“Não existe nada pior que alguém querendo fazer o bem, especialmente o bem aos outros” Michel Maffesoli, La part du diable, Flammarion, 2002
No último sábado (06/03) a Secretária de Cultura do Estado em entrevista ao Caderno de Cultura de Zero Hora, respondeu as críticas que vem recebendo do meio cultural desde que Luis Paulo Vasconcellos publicou seu provocativo artigo “Desde quando faxina é cultura?”, no mesmo suplemento. A conclusão é simples: como Secretária de Cultura, Mônica Leal é uma ótima Secretária da Fazenda. Defende como foco principal de sua gestão o saneamento das finanças da secretaria da cultura. E apresenta a política cultural que idealiza: “uma política cultural acessível às diversas camadas sociais e aos diversos segmentos sociais”. Prezada Secretária: a senhora poderia ser um pouco mais específica?
A questão colocada por Daniel Feix “Para onde vai a Sedac”? é originada de dois fatos básicos: o fechamento da Sala de Cinema Norberto Lubisco e a demissão do historiador Voltaire Schilling da direção do Memorial do Rio Grande do Sul. Os fatos acirraram o contexto de crítica da comunidade cultural a política desenvolvida na pasta, que não é reconhecida como politica cultural por integrantes do sistema da cultura. É o fato óbvio: o sistema da cultura se mantém de pé graças as equipes de trabalho que tem sobrevivido e mantido de pé todos os órgãos da pasta, a mingua dos recursos estabelecidos pela secretária. Acostumados a sobreviver no deserto de recursos em que se transformou a área cultural em nosso estado, Mônica Leal teve liberdade para executar seu ajuste fiscal a risca, mas esqueceu o fato de que o Plano de Governo Yeda[1] também afirmava que seu objetivo era de reequipar os órgãos da cultura. Ora, se as ações de redução de gastos são reivindicados como uma das ações principais promovidas pela Secretáriaj, fica impossivel pensar que os equpamentos como o Memorial do Rio Grande do Sul, fossem objeto de investimento, e não o foram. Quer dizer, na prática, fez-se justamente o contrário do que o proposto pelo Plano de Governo.
O fato da resposta da Secretária apontar realizações de sua gestão no plano fiscal não responde a questão fundamental formulada por Daniel Feix e que ainda está de pé: às vésperas de entregar o cargo para concorrer as eleições, qual é de fato a política cultural da Secretaria da Cultura? Passados já tantos meses é natural que as criticas surjam no cenário cultural. O problema é que elas são agravadas pela tomada de decisões equivocadas e fechamentos de espaços culturais. Ora, de fato o contexto de critica já é a própria avaliação pública das ações da pasta, o que é o ônus de ser governo. Isto não pode ser feito a partir do senso comum, ou da opinião em geral, mas a partir das contribuições da Polícy Cycle Approach, ou “Abordagem do Ciclo de Políticas”, formulada inicialmente por Stephen Ball[2] e colaboradores, marco teórico onde acreditamos seja possível realizar a avaliação da trajetória da ação cultural no Governo Yeda e consequência do balanço que Feix se propôs a iniciar.
Para Ball são três os contextos ou arenas políticas que devem ser consideradas para avaliar as políticas públicas: o “contexto de influência”, onde atuam as redes culturais em torno dos partidos e onde nasce o discurso de base da ação política; o “contexto da produção do texto” onde estão os textos políticos legais, oficiais ou pronunciamentos, produtos de disputas e acordos e que revelam o quanto a política pública é uma intervenção textual; e o “contexto da prática”, aquele onde as políticas não são apenas concretizadas, mas também interpretadas e sujeitas às interpretações. Diz Ball “Políticas serão interpretadas diferentemente uma vez que histórias, experiências, valores, propósitos e interesses são diversos. A questão é que os autores dos textos políticos não podem controlar os significados de seus textos. Partes podem ser rejeitadas, selecionadas, ignoradas, deliberadamente mal entendidas, réplicas podem ser superficiais, etc. Além disso, interpretação é uma questão de disputa”
Para Ball as formas como os dirigentes conduzem suas ações na formulação de políticas públicas está diretamente relacionado com estes três contextos. Sendo assim, como poderíamos caracterizar a política atual da Secretaria da Cultura a partir dos contextos em que se desenvolve? No contexto de influência, observa-se a pouca participação das redes culturais ao redor dos partidos no governo. O Partido Progressista, da Secretária, possui mais ação no campo da juventude do que na cultura. A trajetória do PSDB-RS e de Yeda Crusius [3] trazem poucas referências a participação de entidades culturais na formulação do projeto de governo para a cultura. A Secretária, por outro lado, quando vereadora teve a louvável organização de um seminário sobre museus militares no legislativo, mas no cargo de secretária, por força legal, rompeu com a Associação de Amigos da Cinemateca Paulo Amorin. De fato, salvo melhor juízo, os avanços que a pasta conquistou devem-se mais a iniciativa de suas equipes em participar de seleções nacionais de fomento à projetos - como o Petrobrás Cultural - de onde retiram recursos para a inovação em cultura do que das iniciativas da Secretária para ampliar os recursos de sua pasta no governo Yeda.
Com relação ao contexto de “produção de textos” também fica evidente o descaso com a cultura. O modelo de gestão do governo Yeda Crusius[4] apenas cita a Secretaria de Cultura; também não encontram-se discursos políticos da Secretária da Cultura na página do Governo – que perde ali de 10 a 0 para a ex- secretaria da Educação Marisa Abreu, uma presença constante e a verdadeira “menina dos olhos” do Governo Yeda, que fez a educação tema de vários discursos. Entre os 341 discursos, não há um único pronunciado por Mônica Leal. Os seis únicos discursos da Secretária da Cultura estão disponíveis na página do SEDAC e tratam de temas diversos: gestão e inclusão, Festival de Gramado, preservação da memória, Mário Quintana, Tradicionalismo e Cultura. Para se ter uma idéia, a governadora possui 44 artigos publicados e 248 discursos políticos publicados que, excetuando-se os artigos sobre Oswaldo Aranha ou os discursos sobre o a Revolução Farroupilha, pouco ou quase nada revelam sobre de defesa da questão cultural em nosso estado.
Especificamente quanto ao “contexto da prática” como podemos resumir as interpretações que vem sendo desenhadas sobre as ações de cultura da Secretária? Primeiro é a crítica a adoção do estilo liberal, percebido naqueles equipamentos e setores onde a cultura se identifica a belas artes, considerada em sua distância da cultura popular. Ela tem atrás de si a idéia de arte como privilégio de uma elite escolarizada. A promoção da vinda de grandes obras de arte insere-se neste contexto. Segundo é a indicação dos traços do estado autoritário que possui, aquele em que o Estado se apresenta como o produtor oficial da cultura e selecionador da produção cultural da sociedade civil. Ela pode ser vista na promoção de eventos culturais no litoral ou na programação de inverno da Secretaria. A demissão de Voltaire Schilling insere-se no nó gordio da Secretaria: coordenando um equipamento com potencial de grandes eventos, Schilling tinha como política a formação de publico consumidor de cultura através de seus Cadernos. Uma política de base, discreta, e não de grandes eventos. A insatisfação da Secretária dá-se justamente pelo fato de que a formação de público não é política de Estado. O que, subliminarmente, sugere que a política de estado seja simplesmente, aquela que dê mídia. Entramos no campo da simulação das políticas públicas de cultura, onde a produção do espetáculo é considerada superior a produção da realidade cultural.
O terceiro é a indicação dos traços da cultura populista, aquela que manipula uma abstração denominada cultura popular como ícone do estado, ao associar a produção cultural do povo gaúcho exclusivamente ao tradicionalismo ou a valorização da Revolução Farroupilha, sem considerar o campo da identidade local e das culturas marginais. Finalmente, é a crítica a defesa de uma política neoliberal no âmbito da cultura, que identifica o universo da cultura a eventos para as massas, cuja principal característica é a produção cultural efêmera (centenas de eventos) sem permanências nas culturas locais. De reboque, é a critica a intenção de privatizar instituições culturais, o que significa alienar-se de sua responsabilidade – a manutenção do sistema cultural do estado – através da reforma da LIC e da implementação da FAC – Fundo de Apoio a Cultura.
Mas o contexto das práticas também inclui alterações de sentido que devem ser consideradas para sua definição. É o que emerge da questão se a cultura deve ou não se “meter” em problemas sociais. Em outro momento, Mônica Leal assinalou que, as propostas da cultura estavam inseridas nos Programas Estruturantes por que eram colaboradoras dos processos de inclusão. A questão está mal formulada porque há um erro conceitual. O problema é aqui o emprego equivocado do termo Inclusão, que a rigor, deve ser utilizado preferencialmente para em processos de ensino para o atendimento de alunos com necessidades educacionais especiais, conforme a Declaração de Salamanca de 1994[5]. Inclusão é o principio que defende que a escola deve atender a todas as crianças, inclusive as com deficiências ou superdotadas, com uma pedagogia especial. O motor da crítica de Vasconcellos ao caráter paliativo da proposta de política cultural de inclusão, é ao final, a constatação da transferência indevida de um conceito do sistema pedagógico para o âmbito do sistema da cultura.[6]
O que significa esta operação conceitual elaborada pela Secretária da Cultura? Há um livro Slavoj Zizek intitulado "The Parallax View” [7]onde o autor define como o uso de uma perspectiva de paralaxe como aquela que produz o deslocamento ilusório de um objeto provocada por uma mudança na posição de observação. É portanto, no campo do artifício – como aponta Vasconcellos – que a chamada “política de inclusão pela cultura” se localiza. Ora, não há a rigor nada de errado com o fato de que a Secretária repute como fundamental para sua gestão que suas ações no sistema da cultura visem colaborar com outras iniciativas, inclusive da educação, como no combate à violência. Não duvidamos de que provavelmente são bem vindas para os beneficiados por tais ações. O problema é chamar de política de estado de cultura aquilo que pode ser apenas compreendido como função de subordinação da pasta da cultura à pasta da educação e assistência social.
Já chamamos a atenção da Secretária para os seus riscos ao assumir uma posição subalterna na direção da ação cultural nos Projetos Estruturantes do governo do estado (Cultura faz falta, sim senhora! Zero Hora, 24/5/2008 e Programa Camarote TVCOM, 11/06/2008). Entendemos que a Secretária da Cultura, munida das melhores intenções e tentando mostrar serviço, ao fazer a defesa de uma suposta política de inclusão em sua área, terminou por dar um “tiro no pé”, provocando aquilo que Zizek designou de "parallax gap" (um hiato, uma lacuna de paralaxe), ou seja, no espaço que separa duas políticas entre as quais não existe qualquer mediação possível, produziu uma ligação por um impossível "curto-circuíto" de níveis que nunca poderão se encontrar, como é o caso da proposta de política cultural de inclusão, exceto, se a Secretária da Cultura estiver pensando na construção de rampas e elevadores de acesso para os portadores de deficiência nos órgãos culturais, numa palavra, acessibilidade, o que os mesmos e suas equipes agradeceriam com fervor. É nesse sentido profundo que se entende a defesa de uma suposta “maquiagem” da política cultural do estado defendida por Luis Paulo Vasconcellos, com a qual concordamos, mas cuja expressão mais correta seria a de bricolage.
A Secretária de Cultura deve tirar proveito do debate a respeito de suas políticas de cultura: para expor mais seu projeto ou para fazer seu mea-culpa. É preciso lembrar, em primeiro lugar, que a Secretária ficou por um longo período a vontade para desenvolver seu projeto, devido à fraqueza da oposição em acompanhar de forma crítica as ações do governo estadual na cultura. Por um lado é falta de empenho da esquerda local, da qual a secretaria se beneficiou politicamente, e por outro, é reflexo da ausência de mecanismos, até bem pouco tempo, de Transparência Pública para acessar informações da secretaria e que poderiam ser resolvidos de forma simples com Portais na Internet, como fazem muitos órgãos públicos. Em segundo lugar, é preciso lembrar que o escândalo político envolvendo órgãos do Governo Yeda teve o efeito de provocar uma cortina de fumaça, beneficiando diretamente a secretária, já que sua pasta e gestão passou desapercebida à critica cultural. Mas passados os desgastes, é justamente a Secretaria da Cultura, a mais frágil de todas, que pode se transformar no calcanhar de aquiles do governo Yeda nesta próxima eleição.A prova disto é que agora, emerge um acompanhamento pela setorial de cultura da esquerda local e pelos partidos que radicalmente se opõem ao seu governo[8]. As poucas pessoas que apenas agora, motivados pela constatação da existência de uma “Secretaria Esquecida”, iniciam os primeiros ensaios de critica pública, não vem obtendo respostas as suas perguntas. Estas questões devem orientar a agenda da política cultural até o final do seu mandato pois elas envolvem questões centrais de definição de uma política cultural.
Em primeiro lugar, a discussão sobre o modelo de gestão de cultura em andamento. A adoção ou não de uma visão neoliberal na cultura do estado deve ser a primeira questão do debate público. A Secretária deve ser capaz de responder a população se de fato suas ações são de caráter público, ou se está assimilando padrões da cultura de massa e da fashion culture. O poder público presta serviços culturais mantendo bibliotecas e escolas de arte e financiando produções culturais propostas pela sociedade. Política cultural significa cidadania cultural.
Em segundo , a discussão do vinculo entre política cultural e acesso a direitos culturais. Direitos, não eventos culturais. A Secretaria de Cultura deverá mostrar serviço neste campo porque nos princípios desta crítica está a idéia de que há direitos de acesso e fruição de bens culturais que somente serviços públicos de cultura, com equipes multiprofissionais, bibliotecas abertas e com acervo e arquivos históricos organizados podem fornecer. E cabe à Secretaria o esforço de bancar com recursos próprios do Estado tais processos. Mônica Leal paga o preço por ter seguido fielmente a Cartilha de Yeda Crusius: melhor teria sido se tivesse sido capaz de lhe lançar o desafio de uma luta por mais recursos para sua pasta. A redução de custos tem um significado em políticas públicas: a manutenção do status quo.
Em terceiro lugar, a discussão de como se desenvolve a política de atendimento dos direitos de criação cultural. Cultura é trabalho da sensibilidade e imaginação, memória e experiência, que permitem grupos se reconhecerem como sujeitos culturais. Por esta razão tão importante quanto os espaços consagrados são os novos espaços que a atual gestão proporciona, ou espaços informais de cultura, na cidade e no interior, no campo e na cidade. Finalmente, a Secretária deverá mostrar o que vem fazendo para garantir o espaço da sociedade na participação das decisões públicas de cultura e como pretende equacionar a transparência do financiamento cultural do Estado. Quando a Secretária da Cultura responder a estas questões, ela terá chegado naquela que é sentida como sua maior carência: a de um verdadeiro projeto cultural para a secretaria da cultura.
[1] Conforme http://www.scp.rs.gov.br/uploads/planoGovernoYeda_2007_2010.pdf
[2] Ball, S.J.Policy sociology and critical social research: a personal review of recent education policy and policy research. British Educational Research Journal. Manchester, v. 23, no. 3, p. 257-274, 1997; Ball, S.J. What is policy?Texts, trajectories and toolboxes. Discurse, London, v. 13, no. 2, p 10-17, 1993.
[3] Conforme www.pp-rs.org.br e http://www.advbrio.com.br/2006/eventos/forum_gov/
2008/yeda_crusius/Curriculum%20Vitae%20-%20Governadora%20Yeda%20Crusius.doc
[4] Conforme http://www.estado.rs.gov.br/arquivos/arqs_anexos/modelodegestao.pdf
[5] Conforme portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf
[6] A esse respeito, exemplos de políticas de inclusão podem ser encontradas a nível federal em http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/docsubsidiariopoliticadeinclusao.pdf.
[7] Há uma tradução pela Fundo de Cultura Econômica Argentina de 2006.
[8] Conforme www.pt-rs.org.br e www.psol.org.br
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