quarta-feira, 10 de março de 2010

Dossie Voltaire Shlling VI - Entrevista de Voltaire recoloca a questão da arte

Arte 05/12/2009 05h10min
Arte na berlinda: Zero Hora entrevista Voltaire Schiling
Artigo do historiador gerou polêmica sobre arte na Capital
O artigo
A capital das monstruosidades, do historiador Voltaire Schiling, publicado em Zero Hora no dia 25 de outubro deste ano, foi o estopim de uma polêmica sobre a arte na Capital gaúcha. Os jornalistas Eduardo Veras e Luiz Antônio Araujo conversaram com Schiling sobre o assunto, na casa do historiador, no Morro Santa Teresa. Confira a íntegra da entrevista.

Zero Hora — O senhor esperava que seu artigo fosse ponto de partida para uma polêmica sobre arte em Porto Alegre?

Voltaire Schilling — Não. Minha percepção era apenas reclamar contra o que eu considero o conjunto de horrores estéticos que nos cercam. Para mim, o ponto de deflagração foi a "casa monstro" (a obra Tapume, de Henrique Oliveira). Acho que não contribui para a cidade. Sou um cidadão de Porto Alegre descontente com o tipo de monumento e estatuária que existe por aí. Pelo menos com aquelas elencadas. Repare que não é uma declaração universal de horror a toda a estatuária da cidade. Depois soube que o mesmo escultor (Tenius) que fez o monumento ao ditador (a obra Monumento a Castello Branco, no Parcão) é o dos Açorianos, que acho um trabalho muito interessante.

ZH — As soluções formais do Monumento a Castello Branco e do Monumento aos Açorianos são muito próximas, se não as mesmas, não?

Schilling — Bom, isso é difícil, não gostaria de me ater. Existem obras de arte moderna e contemporânea excelentes e outras que não o são. Da mesma maneira que um pintor tem o seu mau dia, que um cineasta faz filmes maravilhosos e, de repente, faz um abacaxi ou um extraordinário teatrólogo faz uma peça que não funciona.

ZH — O monumento do Parcão é mal-resolvido?

Schilling — Não, só estou dando uma impressão. Não é uma questão de estudo acurado e profundo. O que acho estranho nessa área das artes plásticas é que, na literatura, o sujeito pode escrever um livro ruim, e a crítica em geral pode manifestar sua hostilidade. A mesma coisa acontece com o teatro, com o cinema. Mas parece que as artes plásticas resolveram reservar a si uma posição de não aceitar e imediatamente cair no pentágono da desqualificação: quem critica é nazista, stalinista, reacionário, ignorante e burro. Sabia que, se houvesse algum tipo de contestação (ao artigo), entraria em uma dessas categorias. Curiosamente, não me chamaram de veado ainda. É praxe isso.

ZH — O senhor foi chamado desses qualificativos?

Schilling — A todo momento. Em e-mails e coisas de tudo que é tipo. Um dos epítetos foi "machista", porque eu estranhava que apesar de a cidade ser simpática, a população ser afável e as mulheres serem as mais bonitas do Estado, não inspirasse os artistas a fazer alguma coisa esteticamente relevante. Mas isso é praxe. Quem usou "nazista" foi o meu querido amigo Paulo Amaral (citando): "Ah, te lembra que os nazistas...". Bom, Rockefeller (John D. Rockefeller Jr., dono da Standard Oil e proprietário do Rockefeller Center) mandou repintar um mural de Diego Rivera (pintor mexicano). O primeiro sujeito que usou essa palavra associada à monstruosidade foi Walter Rathenau, judeu ilustrado, morador de Berlim, riquíssimo. Ele escreveu um ensaio no final do século 19 no qual chamava Berlim de "a cidade mais bonita do mundo" e dizia: "Nossa capital é a principal acolhedora da feiúra moderna". Antes dos nazistas, essa estética da feiura já provocava estranhamento.

ZH — No texto o senhor usa termos como "monstruosidade", "flagelo", "medonhice", "perversidade" em relação às obras que rejeita, num sentido não irônico. O senhor ficou surpreso com a reação a esses qualificativos?

Schilling — Não. O texto também procurou ser divertido. É evidente que tem ironia. Se tu olhares o Monumento a Castello Branco, ele pode ser entendido como desembarque de um extraterrestre, por que não? Aquela outra, o "timão" (Estrela Guia, de Gustavo Nackle), parecia realmente ser feita de estrume, de esterco. Teve um sujeito que me falou que buscava a mulher aqui na Febem e toda vez que passava em frente (à obra) se sentia mal do estômago. O cara tinha engulhos ao passar por aquilo. Se tu perguntares para as pessoas da Zona Sul o que eles acham daquilo... Faz um levantamento. É claro que eu procurei fazer ironicamente a coisa. Não sou a favor de que as massas se reúnam e destruam as obras de arte. Fiz uma ironia. Apesar de que tu sabes que hoje em dia há instalações em que as pessoas chegam, e o artista entrega um martelo para o cara destruir.

ZH — Ou seja, de fato o senhor acha que Porto Alegre não tem de se livrar dessas obras?

Schilling — Não. Não. Não. É o seguinte: doravante, doravante... Eu acho difícil porque existe de certa forma no circuito dos artistas plásticos uma tirania que acovarda as pessoas. Fica todo mundo apavorado. Ninguém gosta, mas ninguém ousa dizer que o rei está nu e que isso é uma porcaria. No Brasil inteiro, tu tens Affonso Romano de Sant'Anna (poeta), Ferreira Gullar (poeta e crítico)... Por quê? Porque tu pagas um ônus. Ninguém gosta de ter seu nome associado ao nazismo. E é a primeira coisa que tu vais encontrar. Pega o artigo do Paulo Amaral: "Ah, os nazistas...". Então as pessoas se acovardam. Outra coisa: "Tu és burro, tu não entendes, tu tens de ter uma formação etc e tal". Me lembro até que saiu uma mineira dizendo assim: "Para fazer uma crítica à arte, as pessoas têm de estudar". Mais ou menos assim como se tivesse que fazer um pós-graduação para, aí sim, ousar fazer algum tipo de ilação negativa. E mesmo se fizer não há garantia nenhuma de que não vão te chamar de nazista ou stalinista. Então, tens de ter coragem, tu entendes? Milhares de pessoas estão se manifestando: "Pô, mas é isso mesmo, eu estava me achando burro...". E não é gente ignorante. Um amigo meu, ex-diretor da Faculdade de Medicina, disse: "Pô, eu também estava achando isso". Só que as pessoas estavam inibidas, porque há uma tirania e tu não podes ser contra.

ZH — Qual deve ser a atitude diante das obras expostas ao público em museus e praças, na medida em que uma parcela desse público não goste do que está sendo exibido?

Schilling — Isso é uma situação difícil de resolver. Arte não se resolve por plebiscito, por levantamentos ou por vontade geral da nação. Isso não funciona com a arte. É um setor que tem de ser tratado com carinho, com certa atenção, não pode ser submetido a plebiscitos. Mas, por outro lado, também não podemos cair na tolerância completa, o que acaba acontecendo em grande parte do mundo com a arte conceitual. Se caiu num vale-tudo. Me diz o que é um charlatão e o que é um artista autêntico. Há controvérsias. Robert Hughes (crítico australiano) considera aquele sujeito que empalhou um tubarão e vendeu por não sei quantos milhões de dólares um charlatão. Outros não o consideram. Qual é o critério de que um fogareiro aceso com uma serpentina em cima é uma obra de um grande artista e não obra de um picareta?

ZH — Quem define os critérios?

Schilling — Nós fomos tão tolerantes que as pessoas passaram a ter medo de exercer qualquer tipo de crítica. Tudo é bonito, tudo é válido, tudo é sensacional. Se tu não entendes a coisa, é porque és burro, idiota, reacionário, não percebes a magnitude dessa mensagem que daqui a alguns anos vai ser consagrada. Essa é a retórica de sempre: "Ah, lembrem os impressionistas..." Bem, vamos lembrar os impressionistas. Praticamente todos morreram bem. Estive na casa de Monet (Claude Monet, pintor impressionista) na França. Ele devia ganhar US$ 10 mil por mês para manter aquilo. Degas morreu bem. Picasso morreu multimilionário. Agora vão me dizer...

ZH — Quando jovens eles foram rejeitados. Há quem diga que o impressionismo foi mais rejeitado do que a arte de hoje.

Schilling — Tudo bem, mas não morreram mal.

ZH — Essa é a dinâmica do sistema das artes. Schilling — É. Vamos dizer o seguinte: é uma necessidade...

ZH — O senhor acha que a obra dos impressionistas acabou se impondo?

Schilling — Vamos supor o seguinte: há um exagero cultivado por eles mesmos. Porque isso fazia parte da demonização do artista: aquela ideia de que "nós, no passado, fomos rejeitados". Isso foi superexagerado no sentido de valorizar aquele martírio que eles passaram. No final, ninguém foi preso, ninguém foi detido. Perto do que aconteceu depois, no século 20, do que os artistas passaram na mão de Stalin e de Hitler... Nada aconteceu disso com os impressionistas. E se houve alguma utilidade nisso... E provavelmente muitas outras escolas artísticas ao longo da história de artistas que começam e são rejeitados. Quem é que disse que o Michelangelo saiu já...

ZH — Van Gogh morreu pobre, Modigliani morreu pobre.

Schilling — É, sim, mas aí, querido, me desculpe: alcoolismo, né? Aí é alcoolismo, né? Dois casos de coma alcoólica. Morreram por alcoolismo, por loucura alcoólica. E além do mais, até por temperamento. Modigliani foi negociar com um milionário americano e bateu a porta do hotel, xingou o cara. São idiossincrasias da personalidade.

ZH — O senhor quer dizer que quem é bom vai ser reconhecido ainda em vida?

Schilling — Não, não necessariamente. Mas esse tem sido o grande argumento para tu aceitares tudo. Tem a arte que agora não está sendo entendida. Bom, não está sendo entendida porque tu és burro, reacionário, e mais tarde vai haver a consagração.

ZH — Voltando ao tema dos critérios de apreciação da arte: no seu entender, quem deve estabelecer os critérios? Como? Baseado em quê?

Schilling — Bom, hoje em dia é fácil se identificar. Há, ao lado dos artistas plásticos, o que eu chamo de sacerdotes sibilinos, que são os críticos de cultura e de arte, que ficam interpretando o que é aquilo: "Ah, essa chapa, essa chapa de ferro, isso aí é a perplexidade do mundo perante as hostilidades etc e tal." Pronto. Do lado, tem o crítico, é ele que interpreta. Ele é o sacerdote sibilino.

ZH — E como o senhor acha que seria o ideal?

Schillling — Não sei. Eu não sei. Eu não sou artista. Sou um observador e um estudioso.

ZH — O senhor é um intelectual.

Schilling — Eu fui professor, eu comecei minha vida como professor de História da Arte. Não sou um amador. Eu li pelo menos os principais clássicos, os principais livros de História da Arte, tenho intimidade com esse assunto, não é uma coisa estranha a mim, mas não cabe a mim saber quais são as possibilidades... O que existe hoje é o seguinte: existe uma quantidade enorme de objetos que passam por obras artísticas, instalações etc, e do lado existem os críticos de arte e donos de galeria, que são, digamos assim, os apoiadores desse processo. E o crítico existe, a função dele é de sacerdotisa sibilina, quer dizer, ninguém entende nada daquilo, mas aí vem o crítico e explica, quase como uma espécie de bula de remédio o que é : "Aquilo significa isso, isso e isso". E, apesar das explicações, as pessoas não têm se convencido, né? Então, eu vejo até com preocupação, até é uma preocupação dolorosa com a arte. Eu sou admirador da arte. Eu fico preocupado com o destino da arte. Com esse abismo que está se abrindo, tu entendes? Em vez de haver uma espécie de conciliação hegeliana entre o mundo artístico e o grande público, nós estamos abrindo um abismo cada vez maior onde as pessoas mostram a sua perplexidade, a sua indiferença. Não é bom isso, não é bom isso para ninguém, não é? Eu ainda sou um, digamos assim, um seguidor da ideia iluminista de que a estética tem uma função de melhorar todos nós. A estética faz bem para nós. Agora, em parte, eu te diria que essa fome estética que a humanidade sente ela está sendo desviada para a tecnologia. Por exemplo, as pessoas vão num salão do automóvel e saem absolutamente embevecidas. Coisa que tu não vês quando as pessoas saem de uma Bienal — não é a nossa, qualquer uma. Tu não vês esse empolgamento das pessoas.

ZH — O senhor foi à Bienal este ano?

Schilling — Sim. ZH — Aonde o senhor foi? Schilling — Ah, fui ali, aquela ali do... Aliás, hoje eu estou com vontade ainda de ... Tenho um compromisso lá e vou, quero ver se faço um arremate final.

ZH — Ali no Margs? Schilling —

É. No Margs eu fui, claro, é do meu lado (Voltaire é diretor do Memorial do Rio Grande do Sul, situado no antigo prédio dos Correios, vizinho do Margs, na Praça da Alfândega). Foi a que tem sido mais visitada, inclusive...


ZH — E o que o senhor achou?

Schilling — Olha, eu achei que tem trabalhos escolares, né? Tem coisas assim de trabalho de ginasiano, colagenzinha de ginasiano, né?

ZH — O senhor não acha que o fato de a Bienal estar na sétima edição, de ter tido um crescimento de público sustentado, de ter atraído não só o público adulto, que frequenta museus, mas de ter se tornado um ponto de referência para escolas, de alguma maneira indica que a disposição do público não é exatamente a que o senhor tem?

Schilling — Olha, duas coisas. Primeiro, eu não sou contra a Bienal. Acho que a Bienal é ótima para a cidade. Acho muito bom. Pelo menos de dois em dois anos, há um encontro, uma confraternização das propostas dos artistas com o público, que é uma coisa boa para a cidade. Como é que eu vou ser contra a arte? Em segundo lugar, mesmo com o aumento de público, eu não encontrei empolgação. Não tem. Eu estou numa posição estratégica, já é a terceira Bienal (à qual assiste como diretor do Memorial do Rio Grande do Sul). Nunca, nunca nenhuma pessoa demonstrou na minha frente, para amigos meus, para pessoas próximas a mim, empolgação: "Vi tal coisa maravilhosa". Nenhuma vez. Ao contrário: decepção. A palavra é decepção. Sempre decepção. As pessoas vão com toda a boa vontade e saem decepcionadas. Muitas pessoas dizem: "Mas essa é a função da arte hoje. Criar esse tipo de embaraçamento etc e tal".

ZH — Nenhum trabalho lhe empolgou ali no Margs?

Schilling — (Pausa.) Não. (Mais baixo.) Não, não. Os meus, digamos assim, os meus ídolos, as pessoas que eu admiro, são os impressionistas... mesmo os cubistas e os futuristas... Eu sou, digamos assim, defensor da arte pré-contemporânea, da primeira arte moderna, pré-contemporânea. Isso aí (da Bienal) pouco diz para mim. Então a primeira questão que eu levanto é isso: por que um grupo reduzido de artistas plásticos, de críticos culturais e de donos de galeria atingiu um patamar que se coloca acima da crítica e reage ferozmente quando criticado? Essa que eu acho que é a questão interessante. É um grupo muito pequeno se tu somares os artistas plásticos e os críticos culturais etc e tal que aterrorizam a população. Tanto é que as pessoas não gostam mas não têm coragem de dizer. Esse é um sentimento. Vocês não percebem isso?

ZH — Será que essa reação não foi à maneira como o senhor se posicionou? O senhor chamou as obras de arte de "flagelo", disse que elas "atormentam", disse que uma parecia "estrume", chamou de "monstruosidades". O senhor juntou obras modernas e contemporâneas, obras selecionadas por concurso e obras temporárias. Será que não foi isso que incomodou?

Schilling — Não.

ZH — Chamar de "flagelo", "monstruosidade"...

Schilling — Não. Não. Não.

ZH — Não foi isso? Schilling — Não.

ZH — O senhor acha que os termos foram...

Schilling — Mas são sempre os mesmos. Olhem: se eu fosse o mais suave possível, a reação seria a mesma: nazista, stalinista, reacionário, ignorante e burro. Tenta fazer um artigo. Tenta fazer um nessa linha...

ZH — Eu fiz um artigo.

Schilling — Não, tudo bem, mas tenta fazer um no sentido crítico.

ZH — Eu fiz um artigo crítico sobre a Bienal.

Schilling — Vê se não vai desabar sobre ti.

ZH — Eu fiz um artigo crítico sobre a Bienal.

Schilling — Eu já sei.

ZH — Para eu entender, professor: o senhor acha que os seus termos foram adequados, corretos e equilibrados e a reação é que foi desproporcional?

Schilling — Não, eu não estou incomodado com a reação... Tu achas que eu estou incomodado com a reação a essa altura da minha...? Eu só tô dizendo que isso é a praxe. Essa é a praxe. Tu acha que isso me surpreende?

ZH — Eu acho que se o senhor foi chamado de nazista tem de se surpreender.

Schilling — Não, não, ao contrário, querido. Tu acha que a essa altura da minha vida, com tudo que eu já vi, com tudo que eu já passei, com ditadura que eu enfrentei, eu vou me assustar porque um sujeito lá escreveu que eu sou nazista?

ZH — Mas o senhor, como intelectual, tem uma posição pública. Se alguém lhe chama de nazista num debate público, essa pessoa tem de sustentar aquilo que está dizendo. Estou lhe perguntando se houve extrapolação da parte dos que lhe responderam.

Schilling — Não. Não houve. É praxe. É praxe. Em toda discussão que envolve crítica às artes plásticas contemporâneas, tu és taxado de nazista ou de stalinista. Toda. Mesmo que eu fosse suave, mesmo que eu usasse uma adjetivação mansa, a resposta seria essa.

ZH — Como é que o senhor qualifica essa adjetivação que o senhor usou? Schilling — Digamos assim, fruto da indignação de um cidadão de Porto Alegre. É um texto de uma pessoa indignada. Eu não acho que a nossa cidade mereça isso. Acho que a nossa cidade merece uma escultuária melhor. Não sei qual. Não sou artista. Né?

ZH — O senhor disse que, em matéria de arte, gosta dos impressionistas e da arte moderna.

Schilling — Certo.

ZH — Pré-arte contemporânea.

Schilling — Ou arte conceitual. Que é um gosto.

ZH — Digamos que nós sejamos vizinhos, e eu goste da arte renascentista. Como é que nós podemos chegar a um entendimento sobre o tipo de arte que tem de ser exposta na cidade?

Schilling — É, isso é uma questão difícil, mas observa que tanto o impressionismo quanto a Renascença estão mais ou menos dentro de um enquadramento comum: pintam figuras humanas, pintam paisagens. Tu pegas uma tela impressionista, tu pegas um Monet e pega um Fra Angelico, tem denominações comuns: são figurativas, são paisagens. Claro que um está mais marcado pela presença da vida santificada e outro pela vida laica, por assim dizer, mas existem certas identificações. Agora, de repente, o sujeito cria um tarugo de ferro e diz que isso é a chegada de Deus na Terra, ali ele rompe, tu entende? Esse nosso alinhamento — você simpático ao Renascimento e eu ao impressionismo —, nós temos algo em comum.

ZH — Mas o senhor conhece História da Arte e sabe que do Renascimento ao impressionismo e à arte moderna há uma ruptura muito grande. A arte moderna teve de abrir caminho frente a críticos muito mais, digamos, indignados do que o senhor.

Schilling — Eu só quero te dizer que ainda entre o impressionismo e a Renascença existem pontos, denominadores comuns que agora não existem mais. Bom, inclusive não existe mais pintura. Não existe mais escultura. Foram abolidos, né?

ZH — O senhor está reconciliando a arte renascentista com o impressionismo e a arte moderna. Para o senhor, isso tudo é parte de um mesmo movimento e de um mesmo entendimento, pode ser reconciliado e se chegar a um acordo. Mas eu posso achar que não. Posso achar que é só a arte renascentista que tem sentido.

Schilling — Tudo bem. Não vou te chamar de nazista pelo que tu estás dizendo. Não vou te chamar de reacionário nem de homossexual porque tu pensas assim.

ZH — Mas já que nós estamos falando de espaços públicos, como chegar a uma definição? O senhor diz: "Porto Alegre, cidade aprazível, povoada por gente simpática, habitada pelas mulheres mais belas do país". Como é que nós, os porto-alegrenses, mesmo aqueles que não são tão bonitos nem tão simpáticos, vamos chegar a um entendimento sobre que arte tem de ser exibida?

Schilling — A prefeitura tem órgãos, tem possibilidade de criar comissões, de aprovar ou não. Mas eu sou cético quanto a isso. Eu sou cético em relação a isso. Eu não acredito que isso aí vá funcionar. Porque a imposição desse pequeno grupo é tamanha que vamos supor que uma comissão rejeite. Desaba: "Vocês são nazistas, reacionários, burros, retrógrados".

ZH — Num concurso uns vão ser excluídos e outros selecionados.

Schilling — Sim, mas seja o que for, mas a adjetivação é terrível. A pergunta que eu faço é: como esse pequeno grupo, numa democracia, aterroriza milhares de pessoas? Milhares de pessoas. Não gostam e não podem dizer que não gostam. E se ousarem dizer que não gostam, são submetidas a uma avalanche de ofensas aterrorizadoras. Não é só eu. Qualquer um.

ZH — Algumas das obras que o senhor rejeitou no artigo foram aprovadas em concursos públicos inclusive com a presença de artistas consagrados que o senhor cita. Por exemplo, a obra de Gustavo Nackle foi aprovada num concurso que tinha, na comissão julgadora, Xico Stockinger.

Schilling — É, deve ter. Deve ser. Porque até é solidariedade de classe. Corporativo. Espírito corporativo. Ninguém quer brigar nessa área. Ninguém quer brigar. Ninguém quer levantar celeuma. O princípio é: "Ah, é genial". Tudo é genial. É criativo, o que tu vais dizer? Tu que não entendeste". Isso aqui (indica uma garrafa térmica sobre a mesa) é o ready made. Se eu boto isso aqui numa exposição não vale nada, mas vamos supor que um artista plástico ponha isso aqui: "Ah, é uma obra maravilhosa. Viram a genialidade do sujeito?". Não é? Eu não posso colocar isso porque não sou artista. Então existe todo um espírito de confraria, é natural que seja assim, um procura ajudar os outros, ninguém critica. Eu nunca vi uma crítica.

ZH — O senhor conhece algum caso de artista que tenha tido a sua obra rejeitada com base na alegação de que "isso não é arte" por alguma dessas comissões?

Schilling — Não sei. Eu não tenho intimidade com esse tipo de coisa. Nunca participei de nenhuma comissão desse tipo. Nunca soube disso. Pode ser, se é isso que tu estás levantando. Tu tens um espaço público só, deve ter 10 candidatos, nove são rejeitados.

ZH — Mas com base nesse critério de que não se trata de arte.

Schilling — Mas eu não sei. Não sei. Não sei. Não sei qual é o critério usado. Não tenho a mínima ideia. Só que é isso, quer dizer, tu vês que a cidade começa a ficar tomada por objetos absolutamente estranhos, que não dizem nada a ninguém a não ser aos críticos de arte. "Ah", num deslumbramento, "você não entendeu, você é uma pessoa reacionária, você é um assassino de judeus, não entende a profunda magnitude dessa obra". Entende? Então as pessoas ficam apavoradas. Essa é que é a verdade.

ZH — O que me intriga é que o senhor fala sempre de uma maneira generalista: "Ninguém sai da Bienal entusiasmado". Eu já vi até crianças entusiasmadas. Uma coisa é a crítica a priori que rejeita. Outra coisa é ir lá, olhar e pensar.

Schilling — Mas a minha crítica não foi à Bienal. Tanto assim que grande parte das estátuas que estão aí não eram de pessoas da Bienal. Esse desse uruguaio, aí, essa estrela... Eu só não queria aquele que parece um tarugo. Que um sujeito que está com esse negócio aí sem ter o que fazer, não vendeu ele, então deixa de doação ao município. Nesse caso...

ZH — Ele criou especialmente para aquele lugar.

Schilling — Bom, só para te falar. O Robert Hughes exatamente diz isso: a arte conceitual virou brincadeira de criança. Entrar num tubo, sair não sei o quê. Eu acho que as crianças se divertem. Mas elas também se divertem num playground. Elas se divertem num carrossel. Tu não leste a entrevista do Robert Hughes?

ZH — Acho que não.

Schilling — É, a famosa entrevista da Veja. Eu reproduzo. Basicamente, o que ele diz... O que me espanta é que isso passe em Porto Alegre por novidade. Essa entrevista já foi feita há mais de dois anos.

ZH — A da Veja? Sim, eu li. Schilling — Ele é tido como um dos maiores críticos de arte contemporâneos. E ele diz: "Olha, eu parei de escrever porque isso virou uma comercialização, um vale-tudo, nada mais significa nada e eu me nego a entrar nesse negócio". Pronto. Entende? Porque às vezes ele fazia menção a respeito de uma determinada peça qualquer de arte e aquilo disparava no mercado. E ele disse: "Eu não vou colaborar com isso. Me nego". Se negou a escrever. Podia continuar a escrever. Está com 68 anos. Por que que o maior crítico de arte, não é da Holanda, é dos Estados Unidos, ele é australiano de origem, mas... né? Peguem a entrevista dele. Eu não disse nada de mais. Essas críticas que eu fiz ao Duchamp ele também fez. Ele disse: não, o Duchamp de um lado liberou os artistas, de outro lado foi uma catástrofe. Eu acho que foi uma catástrofe. Não é Voltaire Schilling só que está dizendo.

ZH — O senhor acha que Duchamp foi referência, por exemplo, para o Monumento a Castello Branco?

Schilling — Não sei. Não sei.



ZH — Mas é só olhar. Schilling — Vem cá, num artigo de jornal...



ZH — É só olhar para ver. Schilling — Bom, não é essa questão. A questão é a seguinte, as pessoas cobram...

ZH — O senhor escreveu que era.

Schilling — As pessoas me cobram: "Por que tu não botaste tal coisa?". Outro quer: "Mas tu tinha que por a monstruosidade na arquitetura". Vem cá, mas eu estou num texto limitado. Nem sei se...

ZH — Mas esta entrevista é justamente para o senhor entrar nesses detalhes.

Schilling — "Porque tem monstruosidades na arquitetura. Porque tem não sei o quê..." É... é... Bom, não era a minha preocupação, tu entende? A minha preocupação é apenas isso, tu entende...

ZH — Mas tem uma diferença entre o senhor e Robert Hughes.

Schilling — Tem, claro. Primeiro uma diferença financeira. (Risos.)

ZH — Digo, uma diferença em relação à atitude diante da obra. Ele não está propondo empacotar o Duchamp e mandar embora. Schilling — Eu, olha, eu não sei, quer dizer, eu pelo menos tenho uma, é um tipo de reação, a reação dele foi outra, foi se refugiar numa, digamos assim, numa vida mais solitária. Talvez seja diferença de temperamentos. Eu não quero desmantelar o que existe aí. Isso aí não vai acontecer. É que há... ZH — Mas o senhor não quer porque não vai acontecer ou porque é preciso haver uma outra resposta? Schilling — Não, não é isso. Digamos assim: doravante, a minha expectativa é que as pessoas encarregadas disso tenham mais cuidado, só isso. Doravante, pensem um pouco: "Pô, mas será que isso realmente é uma coisa meritória para nossa cidade? Ela merece isso?" ZH — Ter cuidado é um conselho bastante amplo. Do ponto de vista de quem julga a obra de arte, quais seriam as principais diretrizes que consubstanciariam esse cuidado? Schilling — Não tenho condições (de responder) porque eu não sou artista. Eu só reajo: isto aqui não está bom, não está bom, não está bom. Minha reação é essa. Não é a questão nem só da feiura, é o mau gosto, tu entende? É o mau gosto. É o mau gosto. E se por trás de mim não tem ninguém, se é um ato absolutamente isolado da minha personalidade, não sei por que vocês então dão valor para isso. ZH — Nós damos valor mesmo que seja um ato isolado. Schilling — Sim, pois é, eu não estou entendendo... ZH — Nós não estamos lhe entrevistando como um deputado ou como um representante de um partido político. Schilling — Eu participei de um debate em que 80% das pessoas concordavam com a minha posição. Se nós chegássemos a uma avaliação, nós vamos ver que Porto Alegre está povoada de 800 mil nazistas, reacionários, burros e ignorantes, o que é um dado absolutamente alarmante sobre a nossa população. Pega os critérios tradicionais de defesa do que eu chamo de talibã estético que nós estamos vivendo. 80% da população de Porto Alegre é isso aí. ZH — Mas me parece que quando lhe chamaram dessa maneira, não era seu gosto que estava em discussão, mas o fato de o senhor pedir que as obras fossem despachadas. Schilling — Não. Não. Não. Não é isso. É sempre a mesma coisa. Mesmo que eu não quisesse tirar, eu te passo "n" críticas onde é sempre a mesma coisa: "o nazista, o nazista, o nazista". É a mesma coisa sempre. É o argumento de praxe. Tu invalida, tu entende? "Isso é coisa do nazismo." Eu estava dizendo: bom, então a campanha antitabagista deve ser suspensa porque foi apoiada por Hitler. Ele não gostava que fumassem. Ele queria desencadear na Alemanha uma campanha antitabagista. ZH — Mas existe uma diferença entre fumar ou não fumar e dizer que obras têm de ser despachadas. Schilling — Não, eu só quero dizer assim... ZH — O senhor disse: "Nós temos sido excessivamente tolerantes". Quando o senhor diz "nós"... Schilling — Os 80%. ZH — A palavra "tolerância" pode ser aplicada à relação entre etnias e nacionalidades. Foi muito usada ao longo do século 20. No que toca à arte, é pouco usada porque em geral artistas e críticos concordam que uma manifestação artística pode ser válida ou não, boa ou ruim, bela ou feia. Mas aquilo que está além da tolerância tem de ser descartado. Também no século 20, o que estava "além da tolerância" foi descartado, e sabemos que isso está sempre associado a experiências bastante ruins na história. Schilling — Sim, sim, sim. ZH — Essa é uma palavra sua. Eu não estou colocando na sua boca. O senhor usou "tolerância". Schilling — Sim, sim. O que eu digo "tolerância" é a ausência de crítica. Então, como não há crítica, tu vais, tu entendes, tu deixas, digamos assim, hoje a arte corresponde ao que o artista acha que é arte, a sua subjetividade. ZH — E não tem de ser assim? Schilling — Bom, agora é assim, mais do que nunca: "Eu decido o que é arte". Tu conheces o caso daquele que vendeu fezes, né? Aliás, só um italiano poderia fazer um negócio desses. O cara vendeu fezes. ZH — Era uma provocação. Schilling — Seja o que for. Andy Warhol pedia que alguns amigos dele urinassem em cima de certas telas que ele deixava no chão. Entende? Esse tipo de coisa. Então, se tu não fazes... Digo "tolerância" no sentido de ausência de crítica. Então de repente tu tens aberrações. É algo assim tipo a criança traquinas: vai fazendo, vai fazendo arte, de repente ela incendeia a casa? Por quê? Porque tu és excessivamente tolerante e conivente. Então talvez se nós exercêssemos sobre a arte conceitual... ZH — O senhor acha que os nossos artistas estão a ponto de incendiar a casa? Schilling — Não, metaforicamente, né? A partir do momento em que você não exerce nenhum tipo de crítica, você abriu a torneira da tolerância por uma série de razões, você termina de certa forma contribuindo para essa situação. De certa forma foi a contribuição que os intelectuais e os críticos fizeram: esse enorme abismo que existe entre as pessoas e a arte hoje em dia. Como é que tu explicas esse fenômeno? Todo mundo é burro, então? Todo mundo é burro? Ninguém entende, todo mundo é burro. Reacionários, canalhas, homossexuais... ZH — É o entendimento que está em jogo? Tem de entender a arte? Será que as pessoas entendem a Mona Lisa, por exemplo? Schilling — Digamos assim, ela não requer a necessidade de um enorme ensaio ou de uma bula. ZH — Mas há enormes ensaios sobre a Mona Lisa. Schilling — Sim, tudo bem, mas isso não é necessário. Não é necessário da parte do espectador que ele se informe de uma enorme literatura para se entusiasmar com a Mona Lisa. ZH — Por que o senhor acha que as grandes obras de arte suscitam permanentemente releituras, se não é necessário? Schilling — Releituras em que sentido? ZH — Releituras, estudos, interpretações. Schilling — Isso mostra a capacidade de transcendência e perenidade da arte. Essa notável capacidade que alguns grandes artistas têm de se perpetuar pelo tempo. Esse é um problema que a arte conceitual abdicou. Quando um Fídias, um Praxíteles esculpia alguma coisa, ou um Leonardo da Vinci, o cara imaginava que isso aí era uma maneira de perpetuar a ele e a sua obra. Hoje em dia não, você faz uma montagem, desmonta, vai embora... ZH — Isso é uma das maneiras de um artista rejeitar o mercado. Era o que estava na pauta dos artistas conceituais: criar uma obra efêmera. Schilling — Ao contrário, ele criou um bem de consumo descartável. ZH — Mas a obra dele não é vendida. Schilling — Bom, isso é um outro problema. Eu acho que se essa obra dele fosse comprada, dificilmente ele rejeitaria um bom par de dólares. Eu não acredito que nenhum artista profissional hoje faça algum tipo de coisa sem querer um dinheiro em troca. Não é possível. ZH — Mas os artistas conceituais que o senhor citou, nos anos 60, queriam fazer isso. Schilling — Bom, tem gente bizarra em todas as áreas. Vocês escrevem no jornal esperando salário. Eu dou minhas aulas esperando salário. E é justo. Agora, o que aconteceu nesse aspecto, voltando à questão da tolerância, foi exatamente a ausência de crítica, tu entende? Então a coisa foi indo, foi indo, e o resultado concreto é que existe um enorme abismo entre o mundo artístico de hoje, especificamente das artes plásticas, e o público em geral. Em qualquer lugar do mundo, não é aqui. ZH — O senhor usou a palavra "tolerância" e agora disse que estava se referindo à crítica. Em vez de "excesso de tolerância", teria havido "ausência de crítica". Me parece que existe uma considerável obra crítica em relação a todos os temas da nossa discussão. A própria estatuária de Porto Alegre tem estudos e livros. O que é preciso fazer, no seu entender, para que essa crítica encontre o seu ponto? Schilling — Vocês supõem a crítica no sentido como a filosofia idealista tentou, no sentido de colaborar, esclarecer. A palavra "crítica" que estou dizendo é em outro sentido. É de denúncia. É uma empulhação, tu tens de denunciar a empulhação. ZH — Tudo é empulhação? Schilling — Não, não, não é isso. Mas tem de denunciar quando é empulhação. ZH — Aquelas obras que o senhor cita são empulhação? Schilling — Eu não sei, eu não estou preocupado com isso. A minha preocupação não é essa. A minha preocupação é de ordem estética. ZH — Mas o senhor acabou de dizer que têm de ser denunciadas. Schilling — Eu não estou dizendo que essas obras são empulhação. Eu não disse isso. São simplesmente cafonas, feias, não correspondem a, digamos assim, ao que eu imagino que seja um lugar gostoso de passar e ver um bom monumento. Necessariamente não precisa ser de beleza, que tenha de ser uma Vênus de Milo, um Apolo, não é isso. Mas que de alguma forma ele tenha uma expressão estética interesssante, aceitável por todos. Ou pelo menos pela maioria. Agora eu volto a te dizer, eu sou cético. Eu acho que nós somos governados por uma tribo esotérica, que domina os jornais, que domina as revistas, que se associa a galerias, que se associa ao marketing, que se associa aos leilões estapafúrdios, e isso aí, e além do mais às coleções dos milionários. Que arte de transgressão é essa em que as principais obras de transgressão são compradas pelos milionários? As pessoas mais conservadoras do Ocidente têm seu dinheiro empregado nisso aí. E obviamente que elas não querem que alguém diga lá: "Olha, o rei está nu. O senhor comprou uma caixa de sabão Omo, não um ready made". Elas não querem saber disso. Agora, volto a insistir nessa questão: como, de que maneira, quais as condições históricas que permitiram que um grupo, essa tribo esotérica domine o universo das artes plásticas, se imponha perante a população e aterrorize a população. As pessoas se sentem aterrorizadas, com medo de comentar qualquer coisa. Elas saem de uma exposição, não gostam e não têm coragem de dizer que não gostam. Lembra um pouco, tu entende, o filme na minha época de geração, a nouvelle vague. A gente ia ao cinema e não entendia. Então tinha em Porto Alegre uns quatro ou cinco especialistas que entendiam o filme. Então aquelas pessoas eram os sacerdotes sibilinos da nossa época. Eles explicavam: "Olha, o (Jean-Luc) Godard quis dizer tal coisa". As pessoas não entendiam e ficavam absolutamente envergonhadas porque não entendiam os filmes. Então tinha que ter um especialista, um crítico de arte, um crítico de cinema que explicava ao vulgo o que aquilo queria dizer. É mais ou menos essa situação que hoje tu encontra nas artes plásticas. ZH — A nouvelle vague era uma empulhação? Schilling — Não, não estou dizendo, estou dizendo que era um tipo de proposta cinematográfica que exigia esse tipo de coisa. Tinha porcaria também. Tinha porcaria. Nem tudo que o Godard fez... Tanto é que se tu contares ao todo tem quatro ou cinco filmes do Godard que são relevantes, e o resto caiu na poeira da história. Quem é que disse que isso que está aqui em Porto Alegre é o supra-sumo, é a maravilha? Por que não se pode aventar a hipótese de que é ruim? Em nenhum momento ninguém pode pensar que a coisa não funcionou, que foi um momento de infelicidade estética da cidade. Por que não pode ser? Por que 800 mil pessoas estão erradas? ZH — Pessoalmente, posso não gostar da escultura do Gustavo Nackle, mas não acho que, por eu não gostar dela, ela tenha que ser despachada para fora da cidade. Ela pode nos dar algum ensinamento. Schilling — Ah, mas tu tens de entender a ironia, a brincadeira, a ironia... ZH — É brincadeira? Schilling — Não, não é... Bom, quem chamou de brincadeira, não sei o quê, foi o... o... ZH — O senhor chamou agora. O senhor disse que era uma brincadeira. Schilling — Eu estou dizendo... É o tom. O tom irônico, né? Tu vês que é o tom irônico. Tu achas que eu vou chefiar brigadas e... ZH — Mas o leitor desta entrevista tem de levar em consideração os termos que o senhor usa. O senhor diz que estamos sendo "aterrorizados". Meu filho de cinco anos foi à Bienal e não voltou — pelo menos perceptivelmente — aterrorizado, voltou falando das coisas que viu lá. Nosso papel nesta entrevista é permitir que o senhor esclareça, detalhe e disseque sua forma de pensar. Qual seria a maneira de essa população — "aterrorizada", para usar sua expressão — lidar com essas obras? Schilling — Em primeiro lugar, não acredito que essa obras vão desaparecer. As circunstâncias históricas em que elas foram gestadas e o apoio que os Estados Unidos dão a isso dificilmente vão fazer com que esse tipo de arte vá desaparecer. Em parte, o que aconteceu é fruto da Guerra Fria. Essa ausência de crítica aconteceu num contexto muito interessante da Guerra Fria. Não é só da Guerra Fria, já era antes, dos anos 30. Os americanos queriam fazer uma confrontação com o que estava acontecendo na Europa, especialmente na União Soviética. Tu observa que o MoMA (Museu de Arte Moderno de Nova York) é inaugurado nos anos 30 exatamente quando Hitler chega ao poder e decreta o fim da arte expressionista na Alemanha. Em 1934, Stalin decreta com seu ministro da Cultura, Zhdanov (Andrei Zhdanov só foi encarregado da política cultural na União Soviética em 1946), o realismo socialista. Essa tolerância que surgiu nos Estados Unidos com a criação artística — faça o que quiser, imagine qualquer tipo de possibilidade criativa — estava estreitamente vinculada ao combate da Guerra Fria — ao nazismo e, depois, ao comunismo. Tanto é que a CIA organizou expedições artísticas ao largo da Europa para exatamente fazerem isso: "Reparem como os artistas americanos têm absoluta liberdade enquanto os soviéticos estão submetidos ao dirigismo, às exigências de um Estado totalitário". Então essa é a origem histórica e sociológica dessa história toda. ZH — O senhor está se referindo ao expressionismo abstrato. Schilling — Isso, e tudo que veio depois. A arte conceitual é derivada do Marcel Duchamp. ZH — Mas o exemplo que o senhor estava dando era claramente o do expressionismo abstrato americano. O crítico era Greenberg, os artistas eram Pollock, De Kooning e outros. Isso faz com que se tenha de rejeitar todos os artistas expressionistas abstratos? Schilling — Não. As qualidades do Pollock são inquestionáveis. Eu nem teria qualificação para desqualificar aquilo que é quase uma unanimidade dentro da arte moderna que é a arte do Pollock. Só estou dizendo de onde vem a tolerância. A tolerância vem exatamente disso: a posição que os Estados Unidos marcaram no sentido de dizer que "a nossa terra é a terra da liberdade, os nossos artistas fazem o que quiserem, não há tipo de censura nenhuma". Esse tipo de arte foi apoiado pelos magnatas americanos. O MoMA foi fundado pela família Rockefeller. Há um claro interesse de que esse tipo de arte corresponda aos anseios de liberdade defendidos pelo Ocidente no seu enfrentamento com o mundo comunista. ZH — Mas, no mundo comunista, os artistas que tentavam fazer alguma coisa parecida estavam a serviço de quem? Foram ferozmente reprimidos e mandados para campos de concentração. Schilling — Não. Não. Não. Não é bem isso. Não digo que eles tenham sido... Até aqueles que pintavam de maneira equivocada no realismo socialista também foram perseguidos. Mas agora tu tens de ver que há uma interpenetração da arte. Agora, por exemplo, há instalações na Rússia... ZH — Mas o senhor atribui a origem desse momento da arte contemporânea a um objetivo político da elite americana. Na União Soviética, o único país comunista nos anos 30, havia artistas em todos os campos que faziam um outro tipo de arte. Maiakovski, que se suicidou em 1930 por razões também estéticas, tinha algum tipo de associação com os magnatas de Nova York? Schilling — Não, não. É que de alguma forma há uma interpenetração. A própria arte dos anos 30 também foi influenciada no Ocidente pelo realismo socialista, em geral com pintores comunistas. Na Alemanha, tu tens a Kathe Köllwitz, uma figura significativa. Os muralistas mexicanos eram todos integrantes de variantes do Partido Comunista. Há uma interpenetração. O que eu quero te dizer é qual pode ser a provável origem dessa excessiva tolerância. Era uma posição claramente ideológica. O nosso artista, nos Estados Unidos, faz o que lhe vem na telha e ninguém tem de se opor. ZH — O senhor não acha isso positivo? Não é positivo que os artistas possam fazer aquilo que lhes dá na telha? Schilling — É. Isso. Agora vem um outro problema... ZH — Hoje, por exemplo, em Cuba, no Vietnã, na Coreia do Norte, na China, entre outros países, os artistas não podem fazer aquilo que lhes dá na telha. Schilling — É. Isso. Bom. Vamos ver agora outra questão. Por que se gerou esse universo enorme de coisas sem sentido? Aí vem um outro problema, que é o descolamento dos artistas daquilo que se chamava grande arte. Se tu olhares ao longo dos 3 ou 4 mil anos da cultura ocidental, o artista exercia o seu metier em função de alguma grandeza. O Partenon, por exemplo, tinha a função de exaltar a cidade e a deusa da cidade. O artista não está criando por si, ele simplesmente está a serviço de uma força maior. E assim você vai ver que os artistas sempre estavam a serviço ou do Estado, ou da Igreja. E depois também a existência de uma nobreza refinada na Europa. Então tu tens realmente uma sustentação. O artista era chamado, o mecenas dizia: "Tu vais fazer isto, isto e isto". Ele usava a criatividade dele em função da visão grandiosa que o mecenas passava para ele. A Eneida do Virgílio foi um projeto feito pelo próprio mecenas, a mando do Augusto: você tem de criar alguma coisa grande do nosso passado romano que não seja "nós, filhos da loba". Por exemplo, Versalhes: é um palácio maravilhoso, uma decoração fantástica. De onde saiu aquilo? Da exigência da monarquia absolutista de Luís XIV. Agora você vê hoje em dia o que está acontecendo. Não existem mais essas forças, foram dissolvidas na era moderna. Não existe mais o Estado absolutista, não existe mais a Igreja com o poder que exerceu na Idade Média, e não existe mais a nobreza, que foi substituída pelo empresariado, pela burguesia, pela classe média. Tu tens hoje o artista isolado — ele, entregue a sua própria subjetividade. Ele já não representa grandeza nenhuma, ele representa apenas a sua subjetividade. ZH — Isso é ruim? Schilling — Não, não estou dizendo que é ruim ou não. Mas o que interessa a subjetividade dessas pessoas? ZH — Não interessa? Schilling — Não. A quem interessa e por que interessa? ZH — E o senhor, o que representa se não a sua subjetividade? Schilling — Olha, de alguma maneira... Tu estás fazendo referência ao meu artigo? ZH — Não, me refiro ao seu papel como intelectual. Schilling — Olha, de alguma maneira, eu, eu, digamos, fui no meu artigo o intérprete dessa insatisfação que existe na nossa cidade. Não sei em outras. Mas aqui, pela repercussão que teve, eu fui intérprete involuntário disso. Então, nesse caso específico, a minha subjetividade se articulou com o mal-estar coletivo das pessoas em relação ao que se passa na nossa cidade especificamente — não estou falando da Bienal — especificamente a estatuária e a escultuária de nossa cidade, especificamente aqueles que foram citados por mim. Só isso. Então eu fui intérprete. Isso pode acontecer. Às vezes você escreve alguma coisa e provoca... ZH — Então a subjetividade de alguém pode interessar aos outros. Schilling — Pode, sim. Pode. Mas isso não é... Agora também é o seguinte: pode não provocar nada. Pode também provocar desinteresse. ZH — Mas pode provocar interesse. Schilling — Pode. Pode. ZH — Quando Rilke escreve, é a subjetividade dele que está em questão. Schilling — Isso. Tudo bem. Tem coisas que tu consegues transformar a tua subjetividade em uma grande arte. Mas isso cabe aos grandes artistas, e não a todos, né? Não são todos os poetas que colocam a sua subjetividade e conseguem a consagração. ZH — Mas o poeta tem o direito de buscar a conexão com o gosto e com o público. Schilling — Não tem dúvida. Não tem dúvida. Ele tem o direito de fazer o que quiser. A priori, todos nós temos o direito de fazermos o que quisermos. Só que eu digo: grande parte dessa subjetividade, na verdade, fracassa. Como grande parte da poesia e da novelística não se sustenta ao longo da história. ZH — Mas o tempo vai selecionando. Schilling — É. Isso mesmo. ZH — Na época de Leonardo e Michelangelo havia outros pintores. Schilling — É. Agora o grande problema... Agora aí vem esse tipo de argumento: sou obrigado, sob o ponto de partida de que eu não estou entendendo as coisas agora, a aceitar tudo que vem porque todos eles se consagrarão. ZH — Há artistas ruins. E há renascentistas ruins. Schilling — Pois é. E por que não se aceita que Porto Alegre tenha cinco ou seis monumentos ruins, feios? Qual é o problema? Por que tem de fazer uma tragédia disso? Tem que doutores escreverem, chamarem de nazista, porque tem cinco ou seis monumentos na cidade que são feios? Porque eu acho aquela casa monstro um pavor? Então pode ter sido a subjetividade daquele artista. Que, para mim, fracassou. Para mim e para muita gente. E para os 800 mil neonazistas que esta cidade abriga. ZH — Para algumas pessoas deu certo. Schilling — Pode ser. Para os 20%. ZH — Zero Hora entrevistou um sargento da Brigada que presta serviço de guarda na entrada do Comando Geral bem em frente a essa obra. Ele fica todos os dias olhando para aquilo, seis horas por dia. Ele gostou da obra e diz que as pessoas que passam por lá param, tiram fotografias, comentam e admiram... Schilling — Tudo bem. Há gosto por bizarrice. As pessoas não vão ver a mulher barbada no circo? Tem tudo, tem de tudo. A bizarrice atrai. Um corpo de um atropelado na rua junta gente para olhar. Põem velinha, põem jornal. É a bizarrice humana. Não tem nada a ver com arte. ZH — Mas a arte sempre namorou o grotesco. Schilling — Sim. E tem coisas do grotesco que são extraordinárias. Esteticamente extremamente relevantes. Não existem, de fato, assim, regras definitivas. Eu posso pintar uma megera e ter um impacto estético extraordinário. Posso pintar uma mulher belíssima e ser um fracasso estético. Mas eu posso pintar até uma cena... Cenas de batalha, por exemplo, as pessoas morrendo. Tem uma tela do Gros famosa, o Napoleão lá em cima, os soldados morrendo. É uma coisa impressionante, os soldados ali, estraçalhados pelas bombas, é uma cena horrível. Mas esteticamente impressionante. Então não é um regra assim tão estreita, que eu só tenha de pintar o belo. Não é bem assim. A coisa é bem mais complicada. Então não significa necessariamente um retorno ao realismo socialista ou coisa desse gênero. Agora, volto a te dizer: acho que enquanto existir essa posição dos Estados Unidos, não haverá alterações, isso aí vai continuar existindo. A força da tribo esotérica é poderosíssima. Ela se encontra na imprensa, na mídia, nas galerias. É formada pelos grandes bancos, pelas grandes fortunas, pelos grandes colecionadores. Só havendo um outro momento histórico, daqui a cem, 150 anos, aí talvez mude. Não sei para que lado. Como tudo muda, né? Mas no momento não há a mínima perspectiva de que possa haver alguma alteração. Quando fizermos de novo outra Bienal aqui ou a de São Paulo, vai ser a mesma coisa: a estética do vazio, mesma coisa. Porque a situação histórica não se alterou. Os Estados Unidos continuam como potência dominante. O individualismo é extremamente enfatizado pelo neoliberalismo. Essas coisas vão continuar existindo. Não vai desaparecer. Vai continuar. Não tem a mínima possibilidade de surgir um regime tirânico, que vai impor censura. Nada disso assinala no horizonte. É uma onda que começou especialmente na II Guerra Mundial e vai indo, vai se espalhando, até haver alguma reação. Não sei que tipo de reação futura. Provavelmente nem vai ter mais pintores nem escultores, porque não precisa mais. Por outro lado há de fato, sim, um certo lamento da minha parte. ZH — E uma nostalgia, não? Schilling — No seguinte sentido: o enorme acervo técnico de qualificação de pintores e escultores vai ser posto fora. Há quantos mil anos o Ocidente começou a fazer escultura? Tudo isso está se perdendo. Um sujeito escreveu para nós assim: "Olha, eu recebi encomenda de fazer cinco caixotes de madeira. Depois eu soube com surpresa que estavam ali empilhados no Cais do Porto como obra de arte". Esses ambientes artísticos estão sendo substituídos por marceneiros, por pedreiros. Não por artistas. Há uma nostalgia? Há, sim.ZERO HORA
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Comentários
Robertson Frizero -
Denuncie este comentário08/12/2009 09:58
Os entrevistadores nitidamente são contrários a Voltaire Schilling, e ler a entrevista na íntegra me faz pensar que o historiador não foi entrevistado, mas interrogado. No final, ficou-me a impressão de que os entrevistadores foram à casa de Schilling para se vingar, para tirar a desforra em nome de seus amigos da arte contemporânea contra o articulista que ousou falar mal da Bienal do Mercosul e de empulhações afins. A questão é saber se a população concorda com a dinheirama pública gasta ali.
Giovani Andreoli - Há momentos da entrevista onde se percebe claramente a hesitação de Schiling. Isso, ao meu ver, denota duas coisas: primeiro, que ele não estava preparado para um embate teórico neste assunto, e sim apenas expressando uma opinião muito pessoal, levando-o a assumir uma postura defensiva, por vezes confusa; segundo, que o entrevistador assumiu uma postura não de "eficiência", e sim de aberta agressão, recorrendo às vezes a argumentos (disfarçados de perguntas capiciosas) lineares, tautológicos.


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