quarta-feira, 19 de maio de 2010

Cracknet


As máquinas técnicas funcionam, evidentemente,
com a condição de não serem estragadas.
As máquinas desejantes, ao contrário, não
cessam de se estragar funcionando; só funcionam
quando estragadas
Gilles Deleuze e Felix Guattari, Anti-édipo.


Eu estava assistindo o documentário Geração Internet, do canal GNT quando me veio a cabeça a palavra cracknet, que evidente, querido leitor, não existe. Mas Deleuze diz que a filosofia é a arte de inventar conceitos e então mãos a empreitada. O documentário tratava da atual dependência dos jovens da internet, verdadeira epidemia de nosso tempo. Descrevendo a geração internet, mostrava milhares de jovens cujos hábitus (Bourdieu) envolvem o fato de não se desgrudar da tela do computador e cujas conseqüências iniciam na familia com o distanciamento das relações com os pais – como no pai que tem de passar um e-mail para chamar a atenção do filho até o ambiente escolar, onde jovens reconhecem que nunca tinham lido um livro sequer mas abusavam do uso de sites de resumo para realizar os trabalhos de aula.

A geração internet é composta por estudantes que saem da sala de aula para entrar em salas de bate-papo, chats e comunidades do Facebook. Nesse novo universo jovem, “perfis” são as formas de construção de identidades no mundo virtual, e nos termos de Baudrillard, encarnam a realidade do “duplo”, obsessão simbólica da humanidade que persiste em ser personagem de novela. O problema é que estes “Duplo” os substituem na mesma inexorável lógica capitalista – amigos são acumulados a exaustão, compara-se quem tem mais comentários, etc, etc. Diz uma moça a certa altura:“É viciante”. No mundo virtual em que se busca ter mais amigos, o que é paradoxal é que na maioria das vezes, tais amigos são em realidade – não amigos, totalmente desconhecidos – e esse “nada” do sentimento é o espelho da própria sociedade. Nesse universo que pretende de alguma forma substituir o real, pais vêem seus próprios filhos trancados em quartos, preferindo discutir/expor seus problemas na internet do que com a família.

Como no mundo real, no mundo virtual há espaço para muita violência. Nesses sites, jovens trocam insultos, deixam comentários nas páginas uns dos outros, brigam virtualmente. Válvula de escape virtual de uma violência real ou acelerador virtual de uma violência real? No mínimo, violência mediada pela imagem da violência, onde os jovens revelam o prazer de filmar cenas de humilhação para em instantes posta-las no You Tube. Nesse mundo, jovens tem relacionamentos no mundo virtual que não teriam no mundo real, negando as teses de Michel Maffesoli, da internet como terreno fértil da sociabilidade juvenil contemporânea.

A imagem que vem a mente é a do filme Matrix, no detalhe da conexão técnica da máquina e do ser humano e que parece vir a toda. Estamos conectados ao computador, mas o que significa isso? Existe uma passagem em que Deleuze dizia que com a criação do automóvel, criamos outra coisa, o homem-máquina, interrelação misteriosa em que a máquina parecer ser parte de nós e nós da máquina. É que não nos damos conta de que nesta operação, automatizada, também transformamo-nos. E quando esta máquina é o computador, o que significa? Diz outra jovem ”Já faz parte da minha vida”. Absorção perigosa e a preocupação de educadores é como educar na era onde só a internet tem sentido.

Não há como negar que a emergência da internet transformou os modos de vida. Esse mundo não vai sumir, mas é perigoso quando jovens preferem o mundo virtual ao mundo real. Talvez uma forma de assumir um distanciamento disso tudo seja ver a expansão da internet como um elemento a serviço da ideologia da democracia liberal capitalista global, a maneira das análises de Slavoj Zizek. O capitalismo, ao nos apresentar o mundo virtual como um espaço “público”, nos apresenta uma realidade fantasmagórica assimilável dizendo o que podemos ou devemos fazer. O social é insuportável? então vá para o virtual. A internet é uma realidade fantasmática, e em termos zizekianos, o mais perigoso dela é que ela dá a incrível sensação de que a vida torna-se suportável “pois há escolhas a serem feitas”, diz . O ardil ideológico da internet é manter a realidade a uma certa distância, revelando que o que está em jogo justamente são os aspectos traumáticos da realidade que são representados pelo encontro com o outro.

Assim, o vício em internet, ou aqui cracknet - vamos pensar por um instante que este conceito seja possível - torna-se assim tão perigoso quanto o vicio em crack real, objeto de tantas campanhas. O cracknet domina de forma tão intensa o cérebro que torna-se impossível deixar de ler e-mails ou acessar sua conta; e é essa sensação imensa de euforia que a conexão com a internet possibilita que a torna perigosa: quando você se afasta dela, você fica com a urgência de retornar a ela? Sinto, então você já é um viciado.Internet vicia como crack? De certa forma sim, mas não do ponto de vista da produção de alucinações, simplesmente porque ela própria já é a alucinação em si. E o fato de que o usuário de internet não sentir prazer por outros aspectos da vida, reforça o fato de se transformar em vicio. Como assinala Zizek, trata-se de mais um elemento naquilo que ele denomina de “lógica inexorável do capital”, a construção da prisão que governa a vida. Longe de ser somente o abismo de liberdade que promete a internet, ela também é o abismo da desintegração do outro e de si mesmo.

Marc Auge formulou um conceito que identifica a internet: é um não-lugar. O não lugar opõe-se noção antropológica de lugar. Para Mauss, o lugar é o que define nossa natureza, como o lugar que o antropólogo visa estudar, o lugar do nativo, lugar de vida, de celebração da existência, lugar de seus descendentes. Lugar é sempre principio de sentido.” Nesse sentido, a famílía, por exemplo, é um lugar, solo que ajuda a compor a identidade individual, espaço de compartilhamento de referências e vivência de sua própria história. A internet é um não lugar não porque é virtual, mas por sua provisioridade e efemeridade. Para Auge, são lugares comprometidos com o transitório e com a solidão. No mundo caracteriza do pelo excesso (Baudrillard), a internet apresentase como não lugar fugidio, que merece ser estudado, mas não como algo natural, ao contrário, como lugar repleto de contradições e complexidades.

Zizek afirma que durante séculos a igreja teve papel fundamental nos destinos humanos preenchendo todas as ações, atos e desejos de sentido da humanidade. Detendo o significado da vida e do mundo, Zizek diz que a religião era o Significante Mestre e que com o advento da modernidade, perdeu seu espaço. A sociedade capitalista atual implora por um Significante Mestre que o substitua o anterior. Que nosso fascínio pela internet corresponda a um momento desta procura, parece óbvio, mas a verdade é que somente novos pontos de vista sobre a realidade que providenciem consistência a nossa experiência de significado podem ser levados em consideração. Diz Teles em O capitalismo e suas patologias: “o Capitalismo proclama, vende, produz uma ideia de globalização de seres ligados e interagindo entre todos no mundo inteiro, as pessoas, os sujeitos cada vez menos estão “ligados”, interligados numa mesma sintonia de pensamento, crenças, sonhos, ideais. É certo que, sempre houve na história pessoas e pessoas em determinado tempo, no entanto, nunca houve tamanho desencontro de pessoas.” É esse efeito que o vicio em internet, cracknet, termina por ocultar.

Nenhum comentário: