sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Ciclistas do mundo, uni-vos!

Nos Estados Unidos, uma propaganda ironizava estudantes que iam para a faculdade de bicicleta, mostrando um ciclista sendo ultrapassado por uma bela moça em um carro. Muito criticado, o anúncio, que terminou retirado, encerrava-se com a frase “Deixe de pedalar… comece a dirigir”. O contrário bem que poderia ser o tema do 1º Fórum Mundial da Bicicleta, a ser realizado em Porto Alegre nos próximos dias. “Deixe de dirigir...comece a pedalar” é a utopia que só pode surgir na sociedade onde o automóvel cobra alto preço por sua existência .Mas para que o seminário dê frutos e não se transforme em apenas mais um evento da capital, seus partipantes terão de responder a duas questões essenciais.

A primeira é como recuperar a necessidade da velocidade democrática. Quando foi inventado, o automóvel proporcionou a experiência inédita de andar mais rápido que diligências, carruagens, trens e bicicletas. Antes, a velocidade era democrática: todos andavam na mesma velocidade, diz André Gorz. O carro estabeleceu uma velocidade de deslocamento para a elite e outra para o povo. Mais: ele gerou uma nova forma de alienação, já que enquanto o ciclista é capaz de consertar seu veículo, o motorista torna-se dependente de especialistas que cobram caro por seus serviços. Num mundo onde todos querem ir a qualquer lugar  mais rápido, como colocar a necessidade de ir devagar?

A segunda questão é como transformar o ciclismo em questão política. No passado, no tempo em que a distância entre o mundo onde se vive e o mundo onde se trabalha era menor, a bicicleta era um bem comum e a maioria dos trabalhadores a possuia para trabalhar. Fazia parte, portanto dos procedimentos relativos à vida nas cidades – da  pólis, daí política – o uso da bicicleta. Paradoxalmente, o que despolitizou o ciclismo foi o seu afastamento das camadas populares, transformado em esporte de elite e a progressiva transformação do automóvel, de bem de elite para bem popular. Hoje, quase tudo mundo tem carro mas muitos não tem bicicleta.Tornamos as cidades inabitáveis ao deixarmos de ser proprietários de bicicletas para nos tornarmos consumidores de automóveis.

Mas politizar o ciclismo não é apenas pensá-lo somente no campo das políticas de mobilidade, atual estágio da discussão. É preciso ir mais além,  pensar o bicicletar como um novo humanismo -  “Pedalo, logo existo” - como diz Marc Augé. Não optamos pela bicicleta porque gasta menos energia ou polui menos, argumento produtivista que esquece o mais importante: optamos pela  bicicleta porque ela possibilita ao cidadão experienciar a cidade como espaço de aventura, lugar de descobertas, possibilitando as pessoas se encontrarem ao invés de ficarem reclusas em suas casas com medo da violência. A bicicleta transforma a vida social,  aprende-se a “pedalar junto“, e isto ajuda os cidadãos a tomar consciência de si mesmos e dos lugares que habitam.

Quem diria! O velho sonho comunista encontrou uma forma secreta para retornar, agora sem sangue e sem revolução: a partir de um mundo onde simples bicicletas são de todos, onde podemos pegá-las onde quer que estejamos para deixá-las logo adiante para outra pessoa, reinventamos a idéia de bem comum tão cara a esquerda. Não é o que as experiências ciclísticas de Barcelona e Paris já mostram? A Revolução Ciclista ainda não se consumou. É preciso fazê-la o quanto antes. Ciclistas do mundo, uni-vos!

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Contra a privatização da educação



Conheci Fernando Luís Schüler na década de 90 como Diretor do Centro Cultural Usina do Gasômetro, em Porto Alegre. À época, integrante da gestão do Partido dos Trabalhadores na Prefeitura, que chegaria a completar dezesseis anos, Schüler, transitava com grande desenvoltura entre teóricos da direita à esquerda, mas era reconhecido por ser um militante do PT. Por esta razão, seu artigo nesta Folha (Um apartheid silencioso, 2/2/2012) muito me surpreendeu. Naquela época, Schuler realizou grandes seminários internacionais que foram responsáveis por aprofundar o pensamento contemporaneo em nossa capital: reuniu o melhor da direita (François Furet) com o melhor da esquerda (Hobsbawn, Agnes Heller). E trouxe ainda, pensadores do espectro do pós-modernismo cujas contribuições ainda estão para serem incorporadas em Ciências Sociais, como Jean Baudrillard e Michel Maffesoli. Graças aos eventos promovidos por Schüller, aqueles foram anos de um pluralidade de idéias muito grande, de grande experimentação teórica e de certa forma, os autores marxistas que trouxe terminaram por fortalecer a base de idéias de esquerda na capital, entre muitos professores do sistema educacional, possibilitando a rede de ensino da capital tornar-se referência em todo o Estado.
Schuller é um dos intelectuais mais brilhantes de sua geração, mas após duas décadas, o que realmente mudou em suas idéias? Não se trata, do direito óbvio da mudar de partido e posição, o que se vê por sua trajetória . O ex-secretario de Justiça do Governo Yeda Crusius(PSDB) compartilha o que se pode chamar do pensamento privatista em educação, liderado por Gustavo Ioschpe e que tem como base a ampliação da esfera do mercado no interior das práticas e serviços públicos. Essa posição, rejeitada pelos educadores, está baseado em quatro equívocos, que de tanto serem repetidos, correm o risco de serem tomados como verdades. Inventivo, criativo e de iniciativa, Schuller ocupa cada vez mais espaços na mídia. 

O problema é o pensamento de Schuler reforça um discurso cada vez mais privatizante e apoiador da lógica do Capital, com o qual não concordamos. Adotamos aqui os argumentos de educadores de esquerda que apontam pontos que merecem ser discutidos. Vejamos quais são.   
O primeiro deles é que os problemas da educação são problemas de gestão e as escolas, repartições públicas. Esse argumento esquece que a gestão da escola é feita por profissionais que defendem uma educação pública de qualidade há décadas. As escolas podem nascer como repartições públicas, mas o fato é que no processo de ensino e luta por uma educação melhor transformam-se noutra coisa, em espaços de aprendizagem. O professor não é um burocrata qualquer: o que o diferencia é sua visão de futuro. A idéia de que pode-se mesurar seu rendimento pelos instrumentos da ciência econômica, como apregoam Ioschpe e seus discípulos, abstrai todas as condições sociais e históricas envolvidas no processo educativo. As escolas estão do jeito que estão não por causa dos professores, mas pela fragilidade de nossas políticas públicas. Urge aperfeiçoa-las enquanto políticas públicas.
O segundo deles é que a visão antimeritocrática dos professores contribui para a crise da escola. Propor que a escola assuma em sua organização a meritocracia é propor que a escola funcione a maneira do Capital, onde os prêmios por mérito recompensam índices de aprovação - outra forma de criar uma escola voltada para a submissão bem distante do ideal dos professores, defendem uma escola capaz de forjar alunos críticos baseada em ideais de liberdade. Nada mais distante do universo de ensino de que avaliar a educação somente por números. No ato de aprovar um aluno, condições internas do processo de ensino que dependem do trabalho do professor - qualidade de ensino - confundem-se com as condições externas do mesmo processo e que as vezes determinam as condiçoes de trabalho - não ter recursos é um deles. É preciso pensar -e  isto fazem os educadores dia a pós dia - uma avaliação sim, mas qualitativa e com os critérios da qualidade, algo bem distante dos números e estatisticas de aprovação e reprovação podem dizer.
O terceiro deles é sugerir que o problema da educação brasileira está no fato de ela ser estatal. A única coisa justifica a idéia de passar a gestão da educação pública para a iniciativa privada é a necessidade de resolver os problemas da iniciativa privada - aumento do capital - e que esquece os problemas que as escolas privadas também tem, como controle e perda da liberdade de criação. É a velha proposta de comprar vagas junto ao empresariado ao invéz de investir na rede pública, estratégia rejeitada pelos educadores mas defendida com força pelos empresários da educação. Para a iniciativa privada, escola é fonte de renda, e nada mais.
O último deles é que, neste sistema, os alunos poderiam então “escolher onde estudar. O empresariado atpode visualizar este sistema para as cidades, que possuem uma infraestrutura desenvolvida, mas que empresário irá preocupar-se com a educação dos rincões de miséria e pobreza de nosso pais? Os empresários da educação farão prédios e contratarão professores para lá? Ora, por favor Schuler, o Estado possui uma estrutura deficiente, é verdade, mas é ele que garante o cumprimento do “direito à educação”, de forma universal e para todos os brasileiros. Aperfeiçoa-lo, corrigir seus problemas é o que se pede, não substitui-lo pelo privado, o que é rejeitado pelos educadores. Não é o suposto apartheid educacional que é silencioso, é a ideologia privatista em educação que movimenta-se e agrega defensores sem produzir som algum.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O pianista e o comandate






Depoimento de sobrevivente do acidente do navio italiano citado por Zero Hora diz que, em meio à tragédia, o pianista continuava a tocar. A imagem tem sentido não pela comparação equivocada que se possa fazer com outra tragédia, a do Titanic, prestes a completar seu centenário, mas com outra imagem, a do capitão do navio, agora responsabilizado pelas autoridades. Se Marx está certo e uma tragédia só se repete como farsa, do que se trata o naufrágio do navio Costa Concordia e o que ele tem a nos ensinar?


A tragédia do navio naufragado está mais para as Twin Towers do que para o Titanic. O que surpreende não é o fato óbvio de que se trata de mais um navio a naufragar, mas de um objeto que se pensa indestrutível vir abaixo, exatamente como as Torres Gêmeas. Lá, um ato aparentemente irracional do terror – que de irracional não tem nada – destrói um prodígio arquitetônico, símbolo de uma nação. Aqui, um ato aparentemente irracional de seu comandante destrói um prodígio náutico, símbolo da vida de consumo de nossa época. O que está em questão nunca foram os navios ou prédios – sim, claro, nos padecemos por sua vítimas etc., etc., – mas o que é derrubado, o que afunda realmente são as nossas certezas frente à técnica. Estou na praia escrevendo estas linhas: como é possível que barcos que vejo no horizonte, primitivos e toscos, possam manter-se de pé enquanto o imenso e indestrutível bólido aquático, com todo o seu sistema de proteção, afunda nas imagens?


É na relação do comandante e do pianista que encontra-se a resposta. Sim, é sempre no homem, no que crê e no que baseia sua existência, que está a resposta. No mundo do individualismo obsessivo, do cada um por si na escalada capitalista, pode-se agora encontrar um capitão de navio disposto a deixá-lo antes da hora: fim da ideia de cumprimento do dever. Por isso é tocante a imagem do pianista – seja o relatado pelos viajantes do Titanic, o representado no filme de James Cameron e agora atualizado na fugaz imagem de um instante visto por um sobrevivente e que nos diz mais do ser humano do que anos de filosofia: trata-se, mais uma vez, da questão da ética do dever, que retorna para nos lembrar do que somos e do que devemos fazer.


Devemos fazer aquilo para o que nos preparamos a vida inteira, numa palavra, fazer o certo. Assim como a mensagem inscrita no monumento Osório, o caminho do dever é árduo mas é o único que nos diz que somos seres livres, capazes de fazer escolhas não por nossos instintos mas pela certeza de realizar o que é belo, justo e perfeito. A farsa da tragédia é sugerir que, só porque são espetaculares, nossos inventos são indestrutíveis e que, corrigindo suas falhas, nunca mais ocorrerão. Ao contrário, quanto mais espetaculares inventos criamos, mais frágeis nos tornamos. Frente a esta tragédia, é preciso lembrar que só fortalecendo o homem – seu caráter, sua consciência – e não seus inventos, que se fará a diferença.


Publicado em Zero Hora 14/01/2012
————————————–