propostas com conteúdo


Publicado em Zero Hora em 26/08/2010

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Hélio de La Peña está errado!

A defesa de Hélio de La Penã da liberdade de usar o humor no período do horário eleitoral está errada e é um desserviço à democracia. Ao contestar a Lei 9504/87, o humorista esquece que, se “o humor é necessário para a vida” (“Ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae) como prega São Tomás de Aquino, um “bem útil” ao homem e a sociedade, esquece que o mesmo filósofo também afirma que o humor pode ser um vício por excesso, ou seja, por falta de controle e mediocridade no seu uso. São Tomás queria dizer com isso que aqueles que exageram no brincar são inoportunos, estão fora do lugar, por quererem fazer rir constantemente em momentos sérios e por isso acreditava que a virtude estava no uso conveniente do humor para a construção da vida.

Ora, não é isso que fazem nossos humoristas, salvo raras exceções, quando se trata de política. O poder dos programas de humor está no espaço que ocupam nos veículos de comunicação e que lhes dá a oportunidade de colaborarem na construção (ou destruição) de uma determinada visão de política na sociedade - a regra geral é a tendência do humor brasileiro de reforçar o preconceito para com a política. “Política: fique longe disso” é a mensagem que seus programas carregam, nada mais perigoso para a democracia, que vive da participação popular. Qual a origem deste poder? Médium vem do latim e significa “aquele que está a meio”. A comunicação, situando-se a meio caminho entre as instituições políticas e a sociedade, tem papel fundamental para a formação da opinião pública. Se o humor atribui significados negativos à política – não estamos dizendo que não existem maus políticos, que les hay, eles hay – ele contribui para criar o entendimento compartilhado de que toda a política é algo vil e infame, um problema do ponto de vista da democracia, da defesa das instituições públicas e dos agentes públicos que buscam construir a boa política.


Este é um momento especial para a cidadania. A política necessita da comunicação sim, mas não da comunicação superficial, limitada a um humor escrachante, previsível e alienante, mas de uma comunicação definida culturalmente, baseada na troca de informações. O papel da comunicação deve ser o da manutenção dos vínculos da comunidade à idéia de cidadania e participação. O humor atua na contramão desse sentido, já que incentiva a não participação, a rejeição e a negação da política - ainda que ela tenha todos os problemas que conhecemos, sem ela diminuímos as chances de ter uma sociedade melhor. A sociedade, a “receptora” de toda esta informação, só pode concordar com os humoristas. É aí que reside o problema.

Os limites dado ao humor pela Lei visam reduzir a capacidade de alienação que existe nos veículos de comunicação. Aliás, vem do interior da própria televisão a crítica ao que se tornou o veículo. Aracy Balabanian resumiu a questão: “tudo ficou tecnicamente melhor, mas a televisão sofreu um empobrecimento(...)A TV se esvaziou” (Folha de São Paulo, 8/8/2010). Queiram ou não os autores de humor, os textos que são escritos para os programas de humor estão longe de ser o que se poderia chamar de “humor inteligente”, e ao contrário, passam mensagens subliminares que provocam alienação.

O debate político não se faz com piadas, mas com idéias e programas humorísticos não esclarecem a população, ao contrário, reproduzem preconceitos e a afastam do debate público. Passado o horário eleitoral, os humoristas poderão voltar a sua prática de sempre, falar mal dos políticos sem chegar a lugar algum, mas pelo menos, a democracia não terá sido vilipendiada. O público pode conhecer os programas humorísticos, mas a presença cada vez maior de um humor que apela aos sentimentos mais primitivos ainda é prova de que ele pouco tem a contribuir com a construção de cidadãos críticos. Há bons e maus humoristas, como há bons e maus políticos, mas o mau humor político é como a má política, é um desserviço à democracia e deve ser combatido. Não é hora de riso, mas de atitude séria: é o futuro da democracia que está em questão no momento do voto.

O dia do patrimonio histórico, 17 de agosto


No dia 17 de agosto comemora-se o Dia do Patrimônio Histórico Nacional. A data assinala o nascimento do historiador e jornalista Rodrigo Mello Franco de Andrade (1898-1969) e foi instituída por meio da Lei nº 378, de 1937. Nesta época, governo Getúlio Vargas criou o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), onde o historiador trabalhou até o fim da vida, e a data passou a ser celebrada a partir de 1998, quando o célebre defensor do patrimônio faria 100 anos. A importância de celebrá-la, no entanto, não está somente no fato de valorizar as coisas tangíveis e intangíveis caracteriza uma população, mas principalmente, por atualizar a problemática da memória no campo social.

A preocupação com a centralidade da memória na cultura das sociedades ocidentais é um dos fenômenos mais surpreendentes dos últimos vinte anos, que assistiram a uma profusão de memoriais, museus, centros de memória e instituições voltadas para a memória, no âmbito público e privado. O que é um paradoxo, já que a cultura moderna sempre foi voltada para o futuro, como se vê no estalinismo às artes do século XX. Na origem deste paradoxo está a emergência de um galopante processo de globalização da memória. Iniciado nos anos 60 como conseqüência do processo de descolonização e dos novos movimentos sociais, a memória transformou-se em elemento chave na organização social e sofreu, nos anos 80, um reforço com os discursos sobre a memória do Holocausto. A memória está, de uma vez por todas, na agenda atual.

O que também é um problema, haja vista que o marketing tem tido cada vez mais êxito em transformar a memória em produto da indústria cultural. Ela foi transformada em produto a ser vendido pela industria cultural, em reação aquilo que a sociologia da cultura alemã, especialmente com Gerhard Schulze, denominou de “Erlebnisgesellschaft”, literalmente, sociedade da vivência. Agora, a indústria cultural não trata apenas vender a idéia de que vivemos uma sociedade que privilegia experiências intensas, porém superficiais, orientadas para a felicidade instantânea, porém com rápido consumo de bens. Agora, trata-se de reagir a essa cultura em que bens que tem história, tradições que são milenares e espaços são vendidos pelo seu tempo de existência. O problema desta forma de abordagem é a despolitização que faz da memória, deshistoricização que mata pela memória a própria memória.

No Dia do Patrimôno deve servir para defender que a memória é uma questão política e recusar as visões que tratam a memória como mercadoria. Dos discursos sobre a África do Sul depois do Apartheid à questão dos desaparecidos políticos na América Latina, a discussão da memória e do patrimônio deve em primeiro lugar, servir para dizer quem de fato somos nós.