sexta-feira, 20 de novembro de 2009

O mais maffesoliano dos trotskistas


“A imensa maioria das pessoas tem o sonho fantástico da imortalidade. O fim da vida nunca está no horizonte, a não ser quando ele se apresenta como irremediável. E quando ele chega sentimos profundamente. É o nunca mais. A ausência absoluta e a única coisa que resta é a lembrança, a memória das pessoas que nos são queridas, mas cujo ciclo entre nós terminou definitivamente” Luis Pilla Vares


Não sou nem de perto a pessoa mais indicada para falar de Luis Pilla Vares. Nem parente, nem amigo próximo, e o fato de te-lo conhecido em 1992, portanto, lá vão dezenove anos de distância. Sequer posso falar de uma afinidade intelectual, já que prefiro Jean Baudrillard à Rosa de Luxenburgo, Paul Virilio à Gramsci e Slavoj Zizek a Sartre. E muito menos ainda posso falar de uma proximidade de trabalho, pois quando Secretário Municipal da Cultura, pouco contato tive com ele. Por que falar então?

Por que é preciso. Passados um um ano de sua morte, completados agora em outubro de 2009, pouco se trouxe a tona de sua memória. Uma injustiça, já que Pilla Vares foi um dos grandes intelectuais de Porto Alegre e o era, não pela densidade de seus escritos, que foram muitos, mas por uma crônica cotidiana que fez a memória da capital. Influenciou uma geração de intelectuais, produtores de cultura e artistas, com seus textos e suas opiniões. Era uma espécie de tradutor universal das humanidades e como ninguém, sabia apontar os argumentos dos grandes debates de idéias, posicionar-se quanto a um tema de debate em ciências sociais, apresentar um grande intelectual e pensador.

O problema é que sua produção teórica era assistemática. Grosso modo, podemos dizer que há duas fases em sua obra. A do “primeiro” Pilla Vares, com seus escritos fundamentais que datam dos anos 80, especialmente Socialismo e Liberdade (1985), “Rosa, a vermelha”(1988). A esta produção segue-se outra, dos anos 90, com estudos como “Gramsci, 100 anos de um pensamento vivo”, em parceria com Luiz Marques (1991) e “O anarquismo”(1992), que tornaram-se clássicos nas universidades. A crítica à esquerda atingiu Pilla Vares, mas ele não deixou de publicar, nos anos seguintes, em parceria, diversos textos em obras coletivas ou participações com artigos em coletâneas. Pilla Vares não se via como o organizador de sua obra, e seu deslocamento é o de um intelectual que aos poucos deixa de lado o estilo acadêmico para adotar a forma da crônica cotidiana.

Esta seria a base de um “segundo” Pilla Vares, representado por seus artigos de jornais. Verdadeira crônica cotidiana, ele transforma-se no observador de sua época, do mundo das artes e do universo intelectual, tal como repercute na capital. Poucos fizeram como Pilla, que nunca abandonou seus ideais de esquerda, mas permitiu-se algo notável, o de ser impregnado pela poesia. Mostrou que a esquerda podia ser mais “suave”, que o duro discurso militante – a revolução – poderia ser acompanhado por algo mais leve. Ganhou a esquerda, que atualizou o seu discurso e ganhou a cultura gaúcha, que ganhou um notável escritor. Mais, Pilla Vares, a sua maneira, redescobriu a idéia de “contemplação do mundo”, tão defendida por Michel Maffessoli, a reivindicação de um modo mais poético e libertário de ver a realidade. Nada mais pillavariano – ops! - a posição que diz que para compreender o nosso mundo, valem recordações da infância, observações do dia a dia, comparações com projetos pessoais, elocubraçoes metafísicas.

“Sempre que passo as minhas férias no litoral, em frente ao mar, nunca deixo de lembrar a minha infância e o começo da adolescência. E elas tinham um endereço certo: Cidreira. Mas a Cidreira que me traz recordações está a léguas de distância da praia que conhecemos hoje, uma cidade de porte médio. A Cidreira que povoa a minha imaginação sonhadora diante do mar é outra, totalmente diferente, que deixou de existir, embora teime em permanecer viva na minha lembrança - e certamente nas mentes dos que a conheceram décadas atrás.”

Pilla Vares deixa claro que há muito tempo não tinha contato com crianças. Ele sabia muito bem que era um militante e não um psicólogo. Mas a memória o perseguia e voltava a dizer “Mas fui criança, vivi intensamente o tempo mágico da fantasia e da imaginação e, depois de adulto, sempre lembrei da infância, da inocência, do rico universo que nos envolve naqueles anos de construção da personalidade e que nem sempre são lineares e felizes.” E, por uma estranha proximidade, o fato de sua morte ocorrer às vésperas de mais um Dia da Criança, talvez tenha algum significado. Ela está numa mensagem subliminar dita às crianças em suas crônicas, perdidas no meio de textos de um militante ferrenho da esquerda, intelectual aguerrido, e que são no mínimo a mais bela mensagem que podem ser relembradas neste Dia que está por vir.

É o que vemos no texto “O imaginário infantil”(ZH, 27.3.2008) onde Pilla Vares diz.”Minha experiência pessoal como criança é certamente diversa da meninada de hoje. Meu tempo lúdico de criança foi formado por grandes inovações tecnológicas e formas novas de expressão: o rádio, por exemplo. Ali, os seriados de Tarzan, Capitão Atlas, As Aventuras do Anjo, Jaguar O Detetive, nos faziam sonhar e ocupavam as nossas tardes. Ansiávamos pelos fins de semana por causa das matinês de filmes de aventura, caubóis e os incríveis desenhos animados. Queríamos ser Durango Kid, Hopalong Cassidy, Zorro. Ou os filmes em série, principalmente Flash Gordon, Dick Tracy, o Fantasma, Super-Homem, Batman, Capitão Marvel, todos saídos das histórias em quadrinhos publicadas nos gibis. E, obviamente, o futebol. Ir ao "estádio" era fantástico e depois reproduzíamos as partidas em memoráveis clássicos de botão, quando imaginávamos arquibancadas lotadas. As meninas tinham as suas bonecas, as casinhas e todo um condicionamento para cumprirem seu papel futuro de donas-de-casa.”

Em suas recordações, o passado e o presente aparecem em flashes. Ele percebe o passado e compara com o presente. Ele diz “Agora parece que tudo mudou. As matinês não exercem mais nenhuma atração: a televisão acabou com elas. Depois veio a revolução radical dos computadores, com suas incríveis e, para a minha geração, inimagináveis possibilidades criativas e de jogos fascinantes. É claro que fica a inevitável pergunta: qual o tempo melhor do imaginário infantil? Os dias atuais reduzem ou ampliam a imaginação da criançada? Não dá para responder, só os tempos futuros serão capazes de possibilitar uma afirmação. E olhe lá! De qualquer forma, espero que o imenso e inesgotável mundo de sonhos que é reservado às meninas e aos meninos não tenha terminado, mesmo que os novos costumes tenham modificado comportamento e atitudes e, certamente, encurtado a época da inocência. “. Que a poesia de suas descrições surpreenda por tocar na essência das coisas, é apenas mais um dos méritos de Pilla Vares.

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