sábado, 29 de junho de 2013

A juventude e a consciência política

Um dos problemas da teoria marxista da história assinalada por  Richard Sennet é o fato de que sua noção de sistema de classes tornou  a consciência “vertical” em lugar de “horizontal”. Nossa consciência passou a orientar-se para quem está acima ou abaixo e não para os semelhantes: “a desigualdade antecede a fraternidade”, diz. Por esta razão a consciência herdada do marxismo adquiriu um caráter militar pois  não se pode ser consciente no mundo sem combater as condições que os outros nos impuseram, principalmente a exploração. Nesse universo não há trocas positivas com inimigos.
Esta é a consciência de parte dos jovens que ocupam as ruas.  Eles tem um desejo verdadeiro  de resistir mas não sabem a que ou a quem. Sua consciência não é coletiva, é grupal, daí a enormidade de agendas que defendem nos protestos. É o que leva a sua esquizofrenia  caracterizada por uma divisão entre um comportamento agressivo em relação aos outros, os políticos, mas generoso em relação aos “camaradas”. O problema é que isso nada tem haver com solidariedade e negociação, elementos essenciais na vida pública que pedem que nos relacionemos  justamente com o que é diferente, no caso, o Estado. È a forma encontrada por jovens anônimos partilharem a vida pública -a "partilha do sensível" de que fala Ranciére - mas fazer dos políticos um inimigo não resolverá o problema da criação de mais políticas públicas e sociais, assim como criminalizar os jovens em nada contribuirá para fazer a transformação da sociedade. Não basta ao movimento organizado pelas redes colocar o ativismo social acima do ativismo político. É preciso produzir boas discussões a respeito do tipo de solução que querem para os problemas que apresentam. Estamos todos de acordo sobre a necessidade de resolvermos os males dos capitalismo, mas como construir uma solução com instituições políticas desacreditadas pela população?
A confiança na política tem estado muito abalada e que piora com a constatação da desigualdade vivida no cotidiano - o preço das passagens. Mas permitir movimentos de violência só aumenta o terror, e por isso as organizações de jovens devem superar a espontaneidade inicial dos protestos e encontrar um meio de combate-lo. Devem substituir a agenda nacional pela agenda comunitária - não é que os jovens sequer pensaram em trazer suas reivindicações para as Câmaras Municipais? Isso deveria ser parte da agenda. Rejeitam a politica mas são movimentos politicos e a ausência em reconhecer a necessidade de organização política, de lideranças, se viu nos movimentos de quinta feira: o que era aquela disputa pelo caminho das passeatas se não o efeito de que, sem lideranças, sequer um caminho é possivel construir juntos?
A consciencia dos "pseudo-organizadores" negava qualquer identidade poliltica, de classe ou raça, prefindo por em seu lugar a conexão dos diversos grupos e interesses sociais conectados via internet, o único verdadeiro vitorioso dos processos. A política dos jovens é boa por sua vitalidade e entusiasmo, mas é numa palavra, bagunçada, e por isso, um alvo fácil para a extrema esquerda, que adora a violência, e para extrema esquerda, que adora manipular as massas. O que não queremos: nem quee toda esta carga de esperança dos jovens se perca na diminuição do movimento  e nem que parta para a radicalização pura e simples. Por isso, a agenda ampla e de consenso aos poucos deve ceder para uma agenda com objetivos modestos mas realizáveis. Mais, os jovens precisam virem mais qualificados para o debate público, com conhecimento de causa, quase experts, formados pelas organizações de base para que tenham continuidade em suas reivindicações e não se dispersem. Mas ao fazer isso não podem tentar "inventar a roda" como pretendem agora: os demais movimentos sociais devem sim serem convocados, assim como os políticos, para que sejam identificados e não fiquem ocultos na multidão.
É de fato uma mudança no temperamento dos jovens. Da mesma forma que não adianta ao Estado assumir uma postura autoritária, não adianta aos jovens negar as instituições políticas. Ambas atitudes só reforçam o ódio à politica apontado por Ranciére,  ao contrário, cabe aos jovens a tarefa de refazer as instituições que abandonam agora, devem debater o que deve ser feito pelo Estado. “O reconhecimento mútuo precisa ser negociado”, diz Richard Sennet.  Os pais esperam que os jovens sejam capazes de fazer alguma coisa da própria vida, cuidarem-se de sí próprios, ajudarem aos outros e capazes e criar condições para respeito mutuo,  artigo em falta nos tempos que passam.
No fundo, no fundo, o  movimento das ruas se quer transpolitico numa sociedade política. Ele quer o desaparecimento da política, este é seu modo de apaixonar a juventude, mas o transpolitico tem tantos defeitos como o politico, a crise do politico é substituída pela anomalia do transpolítico,  lugar de aberração sem consequências, etc, etc,  “daquilo que escapa a jurisdição da lei”, como diz Baudrillard. Não é exatamente isso que vemos nos movimentos de jovens, a infração a um sistema determinado por aquela parcela irracional da juventude? É uma minoria de jovens, é claro,  mas ela é capaz de colocar em risco todo o movimento e por isso precisa ser rejeitada por todos jovens; não se trata de os colocar no lugar do mal, não é a solução, até porque não se trata de opor um bem ou mal porque há tentativas de produzir o bem que produziram o mal e vice-versa. Quer dizer, nada impede que mesmo com as situações de violência que vemos e condenamos não resulte em resultados mas é  preciso evitar a histeria, a repetição constante e sem sentido.
Estes jovens tem passado por uma  vigília extenuante todos os dias, é quase um certo tipo de insônia politica  como a relatada por Emil Cioran. Mas o ser humano precisa, um dia, repousar. É preciso apresentar as reivindicações e dar o tempo para o Estado responder e negociar, sem o qual não se poderá ir adiante.  Eis uma consciência que precisa emergir no movimento.

Publicado em ZH Cultura em 29/06/2013

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Uma cidade sem cidadãos

Jornalistas atingidos por balas de borracha, jovens recebendo bordoadas de policiais e violência praticada a cidadãos que sequer participavam dos movimentos foram cenas vistas recentemente de um cruel cenário de luta contra o capitalismo em busca de um sistema mais justo. O que foi  vivido em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre nos últimos dias  mostrou a intimidade do Estado com a violência em diversos graus.
De fato, uma das funções do Estado é estabelecer uma legislação e prescrever os castigos contra sua transgressão. Mas a violência contra manifestantes inocentes ultrapassa todo o direito do Estado ao uso da violência como previa Max Weber e confirma a tese de Walter Benjamin de que a violência está presente no próprio direito. As ações repressivas do Estado mostram que ele tem um núcleo violento, mostram a relação da violência com a política, mas é preciso lembrar que a política não pode deixar de ter uma dimensão ética.
Pensávamos que vivíamos numa democracia pacífica, o que imaginariamente fazia desaparecer o direito do cidadão à rebelião. Os movimentos de norte a sul do país indicam que a sociedade atingiu o seu limite, não aguenta mais e faz a pergunta por justiça e questiona a legitimidade dos governos que escolheu. A violência empregada pela população quer perguntar ao Estado sobre a noção de justiça que defende: é justa a passagem a R$ 3,05? É justa a derrubada de árvores na Capital? A violência é uma forma desesperada de resistência da sociedade mas a ação violenta dos órgãos policiais nega o direito de resistência. Os movimentos são violentos porque a sociedade se sente abandonada pelo sistema político e econômico: o problema não é o valor das passagens em si mas do sistema excludente que obriga a população a não encontrar outra alternativa do que não ser a da violência para ser ouvida. Em Porto Alegre, os manifestantes queriam baixar a passagem e a conseguiram, mas isto não foi suficiente porque descobriram que é o próprio capitalismo que desejam combater. E como não há projeto, atendem ao impulso à violência em estado puro. É aí que cometem um erro.
É claro que não queremos a violência, mas o problema justamente é saber aquilo que queremos. O espírito destes movimentos é de revolta e não de revolução, são movimentos de fúria autêntica sem um programa de mudança sociopolítica, a maioria de seus participantes rejeitam a violência, mas há ali em seu interior aqueles que seguem-na praticando-a, produto da descrença na classe política à direita e a esquerda. Movimentos sem programa se tornam histéricos e o que vemos no dia seguinte é a repetição do dia anterior, o que leva a um estado de emergência permanente e o risco da suspensão da democracia política. Como dizia Gandhi, os manifestantes só foram violentos porque "querem dar um basta ao modo como as coisas funcionam" (Zizek), mas o que significa sua violência quando comparada à exercida pelo Estado que afirma existir liberdade mas  não tolera a "liberdade de rebelião"?

Publicado em Zero Hora em 15/06/2013