segunda-feira, 5 de abril de 2010

Qual o lugar dos Institutos Históricos na construção da memória nacional?


A recente polêmica iniciada pelo Prof. Gervásio Rodrigues Neves, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul em entrevista ao Jornal do Comércio do último dia 5 de abril, ao tratar de um tema já consolidado na historiografia, serve para trazer um debate mais de fundo, e que agora tem a oportunidade de ser colocado: qual o papel dos Institutos Históricos na produção do saber histórico contemporâneo? Neves questiona a data de fundação da Câmara Municipal de Porto Alegre (6/9/1773) que, historiadores do próprio IHGRGS já na década de 70, como o Prof. Francisco Riopardense de Macedo, definiram como a data de referência. A polêmica coloca duas questões. A primeira: frente ao advento da pós-graduação e da multiplicação de instituições museais, ainda faz sentido o projeto dos Institutos Históricos e Geográficos no Brasil? A segunda, mais provocadora: e se a preocupação pela data de fundação do legislativo da capital não for uma pergunta acadêmica, mas ao contrário, o ato falho de uma instituição em busca de sua verdade - tal como na análise freudiana, o ato falho significa a emergência de um inconsciente revelador – o que de fato significa sua polêmica?

Se não vejamos. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, como se sabe, é uma das mais antigas instituções dedicadas ao tratamento e cuidado com a memória no Brasil. Fundado em 1838 com o objetivo de ser uma entidade que refletisse “a nação brasileira”, sua criação dá-se nos quadros do período pós-independência do Brasil. Composta por integrantes da então Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional – hoje, por sucessoras, a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro –, teve como secretários o cônego Januário da Cunha Barbosa e marechal Raimundo José da Cunha Matos, que a fundaram em 21 de outubro daquele ano. Desde então, passados mais de 160 anos, tal instituição incentivou a criação de similares nos estados, que terminaram por reunir um volumoso e significativo acervo bibliográfico, hemerográfico, arquivistico e museológico a disposição do público. Sua ligação com a monarquia é visceral: D. Pedro II, que recebeu do IHGB o título de protetor, incentivou as primeiras pesquisas e fez doações valiosas para o instituto.

Tais instituções foram necessárias neste período porque havia a carência dos meios para iniciar-se um processo de educação nacional. Mesmo com a vinda da família real para o Brasil, e a instalação da Imprensa Régia por D. João VI, havia a carência de instrumentos para garantir a educação nacional. Além disso, logo após a Independência do Brasil, frente a onda separatista que se inicia, tais instituições cumprem o papel de forjar a ideologia que mantinha intacta a idéia de unidade territorial e fortalecia o processo de centralização político-administrativa do Estado monárquico.

Os Institutos Históricos e Geográficos foram então pensados como uma Academia, do tipo preferido pelo Iluminismo europeu do período com a finalidade de coligir e guardar documentos, bem como escrever a história nacional como forma de manter a unidade ideológica do país. Não é a toa que um dos seus primeiros projetos é a escolha de um projeto de escrita da Historia Nacional “Como se deve escrever a Historia do Brasil”, vencida pelo naturalista alemão Karl Friedrich Philipp Von Martius, que consolida o tema da miscigenação das três raças formadoras do povo brasileiro que se torna recorrente no pensamento social e na produção historiográfica nacional. É o grande projeto da construção da memória nacional. Diz José Honório Rodrigues em A evolução da pesquisa pública histórica brasileira:

“O Instituto nomeava membros honorários estrangeiros, que prometiam procurar nos arquivos e bibliotecas europeus documentos relativos ao Brasil. É o caso de Teodoro Monticelli, que de Nápoles se oferecia a pesquisar para o Instituto. Era o caso, também, de Caetano Lopes de Moura, que, pensionista de D. Pedro II, examina as bibliotecas de Paris e depois foi à Bélgica e à Holanda, enviando para o Instituto Histórico os resultados de suas pesquisas.”


Tal concepção tinha como conseqüência a criação de um passado homogêneo e a consolidação de mitos de fundação, através da ordenação dos fatos históricos, constituição dos heróis nacionais, fornecendo as gerações futuras os exemplos de patriotismo e devoção a pátria que tinham como fim transmitir ensinamentos a população em geral, homogeneizando o pensamento no interior da nação. Ora, o que se estava fazendo na prática era congregar em torno de um referencial comum grupos sociais historicamente diferentes. Os Institutos Históricos nasceram para construir a História do Brasil, disciplina capaz de legitimar o estado monárquico em seu processo de centralização política e com membros compostos pela aristocracia rural e intelectuais românticos com uma grande preocupação: os momentos fundadores da nação.

Esta instituição teve questionado seu projeto no século XX devido a dois fatores principais. O primeiro é a ascensão da pós-graduação no Brasil, a partir dos anos 70, foi responsável pela criação de inúmeros centros de pesquisa em História em universidades públicas e privadas e pela formação de um extenso contingente de profissionais de história. Contando com recursos de fomentadoras de projetos (CAPES, CNPQ), tais instituições deram um impulso à pesquisa histórica que terminou por relegar a um segundo plano na sociedade o lugar dos Institutos Históricos. Além disso, enquanto que os Institutos Históricos amargavam em seus quadros membros ainda pertencentes as antigas gerações de pesquisadores - muitos jornalistas, autodidatas, e as vezes funcionários públicos - as universidades ganhavam pesquisadores titulados inclusive no exterior e com uma série de publicações.

O segundo foi a multiplicação, a partir dos anos 90, de centros de memória nas mais diferentes instituições públicas e privadas. Foi o golpe de misericórdia sobre os Institutos Históricos e Geográficos, que deixaram de ser a referência em produção de memória, passando a disputar espaço no mercado museal com centros de memória das mais diversas instituições, públicas e privadas, muitas vezes com mais recursos, enquanto os Institutos Históricos sobreviviam da limitada contribuição oficial ou de suas rendas. A perda de espaço foi sentida como um desestímulo da sociedade para com seus integrantes, que em que pese o mérito evidente de suas pesquisas, insistiam em manter investigações na linha dos seus estudos tradicionais dos anos 30 e 40, enquanto seus congêneres universitários situavam-se no campo pós-moderno.

Talvez, e talvez somente neste ponto, possamos compreender o significado do esforço do atual dirigente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul em atacar uma efeméride do legislativo local: no fundo, no fundo, mais do que um “conflito de interpretações”, seu esforço é revelador da subjetividade de uma instituição que vê a paranóica busca do mito de fundação, em tudo e em todos, como seu único refúgio, o lugar em que se sente bem. Se for assim, é hora do IHGRGS repensar sua identidade. Quem avisa, amigo é.

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