terça-feira, 22 de maio de 2012

Sobre estética das obras públicas




Mexeu com a Câmara, mexeu comigo.
O artigo de Paulo Bicca publicado na última edição de ZH Cultura descreveu o prédio da Câmara Municipal como um dos exemplos de prédio público em um espaço de precárias condições e que contribui para que nossa cidade seja, na melhor expressão, feia. Bicca tentou, mas não conseguiu, isolar o projeto de Cláudio Araújo desse contexto, mas o fato é que o entorno faz parte da Câmara e, na minha opinião, não há nada errado com eles.

O problema está na perspectiva. Bicca quis recriar a experiência do flaneur, personagem emblemático descrito por Walter Benjamin, em nossa experiência urbana. Otilia Arantes conta uma história que ajuda a entender esta posição. Ela diz que um dia Walter Benjamin explicou a Martin Buber que recebera a encomenda de um artigo sobre Moscou e que sua intenção era apresentar a cidade como se ela mesmo fosse uma teoria, sem digressão teórica, descrevendo as imagens da cidade a partir de sua “posição interna”. Isso o fez vagar por feiras de vendedores, ruas cobertas e observar os objetos da vida cotidiana. É que o “Projeto das Passagens” tinha uma pedagogia materialista, uma crítica à ascensão das mercadorias e buscava pelo potencial de transformação social. Mas aquele ainda era um projeto que via a remodelagem do mundo pela industrialização e urbanização como algo que levaria as massas ao paraíso. O mundo dos sonhos.



Bicca quer para si o lugar do flaneur portoalegrense benjaminiano. Resolveu sair e caminhar pela cidade e o que viu? Na Câmara, “um arremedo de estacionamento, em terra, esburacada e com lodo e água empoçada quando chove”. Critica o painel em frente à Câmara “que independente de seu conteúdo, jamais poderia estar aí”.O que critico na posição de Bicca? É que ele escolheu como método observar a cidade de dentro, a “posição interna” que fala Benjamin. Qual a pedagogia de Bicca? A de que precisamos de uma cidade melhor sim, mas aquela na qual os arquitetos tenham a palavra principal para “impedir de construir o que não deve ser construído”, diz. Mas quem diz o que deve ou não deve ser construído? Os arquitetos, o Estado ou a Sociedade? Se você observar o que Bicca valoriza, é sempre a paisagem clássica em detrimento da moderna, mas como tornar atual a arquitetura pública? Diz Jeudy: “Atualizar significa primeiro subtrair a temporalidade habitualmente atribuída ao passado, para torná-lo atemporal e conferir-lhe ao mesmo tempo um “poder de contemporaneidade”". Ao contrário, a leitura de Bicca nada mais faz do que adotar uma estratégia que visa desestabilizar o tempo presente, adotando uma complacência moral que diz que “o passado ilumina o presente”. Projetos são modificados sim, devido ao contextos, circunstâncias, por inúmeros atores que não apenas os arquitetos. A arquitetura pública é uma construção coletiva. O que faltou em sua concepção: a ideia que a arquitetura urbana muitas vezes é produto de uma negociação.

Ora, se você quiser descrever a beleza da Câmara Municipal de Porto Alegre, e de resto, dos prédios públicos em geral tão criticados por Bicca, é preciso observar de fora da cidade para ter uma visão melhor do que eles representam na fisionomia da cidade. Antes de Benjamin, Alan Poe. Explico.


Alan Poe escreveu o conto “O Aperto”, uma das descrições mais interessantes da cidade de Edimburgo, onde quis evitar a descrição de sua fisionomia de forma direta, a passeio, já que ”todo mundo já esteve em Edimburgo”. A história, recontada por Nicolau Sevcenko, é protagonizada por três personagens: a Signora Psyche Zenóbia, o coadjuvante Pompeu, seu velho escravo e Diana, uma cadelinha poodle. Passeando os três pela cidade, Zenóbia vê uma catedral gótica com sua torre altíssima e se vê tomada por um desejo irresistível de subir nela e vislumbrar a extensão da cidade. Ela sobe, mas não encontra uma janela, só uma abertura num imenso relógio, que expunha as horas para os seus habitantes. Ela coloca a cabeça na abertura: “O panorama era sublime. Nada podia ser mais magnífico(...)Eu me entreguei com prazer e entusiasmo ao gozo da cena que tão amavelmente se oferecia diante dos meus olhos”. O final da história? Como nos contos de Poe, os ponteiros, como imensas lâminas afundam-se no pescoço da matrona, o negro foge e a cadelinha é devorada pelos ratos. Genial.


O que interessa aqui é o método. É que para descrever a cidade, é preciso voar e correr os seus riscos. É preciso vislumbrar a cidade do céu, das alturas, observando sua situação, a sua aparência geral, fazer uma espécie de travelling do alto, a olho nu, exatamente como foi feito em diversas cenas do filme “Porto Alegre, meu canto no mundo”, de Cícero Aragon. Para descrever o papel que a arquitetura pública tem na fisionomia da cidade, como quer Bicca, é preciso procurar uma posição elevada para ver de cima a totalidade da capital. Diz Sevcenko “Olhada ao rés do chão a cidade se dissolve em fragmentos, cuja dispersão infinita é sumamente desagradável. Vista, descrita ou representada de um ponto elevado, ela se torna um emblema abstrato imediatamente apreensível”. É disso que se trata, a perspectiva do olhar.


Se você olha da Câmara de cima, o que você vê? Você não vê os estacionamentos, tão criticados em sua feiúra por Bicca, mas você vê a imensidão de uma bela área verde, das árvores que embelezam o prédio legislativo. Elas tem uma história contata por funcionários e vereadores que as plantaram, que cuidaram delas dia a pós dia, área que, no ano passado, foi cenário da reprodução do primeiro plantio de mudas recriado por alunos do projeto de educação pelo trabalho que freqüentam a Câmara. É portanto, uma área que se atualizou permanentemente e que tem uma história para contar, que ao ver pelo artigo, Bicca desconhece. O estacionamento existe sim e pode ser feio para o caminhante: é que a Câmara é um prédio inacabado que aos poucos foi finalizado. Sofreu adaptações. Ele não é produto da idealização de um arquiteto em férias, não é o prédio dos sonhos, mas algo vivo em contato com a sociedade portoalegrense. O estacionamento é um problema e uma necessidade nas cidades, e é assim também na Câmara, mas graças a ele, mais parcelas da população tem acesso ao legislativo e naquele espaço, se Bicca observasse melhor, até um bicicletário está sendo construído onde ele só vê terra esburacada, prova de que o Legislativo atende a demandas da Comunidade, no caso, os ciclistas. Mas não há nada mais belo ao redor daquele prédio e que o dignifica do que o imenso cinturão verde que o cerca. Quanto ao painel, está escrito nele apenas um convite a entrada e participação nos debates. Aquela é uma rua de grande circulação, se Parlamento não tiver o direito de convidar seu público, quem pode?.


Não Bicca, discordo, o Legislativo e seu entorno estão inseridos na paisagem da cidade. Não Bicca, discordo, o Legislativo dá o exemplo do que deve ser construído em termos de prédios públicos. Não Bicca, o prédio da Câmara não é um espaço urbano de má qualidade. Claro que há muito a ser feito em busca de uma arquitetura bem inserida, o que concordamos, mas a verdade é que a Câmara está sim bem inserida na cidade. É que, Bicca, não vivemos no mundo dos sonhos dos arquitetos, mas no mundo possível de uma sociedade onde seus atores lutam por seus direitos, e nisso, o legislativo tem um lugar fundamental.


Mexeu com a Câmara, mexeu comigo.











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