sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O legado dos "mestres sansei" da esquerda

Se eu me arrependo?Não, não creio. Tenho plena consciência de que a causa que abraçei revelou-se infrutífera. Talvez não devesse ter seguido esse caminho. Mas, por outro lado, se os homens não cultivam o ideal de um mundo melhor, eles perdem algo. Se o único ideal dos homens é a busca da felicidade pessoal, por meio de acúmulo de bens materiais, a humanidade é uma espécie diminuída


Eric Hobsbawn


Deixaram-nos em pouco menos de quatro meses dois dos maiores pensadores de esquerda da atualidade, Robert Kurz e Eric Hobsbawn. A morte do primeiro, em 18/07, foi anunciada laconicamente nas páginas da revista Exit! e pouco repercutiu no Brasil; o segundo, falecido em 1/10, mais conhecido no meio universitário, teve razoável repercussão, mas a falta de ambos, sem dúvida, é de grande tristeza para a esquerda. Acompanhei à distância quando o cientista político Fernando Schüller, então Diretor do Centro Cultural Usina do Gasômetro, trouxe Hobsbawn à Porto Alegre em 1992 em um evento de grande repercussão e conheci pessoalmente Kurz quando organizei sua vinda à Porto Alegre em 1997 para uma Conferência Internacional na Câmara Municipal. Com plenário lotado, uma aula da melhor critica do Capital.


Minha geração acostumou-se a leitura de suas obras nos anos 80. Lembro-me de descer a Rua Garibaldi em direção à Rua Osvaldo Aranha, no Bairro Bom Fim, tradicional reduto boêmio em Porto Alegre, de madrugada discutindo Kurz e sua obra clássica “O colapso da modernização” sem ser assaltado - algo improvável hoje em dia- mas eram seus artigos e criticas que fazia ao capitalismo que, atualizando o pensamento de Marx, tornavam sua abordagem insuperável. O autor de "Ultimos Combates" e “Com todo o vapor ao colapso” fazia análise da economia sob o ponto de vista marxista, mostrando as novas formas de realização do conceito de fetiche da mercadoria. Kurz retornou a Porto Alegre em 2009 para participar do Fórum Social Mundial com a ideia de que a esquerda precisava fazer sua autocrítica: ”A crise existencial da esquerda de hoje consiste justamente no fato de ela não ter conseguido transformar o marxismo e reformular a crítica da economia política dentro dos padrões do século XXI. Pois naturalmente não existe volta para os paradigmas de uma época passada”, dizia. A esquerda perde uma voz que significava o verdadeiro espírito da critica capitalista.


Hobsbawn tinha uma obra extensa reconhecida e nos corredores universitários lia-se muito sua trilogia composta por "A Era das Revoluções", “A Era do Capital” e “A Era dos Impérios”, mas como assinala Correa, da mesma forma que Kurz, o que chamava atenção mais uma vez eram seus artigos de circunstância, que o fizeram também deixar os limites do espaço acadêmico para exercer uma influência notável no campo social. (1) Talvez a grande diferença entre Kurz e Hobsbawn é que enquanto o primeiro defendia o ensaismo e a critica sociológica como os grandes instrumentos de atuação politica do intelectual, o segundo ensinou a uma geração de historiadores que estes podiam serem intelectuais no campo da política. É que para Hobsbawn não se é historiador sem um projeto para a sociedade, sem fazer uma ponte entre o passado e o presente. O historiador como intelectual é alguém engajado nos problemas da “cité”, daí o tema do presente emergir na obra de Hobsbawn. Para ele era inevitável a experiência pessoal quando falamos de nosso próprio tempo, o que é uma vantagem dizia, para aqueles que como ele viveram um longo período de vida, já que eles poderiam saber, mais do que ninguém, como as coisas mudaram.



Com sua morte recente, Hobsbawn merece uma atenção especial não apenas por seu legado como historiador notável que foi, mas pela sua contribuição política ainda pouco conhecida. Ele nunca renegou suas paixões políticas e compromissos ideológicos, ao contrário, dedicou grande parte de sua vida à esperança da Revolução Comunista. É que a leitura dos trabalhos de Marx como “O 18 Brumário” foi fundamental em sua obra: "Mesmo que eu achasse que grande parte da abordagem da história por Marx precisasse ser jogada no lixo, ainda assim continuaria a levar em consideração, profunda, mas criticamente, aquilo que os japoneses chamam de um sensei, mestre intelectual, para quem se deve algo que não pode ser retribuido. Acontece que continuo considerando(...)que a concepção materialista de Marx é, de longe, o melhor guia para a história". Criticando o que chamava de marxismo vulgar baseado numa interpretação economicista da história (2) afirmava que“A história necessita de distanciamento, não apenas das paixões, emoções, ideologias e temores de nossas próprias guerras religiosas, mas também das tentações ainda mais perigosas da identidade” Hobsbawn assume um comprometimento político explicito mas não quer misturar suas esperanças com análise histórica. Por isso sua atuação política ocorre ocupando os espaços nos periódicos e depois, como muitos outros de sua geração, nos meios de comunicação, o que levou a Prospect Magazine, em sua edição de novembro de 2005, a aponta-lo com a 18ª personalidade mais influente do planeta. Na verdade, ele nunca considerou que tivesse feito grande coisa como militante do Partido Trabalhista mas foram seus artigos sobre este partido e a política inglesa que provocaram enorme debate em seu pais. Escrevendo paradoxalmente uma história com distanciamento mas politicamente engajada, Hobsbawn encontrou sua maneira de fazer política enquanto historiador. Ele era um marxista convicto, mas não se tratava de expor seus projetos sociais mas de transformar a realidade por meio de uma ação concreta, i.é, expor uma estratégia viável para conquistar o poder numa situação real. Esse espirito critico influencia profundamente Robert Kurz e o inspira a acompanhar em detalhe os acontecimentos contemporâneos, principalmente, quando analisa em detalhe os movimentos das grandes corporações, crítica suas estratégias de marketing e as formas de tomada das consciências. Como para Hobsbawn, para Kurz a chave do processo encontra-se no período pós-segunda guerra mundial e sua conclusão é angustiante: “Foram atingidas pela crise as bases comuns de uma história de modernização de duzentos anos ou mais. Aqui trata-se de uma crise comum ao Ocidente e ao Leste Europeu, que não surge simplesmente do conflito de sistemas e seus critérios, mas que vem de muito mais fundo” Para Kurz, o capitalismo, apesar de ter sobrevivido, será a próxima vítima, e o marxismo, sua consciência crítica, revela-se parte daquilo que está em crise.



Hobsbawn também pensava assim. Sua fase politicamente mais produtiva deu-se em um contexto pouco favorável. A crise econômica de 1973 propiciou a expansão das idéias neoliberais, foco da crítica de Kurz, principalmente na Inglaterra de Thatcher(1979), nos Estados Unidos de Ronald Reagan(1980) e na Alemanha de Khol (1982), uma guinada planetária à direita baseada na livre concorrência e na defesa da limitação da interferência do Estado. Para a esquerda, uma catástrofe. Para a direita não se tratava apenas de combater a sociedade do bem-estar social, mas o próprio Comunismo - é que a sociedade de bem-estar social era considerada, de certa forma, uma subvariedade do comunismo. O que Hobsbawn notou com astúcia é que o triunfo da ideologia neoliberal se fez em governos demasiado falidos para lhe oporem resistência. O que fez o autor de "A Era dos Extremos" nesse contexto? Propôs, em uma série de artigos publicados pela Marxism Today entre 1978 e 1988, uma reforma do próprio Partido Trabalhista inglês, então a principal alternativa ao thatcherismo. Além disso, Hobsbawn estava preocupado com o debate internacional sobre o papel da esquerda declarando-se filiado à tradição cuja base é a obra de Marx, Lênin e as resoluções do VII Congresso Mundial da Internacional Comunista: o combate ao facismo e a defesa da luta política das frentes populares “a falta de confiança é o fantasma que assombra a esquerda“, dizia. Os anos passam e ele continua cada vez mais crente na ideia socialista: ”se não acreditamos que a busca descontrolada de vantagens particulares, através do mercado, produz resultados anti-sociais, obviamente catastróficos; se não acreditamos que o mundo hoje clama por controle e gerenciamento públicos e por planejamento dos negócios econômicos, então não deveríamos nos considerar socialistas”. Na mesma ocasião, Kurz é o enunciador do conceito mais temido por dez entre dez economistas, o de crise da sociedade do trabalho. Diz Kurz: “Lembro-me muito bem como foi preocupante quando na Alemanha, no início da década de 80, o desemprego ultrapassou pela primeira vez o limite de um milhão de pessoas. Hoje, esta cifra seria uma notícia de sucesso”.A revolução de Kurz é mostrar que o desemprego que se vê por toda a parte não se trata de um fenômeno cíclico mas normal do movimento capitalista, o fato de que já vivemos o colapso do trabalho em escala planetária. “Isto quer dizer que as cifras do desemprego não se reduzem na fase de recuperação cíclica da conjuntura, mas ao contrário, elas ainda se ampliam”. E, finalmente: “Hoje parece, ao contrário, que entra em crise o processo de transformação do trabalho em dinheiro, o que Marx chamava de trabalho abstrato, isto é, o dispêndio de cérebro, nervos, músculos na forma social de dinheiro, e assim, na reprodução do homem no contexto de trabalho-dinheiro-consumo de mercadorias – essa conexão do trabalho com o dinheiro é histórica e de forma alguma supra-histórica”.



Hobsbawn viu que o neoliberalismo estava vencendo porque sequer o Partido Trabalhista inglês estava conseguindo sair de sua estagnação no final dos anos 70. Ele viu que somente transformando-se em um amplo partido popular teria-se alguma chance de combater o thatcherismo na Inglaterra. Propôs então as quatro metas para o Partido Trabalhsta: convencer as pessoas de que elas queriam o que o Partido representava; mostrar que a política do Partido Trabalhista não era apenas desejável, mas realista; que o Partido Trabalhista representava efetivamente todos os trabalhadores e que o trabalhismo tinha esperança na Inglaterra. Em 1987, vendo que a posição do Partido estava melhorando, mas não o suficiente, enunciou sua última estratégia: “votar no candidato que estiver mais bem colocado para afastar o candidato conservador. Quem quer que diga outra coisa, pois mais sincera que esteja, estará traindo o povo britânico, sem falar na democracia e no movimento trabalhista”. Nessa época e um pouco depois, como seguidor e contestador do marxismo, Kurz dedica-se aos vinte volumosos estudos do grupo da revista Krisis, anteriormente chamada de Marxistiche Kritik, publicados a partir de 1986. Torna-se escritor de grande sucesso e interlocutor privilegiado de expoentes do pensamento alemão como H.M Enzesberger, Ernest Lohoff e Peter Klein, com quem vem discutindo os conceitos marxistas de "fetichismo" e "valor". Inspirando-se em Marx, Kurz reconhece a lógica do valor como o centro da atual crise do capitalismo - aliás, ele foi o primeiro a antecipa-la. Critico ferrenho do processo que levou a reunificação das duas Alemanhas, analista em profundidade das causas da crise Argentina, e finalmente, um brilhante analista das formas de apropriação da subjetividade pelo capitalismo, suas teses enfatizam a idéia de que a história humana tem sido a história de relações fetichistas que não possibilitam a construção de nenhum sujeito social.



Enquanto pipocavam estudos fragmentários sobre a evolução do capitalismo na obra de Kurz, ainda faltava no cenário literário uma obra de peso sobre o século XX, o que Hobsbawn realiza com a publicação de “A Era dos Extremos”, onde através de um balanço de suas maiores expressões no período - os regimes políticos, sociais e econômicos - oferece um panorama critico dos efeitos gerados pela crise do capitalismo liberal burguês iniciado em 1914. Sua história do século XX mostra que o capitalismo atravessou uma fase de colapso até os anos 40 e uma posterior, com o florescimento do capitalismo liberal e um retorno a crise, que nos anos 80 que leva a queda do império comunista, i.e, o que caracteriza sua obra é a dialética da relação capitalismo-comunismo. Com notável astúcia, ele observa que a sociedade capitalista burguesa gera seu oponente, a sociedade comunista, e que esta termina por salvar o próprio capitalismo após a segunda guerra “o que quer que Stálin tenha feito aos russos, ele foi bom para o povo comum do Ocidente”, diz Hobsbawn. O tom simpático à Revolução Russa foi criticado por inúmeros historiadores como K. Pomiam e M. Mann: para Hobsbawn “o marxismo oferecia a esperança do milênio”.




A morte de Kurz e Hobsbawn deixam a esquerda de luto. Hobsbawn, mais do que Kurz, fez a mais perfeita combinação de paixão política e projeto político. Kurz, mais do que Hobsbawn, fez a mais completa dissecação dos processos simbólicos de alienação do capital. Ambos partiam de sua convicção do valor da obra de Marx; ambos veem o quadro de crise de sua época como fortalecedor de uma causa – a causa perdida de que fala Slavoj Zizek - a necessária substituição de um sistema por outro; ambos ajudaram a recolocar a critica das fronteiras entre capital e trabalho, existência e aparência e realidade e a simulação no campo da história, balizando leituras para a guerra do Golfo, microeletrônica e as novas mídias - em suma, garantiram à esquerda de que é preciso fundar um novo pensamento para compreendermos a globalização, caso contrário, estaremos condenados a “um mergulho numa era de trevas”. Seu duplo desaparecimento deixa a esquerda órfã de um pensamento original e criativo que assumia a tarefa de atualizar o marxismo. Não podemos esquecer sua lição, a que devemos procurar na critica sofisticada do capitalismo do tempo presente a atualização dos conceitos de ideologia e de fetichismo de Marx. E desvelar a alienação capitalista é cada vez mais urgente no momento em que vemos a emergência do exemplo chinês, onde o capitalismo descobre que é possível acumular abandonando por completo a noção de direitos humanos, e o pior, que isto está se tornando o grande ideal da direita. É preciso continuar deste ponto em que pararam, urgentemente.


Notas

(1) Cfm Priscila Gomes Correa. História, Politica e Revolução em Eric Hobsbawn e François Furet. São Paulo, FFLCH, PPG História Social, 2006. Dissertação de Mestrado orientada por Modesto Florenzano. Este texto deve em muito ao retrospecto de sua autora sobre o contexto de Hobsbawn.


(2) Cfm Ruy Belém de Araújo.Eric Hobsbawn - as lições do tempo. Revista da Fapese, v. 4. n1, p; 5-14, jan/jun 2008

quarta-feira, 25 de julho de 2012

"Nos desejamos aquilo que vemos"

A discussão sobre a divulgação dos salários dos servidores não tem dado atenção a um potencial de violência simbólica que o ato encarna. Ela priva o servidor público de mostrar sua história, de revelar o caminho honesto que o levou a receber o seu salário, confunde o bom servidor com os corruptos e provoca a discórdia social.

 


 

Todos sonham com o que os outros têm. Os servidores que conquistaram seu salário por seu mérito e trabalho a partir de agora vão ser desvalorizados por uma opinião pública que diz que seu trabalho não vale o que recebem. Ela esquece as diferenças e competências individuais, os Planos de Carreira e as vantagens obtidas pela luta dos servidores públicos como categoria social, numa palavra, o direito do trabalho. Sua raiz é a exigência de julgar que a divulgação dos salários passa a impor, a comparação que cada um faz a partir de agora para saber quanto vale o seu trabalho comparado com o do servidor. Ao invés de combatermos os salários que ultrapassam os limites legais, agora todos os salários dos servidores tornam-se objeto de comparação. Isso é um problema.


 

É que o cidadão comum se sente diminuído quando a comparação salarial lhe é desfavorável. É um mecanismo de defesa do cidadão que age pela desvalorização e busca rebaixar o salário do servidor público ao "nível do mar" _ nível que foi estabelecido pela exploração do Capital, o verdadeiro inimigo. Ao sentir-se diminuído com o quanto conseguiu empreender, ao reagir emocionalmente, o cidadão deixa de lutar para que todos tenham o nível salarial que considera bom e passa a acusar os salários dos servidores. Eles são acusados de três culpas: "será que você não percebe? você ganha mais do que eu!", acusação que resume a condenação social que transforma o salário do servidor em objeto de um julgamento social de valor; "não receba mais do que eu!", acusação que encarna a desvalorização ao servidor pelo cidadão, que procura diminuí-lo; "não se rebele, aceite nosso juízo!", imposição que esquece a necessidade de colocar-se no lugar do outro e das singulares lutas de valorização profissional.


 

Mas que mal os bons servidores fizeram à sociedade para merecer este julgamento? Os servidores que têm seu salário revelado não fizeram absolutamente nada, ao contrário, lutam dia após dia para fazer um serviço exemplar, chegam a tirar dinheiro do próprio bolso para arcar com despesas do seu serviço, fazem atividades além da sua obrigação e buscam qualificação para aprimorar sua função muitas vezes sem apoio algum. Ocorre é que ao confrontar seu salário com o do servidor público, o cidadão sente um dano que ninguém praticou, um dano imaginado pelo cidadão que estabelece o que Francesco Alberoni denomina de "confronto invejoso", que corrói a sociedade e desmerece os funcionários que querem um serviço público melhor.


 

Não se enganem: a forma que nega a remuneração baseada nos valores do mérito, qualificação e tempo de serviço estabelecidos pelos Planos de Carreira é uma forma de totalitarismo. Estabelecendo uma agenda pública que desvia a atenção da sociedade dos seus reais problemas _ a saúde, a educação _, a divulgação de todos os salários oculta uma violência simbólica, a da confrontação entre cidadãos e servidores públicos honestos. Essa contabilidade de méritos e recompensas corrói a sociedade e a torna despótica: hoje os servidores revelam seus salários, amanhã abrirão suas sacolas e terão revistas em suas partes íntimas cada vez que chegarem à repartição pública. Onde isso irá terminar?

Publicado em Zero Hora em 24/07/2012
 


 


terça-feira, 22 de maio de 2012

Sobre estética das obras públicas




Mexeu com a Câmara, mexeu comigo.
O artigo de Paulo Bicca publicado na última edição de ZH Cultura descreveu o prédio da Câmara Municipal como um dos exemplos de prédio público em um espaço de precárias condições e que contribui para que nossa cidade seja, na melhor expressão, feia. Bicca tentou, mas não conseguiu, isolar o projeto de Cláudio Araújo desse contexto, mas o fato é que o entorno faz parte da Câmara e, na minha opinião, não há nada errado com eles.

O problema está na perspectiva. Bicca quis recriar a experiência do flaneur, personagem emblemático descrito por Walter Benjamin, em nossa experiência urbana. Otilia Arantes conta uma história que ajuda a entender esta posição. Ela diz que um dia Walter Benjamin explicou a Martin Buber que recebera a encomenda de um artigo sobre Moscou e que sua intenção era apresentar a cidade como se ela mesmo fosse uma teoria, sem digressão teórica, descrevendo as imagens da cidade a partir de sua “posição interna”. Isso o fez vagar por feiras de vendedores, ruas cobertas e observar os objetos da vida cotidiana. É que o “Projeto das Passagens” tinha uma pedagogia materialista, uma crítica à ascensão das mercadorias e buscava pelo potencial de transformação social. Mas aquele ainda era um projeto que via a remodelagem do mundo pela industrialização e urbanização como algo que levaria as massas ao paraíso. O mundo dos sonhos.



Bicca quer para si o lugar do flaneur portoalegrense benjaminiano. Resolveu sair e caminhar pela cidade e o que viu? Na Câmara, “um arremedo de estacionamento, em terra, esburacada e com lodo e água empoçada quando chove”. Critica o painel em frente à Câmara “que independente de seu conteúdo, jamais poderia estar aí”.O que critico na posição de Bicca? É que ele escolheu como método observar a cidade de dentro, a “posição interna” que fala Benjamin. Qual a pedagogia de Bicca? A de que precisamos de uma cidade melhor sim, mas aquela na qual os arquitetos tenham a palavra principal para “impedir de construir o que não deve ser construído”, diz. Mas quem diz o que deve ou não deve ser construído? Os arquitetos, o Estado ou a Sociedade? Se você observar o que Bicca valoriza, é sempre a paisagem clássica em detrimento da moderna, mas como tornar atual a arquitetura pública? Diz Jeudy: “Atualizar significa primeiro subtrair a temporalidade habitualmente atribuída ao passado, para torná-lo atemporal e conferir-lhe ao mesmo tempo um “poder de contemporaneidade”". Ao contrário, a leitura de Bicca nada mais faz do que adotar uma estratégia que visa desestabilizar o tempo presente, adotando uma complacência moral que diz que “o passado ilumina o presente”. Projetos são modificados sim, devido ao contextos, circunstâncias, por inúmeros atores que não apenas os arquitetos. A arquitetura pública é uma construção coletiva. O que faltou em sua concepção: a ideia que a arquitetura urbana muitas vezes é produto de uma negociação.

Ora, se você quiser descrever a beleza da Câmara Municipal de Porto Alegre, e de resto, dos prédios públicos em geral tão criticados por Bicca, é preciso observar de fora da cidade para ter uma visão melhor do que eles representam na fisionomia da cidade. Antes de Benjamin, Alan Poe. Explico.


Alan Poe escreveu o conto “O Aperto”, uma das descrições mais interessantes da cidade de Edimburgo, onde quis evitar a descrição de sua fisionomia de forma direta, a passeio, já que ”todo mundo já esteve em Edimburgo”. A história, recontada por Nicolau Sevcenko, é protagonizada por três personagens: a Signora Psyche Zenóbia, o coadjuvante Pompeu, seu velho escravo e Diana, uma cadelinha poodle. Passeando os três pela cidade, Zenóbia vê uma catedral gótica com sua torre altíssima e se vê tomada por um desejo irresistível de subir nela e vislumbrar a extensão da cidade. Ela sobe, mas não encontra uma janela, só uma abertura num imenso relógio, que expunha as horas para os seus habitantes. Ela coloca a cabeça na abertura: “O panorama era sublime. Nada podia ser mais magnífico(...)Eu me entreguei com prazer e entusiasmo ao gozo da cena que tão amavelmente se oferecia diante dos meus olhos”. O final da história? Como nos contos de Poe, os ponteiros, como imensas lâminas afundam-se no pescoço da matrona, o negro foge e a cadelinha é devorada pelos ratos. Genial.


O que interessa aqui é o método. É que para descrever a cidade, é preciso voar e correr os seus riscos. É preciso vislumbrar a cidade do céu, das alturas, observando sua situação, a sua aparência geral, fazer uma espécie de travelling do alto, a olho nu, exatamente como foi feito em diversas cenas do filme “Porto Alegre, meu canto no mundo”, de Cícero Aragon. Para descrever o papel que a arquitetura pública tem na fisionomia da cidade, como quer Bicca, é preciso procurar uma posição elevada para ver de cima a totalidade da capital. Diz Sevcenko “Olhada ao rés do chão a cidade se dissolve em fragmentos, cuja dispersão infinita é sumamente desagradável. Vista, descrita ou representada de um ponto elevado, ela se torna um emblema abstrato imediatamente apreensível”. É disso que se trata, a perspectiva do olhar.


Se você olha da Câmara de cima, o que você vê? Você não vê os estacionamentos, tão criticados em sua feiúra por Bicca, mas você vê a imensidão de uma bela área verde, das árvores que embelezam o prédio legislativo. Elas tem uma história contata por funcionários e vereadores que as plantaram, que cuidaram delas dia a pós dia, área que, no ano passado, foi cenário da reprodução do primeiro plantio de mudas recriado por alunos do projeto de educação pelo trabalho que freqüentam a Câmara. É portanto, uma área que se atualizou permanentemente e que tem uma história para contar, que ao ver pelo artigo, Bicca desconhece. O estacionamento existe sim e pode ser feio para o caminhante: é que a Câmara é um prédio inacabado que aos poucos foi finalizado. Sofreu adaptações. Ele não é produto da idealização de um arquiteto em férias, não é o prédio dos sonhos, mas algo vivo em contato com a sociedade portoalegrense. O estacionamento é um problema e uma necessidade nas cidades, e é assim também na Câmara, mas graças a ele, mais parcelas da população tem acesso ao legislativo e naquele espaço, se Bicca observasse melhor, até um bicicletário está sendo construído onde ele só vê terra esburacada, prova de que o Legislativo atende a demandas da Comunidade, no caso, os ciclistas. Mas não há nada mais belo ao redor daquele prédio e que o dignifica do que o imenso cinturão verde que o cerca. Quanto ao painel, está escrito nele apenas um convite a entrada e participação nos debates. Aquela é uma rua de grande circulação, se Parlamento não tiver o direito de convidar seu público, quem pode?.


Não Bicca, discordo, o Legislativo e seu entorno estão inseridos na paisagem da cidade. Não Bicca, discordo, o Legislativo dá o exemplo do que deve ser construído em termos de prédios públicos. Não Bicca, o prédio da Câmara não é um espaço urbano de má qualidade. Claro que há muito a ser feito em busca de uma arquitetura bem inserida, o que concordamos, mas a verdade é que a Câmara está sim bem inserida na cidade. É que, Bicca, não vivemos no mundo dos sonhos dos arquitetos, mas no mundo possível de uma sociedade onde seus atores lutam por seus direitos, e nisso, o legislativo tem um lugar fundamental.


Mexeu com a Câmara, mexeu comigo.











quinta-feira, 3 de maio de 2012

As crianças e as eleições


Ir Ktaná (em hebraico, Pequena Cidade) é uma cidade miniatura criada no interior do Colégio Israelita de Porto Alegre e que possui Prefeitura e Câmara Municipal. Grabriela Saute, Isabela Zoppas Friedman, Amir Ribemboim Bliacheris, Ilana Raizler Gandin, Rodrigo Kleiserman Blumenthal, Juliana Gonzalez Wainstein, Betina Pecis Neves, Panambi Magali Ramirez Acosta, Laura Rajchenberg e Arthur Gurski Leal são seus vereadores, alunos entre 6 e 10 anos que foram diplomados no Plenário da Câmara Municipal de Porto Alegre no ultimo dia 19 de abril.

A iniciativa emérita do Professor Ricardo Fortes e da diretora Mônica Timm de Carvalho é um dos exemplos notáveis do que se pode experimentar em termos de educação para cidadania. A experiência aponta para uma aliança necessária e urgente entre o sistema de ensino e os parlamentos municipais. Claro, você pode ter dificuldades aqui e ali de organização, mas o compromisso com a socialização política, isto, a introdução dos jovens na política é responsabilidade que deve ser compartilhada pelas escolas e poder legislativo municipal, e por esta razão, essas ações são exemplares. Por esta razão, a escola está de parabéns.

Em Porto Alegre, o presidente da Câmara, vereador Mauro Zacher (PDT) e outros vereadores, tem renovado o compromisso do parlamento com as escolas. A formatura do último dia 19 é dessas ações: mesmo com uma agenda cheia que incluía até a CPI do Instituto Ronaldinho, abrir espaço no seu cotidiano, com todas as dificuldades, para elas, as crianças, nossos vereadores mirins, dá o grau de consciência do parlamento. É que um Legislativo não é grande somente pelas ações imponentes que realiza ou pelos debates que provoca, mas pela sensibilidade política que cultiva que é capaz de perceber a importância dar atenção, no meio da vida agitada do plenário, ao olhar encantado da criança, que, desde os primeiros anos, começa a assistir a vida política de nossa capital. Esse exemplo da Cãmara merece ser imitado pelos outros parlamentos.

A Câmara Municipal de Ir-Ktaná já tem seus vereadores. Esperamos que eles experimentem o drama de lutar para que sua cidade seja melhor, não apenas porque se trata de um projeto didático que une fantasia e cidadania e que ensina as crianças sobre valores, conceitos e formas de viver bem em grupo, mas porque ali está em estado nascente uma forma solidária e coletiva educar as crianças para cuidar de nossa cidade.Esperamos que um dia, diplomar crianças no parlamento seja o projeto não de uma, mas de toda a rede de ensino.Diplomar alunos vereadores: não tem preço.



sábado, 21 de abril de 2012

Sobre a cidade


O filósofo Karl Gottlob Schelle, em “A arte de passear”,dizia que viver continuamente em atmosferas confinadas amolece o espírito e enfraquece o bom senso. Não causa a morte, mas é uma condição indireta. Observando o cotidiano da classe média em Porto Alegre, como a de qualquer outro lugar, alguma coisa parecida acontece. Vivemos marcados por espaços fechados, da casa para o trabalho de carro e nas horas de lazer, os  shoppings – o que sua expansão só fará o quadro piorar. Mas o que realmente diferencia a vida numa cidade é o uso que fazem seus cidadãos do espaço público. Será que o portoalegrense realmente frequenta os espaços públicos de sua cidade? È que queremos ser cidadãos mas nos comportamos como consumidores na cidade.  Se ficamos em espaços restritos quase todo o tempo, podemos dizer que temos vida urbana saudável para comemorar no aniversário da Capital?

É que a lógica metropolitana tem um lado perverso. Em nossas periferias, bairros inteiros estão se convertendo em territórios proibidos.  Novos territórios de povoamento surgem nos conjuntos habitacionais populares financiados pelo Estado que, à maneira das colônias do passado, levam para zonas urbanas distantes uma população pobre vista como massa.  O espetáculo da pobreza no centro da capital amplia-se para mostrar a infrahumanidade (Virilio) portoalegrense. Recordemos que até bem pouco tempo, a Prefeitura criou uma “Secretaria dos Direitos Animais” criticada justamente porque para muitos eram os seres humanos que estavam em situação de risco. Nossa cidade não é uma festa de aniversário, é um campo de batalha.

Basta olhar a geografia da cidade. Você vai de norte a sul e o quê vê na paisagem? Inúmeros novos condomínios surgindo a cada momento, lugares isolados, comunidades fechadas, mundos separados dentro da cidade. A cidade cresce por separação, esses novos enclaves são as pequenas fortalezas da elite, outra forma da desintegração de nossa vida comunitária. Precisamos, para comemorar o aniversário da cidade, de uma estratégia oposta de desenvolvimento, baseada na criação de mais espaços públicos, abertos e acolhedores, que o cidadão tenha vontade de freqüentar e compartilhar de bom grado. Onde possa fortalecer seus vínculos sociais.

Não sejamos pessimistas! Nossa cidade tem inúmeros aspectos positivos sim, que a arte e a literatura já registraram à exaustão. Mas desde que Leandro Selister colocou seu painel com mais de cem metros mostrando a vista do Guaíba se o muro não estivesse lá, a capital adornou-se de um toque pós-moderno original. De certa forma, ali está nossa verdade: podemos imaginar, como sempre fazemos no aniversário da Capital, que vivemos no melhor dos mundos, mas isto ainda é uma ilusão. A capital é lugar de alegrias e tristezas, mas se é preciso que o governo diga aos cidadãos que eles precisam “cuidar da cidade”, é porque há muito tempo, os portoalegrensens já não sentem mais a cidade como algo que seja seu. Transformar o aniversário da cidade em um festival de cultura, é bom, mas não devemos ficar nisso somente. É um momento importante pensar políticas públicas, o "como" construir uma cidade melhor, que é sempre, uma Porto Alegre mais solidária. Quem sabe, em 2022, quando completar seu quarto de século, os cidadãos, sem que ninguém os chamem, cuidem de sua cidade de uma forma natural e que isso seja parte da educação de seus filhos. 

O plenário como pedagogo


Zero Hora do último domingo fez uma extensa matéria sobre a Câmara Municipal de Porto Alegre. Para conhecer o que a Câmara faz  recomendo a leitura de “Dez Anos de Leis e Ações Municipais” obra lançada pelo Legislativo no ano passado com quase trezentas páginas nas quais pode ser visto exemplos do trabalho dos vereadores e suas ações na construção de políticas públicas na cidade. Ela é distribuida gratuitamente pela Câmara Municipal. Vá lá e pegue seu exemplar, é grátis.

O ponto de partida da matéria é que o Plenário é uma sala de aula. Não, não é, não no sentido ali atribuído. Você até pode usar a comparação para explicar o funcionamento do plenário para crianças,  mas ela não cabe numa matéria à altura de ZH. O plenário é o espaço de debates superior da cidade. No seu interior a produção de legislação responde a necessidade que nossa sociedade tem de pré-selecionar sua agenda de opções, numa palavra, o que pode e não pode fazer. Os vereadores fazem escolhas no plenário antes que os cidadãos possam fazê-las e a legislação produzida ali separa o reino da viabilidade prática do das possibilidades teóricas dos cidadãos. Quer dizer, estabelece o conjunto de restrições que os individuos necessitam seguir na sociedade para viver melhor. Não há nada nisso que lembre uma sala de aula.

O problema da comparação é que ela corre o risco de suscitar no leitor aquilo que Jacques Ranciére denominou de “ódio `a democracia”: ela incita no cidadão a idéia de que, se nossos vereadores são capazes de perder todo o seu tempo com “bobagens”- o que reputo, não é verdade - é porque eles não merecem o nosso respeito, primeiro passo para o nascimento do sentimento de ódio para com nossas instituições. O problema da comparação é sugerir ao leitor que a socialidade politica - a presença da ironia e da brincadeira – seja a própria natureza da vida do plenário, e não é. A natureza do plenário é fazer leis para a sociedade. O "papo jogado fora", na expressão de Michel Maffesoli, ocorre ali como em qualquer instituição - inclusive na redação de ZH - e tem a função de tornar sólidos os vínculos entre os atores, nunca substituindo a sua função principal. 

Paradoxalmente, a matéria atirou no que viu e acertou o que não viu. É que, se a metáfora da sala de aula pode ser objeto de crítica, a necessidade da educação no parlamento é uma certeza. E há inúmeras ações que o parlamento faz para que o cidadão possa conhecer suas leis, seus direitos  e que a matéria poderia ter ilustrado e não o fez. As instituições políticas vivem hoje um processo de valorização de seu papel educativo: “na Câmara que você não vê”, ações dão testemunho que o legislativo vem cumprindo seu papel de colaborar na educação da sociedade para a política: através do atendimento de escolas, realização de cursos, seminários, exposições, publicizando seus gastos e todas as etapas do processo legislativo - via internet - é que a Câmara assume o seu papel educativo em seu campo de influência. O plenário é uma sala de aula sim, mas não no sentido sugerido pela matéria, mas pelo ato educativo que ocorre cada vez que há participação da comunidade no seu interior. A matéria descreveu ricamente tais processos no âmbito das comissões,  mas ficou-nos devendo a descrição de tais processos no plenário - e eles ocorrem. Ali, no espaço da política em estado puro, comunidades inteiras aprendem a fazer política na prática. Nesse instante sim, transformam o plenário numa sala de aula – na sua melhor concepção. O plenário é um pedagogo.     

O que fizeram com nossa língua?


No episodio da série As brasileiras, transmitido pela Rede Globo na última quinta-feira, “A fofoqueira de Porto Alegre”, o que mais me chamou a atenção no episódio foi o sotaque gaúcho.  Rita, interpretada por Xuxa, de tanto ouvir fofoca sobre o próprio marido, termina por correr atrás da sua origem com um grupo de suas amigas. Tudo muito engraçado se não fosse o insuportável sotaque das protagonistas. Ai meus ouvidos!

Não é a primeira vez que a Globo, em nome de uma suposta licença poética, faz barbaridades em termos de representação da vida gaúcha. A novela “A vida da gente” começava com a mocinha colocando um biquíni entre as roupas para ir a serra  mergulhar num lago em pleno frio inverno. Agora, às vésperas do aniversário da cidade, o portoalegrense precisa ver uma estória passada na capital com atores interpretando nosso sotaque de uma forma irreal. É demais.

Essa é a forma reiterada de massificação de nossa cultura. A conquista da hegemonia na televisão tem um preço: a homogeneização da cultura, a padronização dos signos na televisão, que não poupa ninguém. E dá-lhe um sotaque estereotipado em horário nobre a nível nacional, forma ridícula de retratar a fala do povo gaúcho que transmite a falsa idéia de que todos carregam no falar, com suas expressões repetidas a exaustão “guria”, “báh” e por aí a fora. A versão da língua gaúcha proposta pela Globo é semelhante ao café descafeinado de que fala Slavoj Zizek: a língua vendida não quer ofender ninguém e pede até que nem nos identifiquemos com ela. Na lógica de signos televisivos tudo é permitido desde que esqueçamos um pouco a realidade. A tal “vida como ela é“ é uma obra de ficção e só serve para que possamos desfrutar de todas as belas imagens de Porto Alegre, desde que desprovidas de toda a substância que a língua oferece.

Não nos enganemos: o que vale para o sotaque gaúcho vale para toda TV. Cada vez mais, a TV se distância da realidade por esse mais-realidade, o exagero em todas as suas formas que toma conta de seus produtos. Língua, mas também violência, fatos do jornalismo, personagens de novela, tudo quer-se apresentar como a realidade quando é uma forma de reconstrução marcada pela “cavalgada aos extremos” (Baudrillard). Essa caracteristica da produção de mercadorias do capitalismo em que vivemos tem uma conseqüência: hoje, tudo o que nos cerca termina  conter em si o remédio para os males que causa. Você pode beber todo o café que quiser, já que ele é descafeinado, expressão de nosso panorama ideológico atual. E você pode ouvir o sotaque gaúcho grotesco produzido pela televisão porque neste sistema você pode desfrutar de todas as coisas, desde desprovida de sua essência. Alguém ouve aqui em Porto Alegre, às vésperas de seus 240 anos, alguém falar do mesmo jeito que a Xuxa fala? De jeito nenhum!  

Ao representar a linguagem gaúcha com exagero e excesso, a Globo trata de forma grotesca a nossa cultura.É isso. Menos Daniel Filho, menos...

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Ciclistas do mundo, uni-vos!

Nos Estados Unidos, uma propaganda ironizava estudantes que iam para a faculdade de bicicleta, mostrando um ciclista sendo ultrapassado por uma bela moça em um carro. Muito criticado, o anúncio, que terminou retirado, encerrava-se com a frase “Deixe de pedalar… comece a dirigir”. O contrário bem que poderia ser o tema do 1º Fórum Mundial da Bicicleta, a ser realizado em Porto Alegre nos próximos dias. “Deixe de dirigir...comece a pedalar” é a utopia que só pode surgir na sociedade onde o automóvel cobra alto preço por sua existência .Mas para que o seminário dê frutos e não se transforme em apenas mais um evento da capital, seus partipantes terão de responder a duas questões essenciais.

A primeira é como recuperar a necessidade da velocidade democrática. Quando foi inventado, o automóvel proporcionou a experiência inédita de andar mais rápido que diligências, carruagens, trens e bicicletas. Antes, a velocidade era democrática: todos andavam na mesma velocidade, diz André Gorz. O carro estabeleceu uma velocidade de deslocamento para a elite e outra para o povo. Mais: ele gerou uma nova forma de alienação, já que enquanto o ciclista é capaz de consertar seu veículo, o motorista torna-se dependente de especialistas que cobram caro por seus serviços. Num mundo onde todos querem ir a qualquer lugar  mais rápido, como colocar a necessidade de ir devagar?

A segunda questão é como transformar o ciclismo em questão política. No passado, no tempo em que a distância entre o mundo onde se vive e o mundo onde se trabalha era menor, a bicicleta era um bem comum e a maioria dos trabalhadores a possuia para trabalhar. Fazia parte, portanto dos procedimentos relativos à vida nas cidades – da  pólis, daí política – o uso da bicicleta. Paradoxalmente, o que despolitizou o ciclismo foi o seu afastamento das camadas populares, transformado em esporte de elite e a progressiva transformação do automóvel, de bem de elite para bem popular. Hoje, quase tudo mundo tem carro mas muitos não tem bicicleta.Tornamos as cidades inabitáveis ao deixarmos de ser proprietários de bicicletas para nos tornarmos consumidores de automóveis.

Mas politizar o ciclismo não é apenas pensá-lo somente no campo das políticas de mobilidade, atual estágio da discussão. É preciso ir mais além,  pensar o bicicletar como um novo humanismo -  “Pedalo, logo existo” - como diz Marc Augé. Não optamos pela bicicleta porque gasta menos energia ou polui menos, argumento produtivista que esquece o mais importante: optamos pela  bicicleta porque ela possibilita ao cidadão experienciar a cidade como espaço de aventura, lugar de descobertas, possibilitando as pessoas se encontrarem ao invés de ficarem reclusas em suas casas com medo da violência. A bicicleta transforma a vida social,  aprende-se a “pedalar junto“, e isto ajuda os cidadãos a tomar consciência de si mesmos e dos lugares que habitam.

Quem diria! O velho sonho comunista encontrou uma forma secreta para retornar, agora sem sangue e sem revolução: a partir de um mundo onde simples bicicletas são de todos, onde podemos pegá-las onde quer que estejamos para deixá-las logo adiante para outra pessoa, reinventamos a idéia de bem comum tão cara a esquerda. Não é o que as experiências ciclísticas de Barcelona e Paris já mostram? A Revolução Ciclista ainda não se consumou. É preciso fazê-la o quanto antes. Ciclistas do mundo, uni-vos!

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Contra a privatização da educação



Conheci Fernando Luís Schüler na década de 90 como Diretor do Centro Cultural Usina do Gasômetro, em Porto Alegre. À época, integrante da gestão do Partido dos Trabalhadores na Prefeitura, que chegaria a completar dezesseis anos, Schüler, transitava com grande desenvoltura entre teóricos da direita à esquerda, mas era reconhecido por ser um militante do PT. Por esta razão, seu artigo nesta Folha (Um apartheid silencioso, 2/2/2012) muito me surpreendeu. Naquela época, Schuler realizou grandes seminários internacionais que foram responsáveis por aprofundar o pensamento contemporaneo em nossa capital: reuniu o melhor da direita (François Furet) com o melhor da esquerda (Hobsbawn, Agnes Heller). E trouxe ainda, pensadores do espectro do pós-modernismo cujas contribuições ainda estão para serem incorporadas em Ciências Sociais, como Jean Baudrillard e Michel Maffesoli. Graças aos eventos promovidos por Schüller, aqueles foram anos de um pluralidade de idéias muito grande, de grande experimentação teórica e de certa forma, os autores marxistas que trouxe terminaram por fortalecer a base de idéias de esquerda na capital, entre muitos professores do sistema educacional, possibilitando a rede de ensino da capital tornar-se referência em todo o Estado.
Schuller é um dos intelectuais mais brilhantes de sua geração, mas após duas décadas, o que realmente mudou em suas idéias? Não se trata, do direito óbvio da mudar de partido e posição, o que se vê por sua trajetória . O ex-secretario de Justiça do Governo Yeda Crusius(PSDB) compartilha o que se pode chamar do pensamento privatista em educação, liderado por Gustavo Ioschpe e que tem como base a ampliação da esfera do mercado no interior das práticas e serviços públicos. Essa posição, rejeitada pelos educadores, está baseado em quatro equívocos, que de tanto serem repetidos, correm o risco de serem tomados como verdades. Inventivo, criativo e de iniciativa, Schuller ocupa cada vez mais espaços na mídia. 

O problema é o pensamento de Schuler reforça um discurso cada vez mais privatizante e apoiador da lógica do Capital, com o qual não concordamos. Adotamos aqui os argumentos de educadores de esquerda que apontam pontos que merecem ser discutidos. Vejamos quais são.   
O primeiro deles é que os problemas da educação são problemas de gestão e as escolas, repartições públicas. Esse argumento esquece que a gestão da escola é feita por profissionais que defendem uma educação pública de qualidade há décadas. As escolas podem nascer como repartições públicas, mas o fato é que no processo de ensino e luta por uma educação melhor transformam-se noutra coisa, em espaços de aprendizagem. O professor não é um burocrata qualquer: o que o diferencia é sua visão de futuro. A idéia de que pode-se mesurar seu rendimento pelos instrumentos da ciência econômica, como apregoam Ioschpe e seus discípulos, abstrai todas as condições sociais e históricas envolvidas no processo educativo. As escolas estão do jeito que estão não por causa dos professores, mas pela fragilidade de nossas políticas públicas. Urge aperfeiçoa-las enquanto políticas públicas.
O segundo deles é que a visão antimeritocrática dos professores contribui para a crise da escola. Propor que a escola assuma em sua organização a meritocracia é propor que a escola funcione a maneira do Capital, onde os prêmios por mérito recompensam índices de aprovação - outra forma de criar uma escola voltada para a submissão bem distante do ideal dos professores, defendem uma escola capaz de forjar alunos críticos baseada em ideais de liberdade. Nada mais distante do universo de ensino de que avaliar a educação somente por números. No ato de aprovar um aluno, condições internas do processo de ensino que dependem do trabalho do professor - qualidade de ensino - confundem-se com as condições externas do mesmo processo e que as vezes determinam as condiçoes de trabalho - não ter recursos é um deles. É preciso pensar -e  isto fazem os educadores dia a pós dia - uma avaliação sim, mas qualitativa e com os critérios da qualidade, algo bem distante dos números e estatisticas de aprovação e reprovação podem dizer.
O terceiro deles é sugerir que o problema da educação brasileira está no fato de ela ser estatal. A única coisa justifica a idéia de passar a gestão da educação pública para a iniciativa privada é a necessidade de resolver os problemas da iniciativa privada - aumento do capital - e que esquece os problemas que as escolas privadas também tem, como controle e perda da liberdade de criação. É a velha proposta de comprar vagas junto ao empresariado ao invéz de investir na rede pública, estratégia rejeitada pelos educadores mas defendida com força pelos empresários da educação. Para a iniciativa privada, escola é fonte de renda, e nada mais.
O último deles é que, neste sistema, os alunos poderiam então “escolher onde estudar. O empresariado atpode visualizar este sistema para as cidades, que possuem uma infraestrutura desenvolvida, mas que empresário irá preocupar-se com a educação dos rincões de miséria e pobreza de nosso pais? Os empresários da educação farão prédios e contratarão professores para lá? Ora, por favor Schuler, o Estado possui uma estrutura deficiente, é verdade, mas é ele que garante o cumprimento do “direito à educação”, de forma universal e para todos os brasileiros. Aperfeiçoa-lo, corrigir seus problemas é o que se pede, não substitui-lo pelo privado, o que é rejeitado pelos educadores. Não é o suposto apartheid educacional que é silencioso, é a ideologia privatista em educação que movimenta-se e agrega defensores sem produzir som algum.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O pianista e o comandate






Depoimento de sobrevivente do acidente do navio italiano citado por Zero Hora diz que, em meio à tragédia, o pianista continuava a tocar. A imagem tem sentido não pela comparação equivocada que se possa fazer com outra tragédia, a do Titanic, prestes a completar seu centenário, mas com outra imagem, a do capitão do navio, agora responsabilizado pelas autoridades. Se Marx está certo e uma tragédia só se repete como farsa, do que se trata o naufrágio do navio Costa Concordia e o que ele tem a nos ensinar?


A tragédia do navio naufragado está mais para as Twin Towers do que para o Titanic. O que surpreende não é o fato óbvio de que se trata de mais um navio a naufragar, mas de um objeto que se pensa indestrutível vir abaixo, exatamente como as Torres Gêmeas. Lá, um ato aparentemente irracional do terror – que de irracional não tem nada – destrói um prodígio arquitetônico, símbolo de uma nação. Aqui, um ato aparentemente irracional de seu comandante destrói um prodígio náutico, símbolo da vida de consumo de nossa época. O que está em questão nunca foram os navios ou prédios – sim, claro, nos padecemos por sua vítimas etc., etc., – mas o que é derrubado, o que afunda realmente são as nossas certezas frente à técnica. Estou na praia escrevendo estas linhas: como é possível que barcos que vejo no horizonte, primitivos e toscos, possam manter-se de pé enquanto o imenso e indestrutível bólido aquático, com todo o seu sistema de proteção, afunda nas imagens?


É na relação do comandante e do pianista que encontra-se a resposta. Sim, é sempre no homem, no que crê e no que baseia sua existência, que está a resposta. No mundo do individualismo obsessivo, do cada um por si na escalada capitalista, pode-se agora encontrar um capitão de navio disposto a deixá-lo antes da hora: fim da ideia de cumprimento do dever. Por isso é tocante a imagem do pianista – seja o relatado pelos viajantes do Titanic, o representado no filme de James Cameron e agora atualizado na fugaz imagem de um instante visto por um sobrevivente e que nos diz mais do ser humano do que anos de filosofia: trata-se, mais uma vez, da questão da ética do dever, que retorna para nos lembrar do que somos e do que devemos fazer.


Devemos fazer aquilo para o que nos preparamos a vida inteira, numa palavra, fazer o certo. Assim como a mensagem inscrita no monumento Osório, o caminho do dever é árduo mas é o único que nos diz que somos seres livres, capazes de fazer escolhas não por nossos instintos mas pela certeza de realizar o que é belo, justo e perfeito. A farsa da tragédia é sugerir que, só porque são espetaculares, nossos inventos são indestrutíveis e que, corrigindo suas falhas, nunca mais ocorrerão. Ao contrário, quanto mais espetaculares inventos criamos, mais frágeis nos tornamos. Frente a esta tragédia, é preciso lembrar que só fortalecendo o homem – seu caráter, sua consciência – e não seus inventos, que se fará a diferença.


Publicado em Zero Hora 14/01/2012
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