quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A politecnia como poção mágica

Gosto muito do José Clóvis. Sua história está inscrita na DS: como na história de Asterix, que habita o último reduto não ocupado pelos romanos na Gália, José Clovis habita o último reduto petista não entregue ao jogo da política tradicional. Para resisitr aos romanos, na estória de Goscinny e Uderzo, os aldeões contavam com uma poção mágica preparada pelo druida Panoramix. Só Obelix não precisa da poção, já que caiu no caldeirão dela quando era criança. A poção mágica de José Clóvis se chama politecnia. A proposta de Ensino Médio Politécnico é, na realidade, o sonho de todo militante de esquerda: ela é o outro nome da educação socialista, educação crítica do sistema capitalista inspirada nos estudos de Marx, Engels e Lênin incorporados ao pensamento educacional brasileiro de esquerda através do GT Trabalho e Educação da ANPEd e o termo dominante do pensamento dos educadores de esquerda durante a década de 90.



Precisamos de uma educação de esquerda? É claro que sim, urgentemente.  A proposta de José Clóvis é boa, mas ainda tem a avançar neste sentido. Primeiro, a SEC precisa  mostrar capacidade de organização dos debates; segundo, precisa manter a posição de abertura porque é uma construção coletiva e terceiro, precisa enfrentar a contradição de base do projeto: como efetivar uma proposta educacional socialista no interior do capitalismo? Socialista, a grosso modo,  porque a proposta quer “desenvolver consciências criticas capazes de compreender a nova realidade” ao mesmo  tempo que quer “atender as demandas do mundo do trabalho para a educação” e, e.... o que mais mesmo? E aí que mostra sua fragilidade. Ela coloca a educação “no espaço de lutas sociais pela emancipação do ser humano “(p.18), mas como fazer isso no interior do capitalismo, justamente o regime onde a educação é vista como um “custo morto” (Kurz)  e onde quanto maior a oferta de mão de obra-qualificada, maior a desvalorização da força de trabalho?



A questão é fornecer ao aluno os instrumentos que  o permitam construir coletivamente um projeto de mudança social – e é isso, justamente, o que não está em questão, já que a proposta prevê no Anexo 3 que a implantação de novos cursos atenderá os critérios dos Arranjos Produtivos Locais (APL), numa palavra, as empresas das regiões. Quer dizer, a proposta de politecnia é um avanço frente ao taylorismo, mas é um avanço relativo, já que subentende que o monopólio do poder sobre as condições de trabalho permanece com o Capital. Para ser uma proposta radical, desejo que bate oculto no coração da DS, seu foco deve voltar-se  não para o imediatismo do mercado de trabalho, mas para o desenvolvimento das potencialidades libertárias pelo trabalho contra a exploração do capital.



Isso não significa negar a possibilidade da educação socialista ou da proposta apresentada, ao contrário. Acontece com a proposta da SEC algo semelhante à publicidade: uma parte da proposta atinge o alvo, mas não se sabe qual é. A politecnia pode ser uma boa poção mágica, mas ela só funcionará se for como a poção de Asterix, radical na sua forma e capaz de transformar os alunos em seres indestrutíveis frente às forças do Capital. Aliás, melhor seria se os alunos caíssem de inteiro no caldeirão de suas idéias. Mas isto é outra historia.

Publicado em Zero Hora em 30/11/2011.


quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Por que defendo Raul Pont




A disputa interna entre as correntes do PT para a indicação do seu candidato a Prefeitura esquece o que deveria ser o centro do debate: quem reúne as condições para fazer um bom governo. Para mim, Raul Pont deveria ser o candidato natural, mas não é. A candidatura de Adão Villaverde tem um olhar voltado para as classes médias e os grupos que lhe dão suporte estão de olho nas questões conjunturais do cálculo do voto. Esquecem que Raul Pont possui uma experiência muito maior no interior do Poder Executivo, primeiro como vice-Prefeito, e depois como Prefeito, do que Adão Villaverde e sua indicação só acontece porque o PT mudou de estratégia para a conquista do poder - menos ideologia, mais centrismo – resultando em governos mais marcados pelo continuísmo do que pela ideologia.

A definição do candidato petista não deveria ser assim, ao contrário, deveria estar baseada naqueles candidatos que mais realizações efetivas fizeram enquanto prefeitos e que mais encarnam a ideologia do partido. Quer dizer, o PT ao invés de basear seu cálculo do voto na análise de conjuntura, deveria investir no velho e bom voto retrospectivo e ideológico, levando em conta o julgamento do melhor candidato em função de seu desempenho na administração. Não é o que está ocorrendo quando vemos as tendências do PT preocupadas no alinhamento do candidato com o poder estadual e federal e as correntes, alinhando-se a um e outro em função de seu proprio interesse. Perde a cidade a oportunidade de ver um debate de idéias e anuncia-se um debate “morno” do tipo “fica o que está bom, muda o que não está” que caracterizou a campanha de 2004.

As tendências do PT esquecem que Porto Alegre, junto com São Paulo, Belo Horizonte e Florianópolis, é uma capital na qual o eleitor conhece distinções substantivas entre direita e esquerda. A capital foi administrada pelo PT por dezesseis anos, inclusive por Raul Pont, e isto não pode ser deixado de lado na escolha do candidato a prefeito pelo partido. A avaliação retrospectiva foi um fator decisivo em várias cidades, como Fortaleza, onde o eleitor levou mais em conta o passado dos candidatos na administração. Diz Antonio Lavareda e Helcimara Telles “Deste modo, além do voto ideológico, encontrado em outras cidades, observa-se também um comportamento mais pragmático, baseado no exame da gestão”(Como o Eleitor Escolhe seu Prefeito, FGV, 2011).

Se Adão Villaverde for o candidato, teremos uma campanha “paz e amor”. Prefiro Raul Pont, do bom e velho PT, com uma trajetória mais sólida e discurso de oposição forte. O PT em seu passado recente, aproximou-se demasiadamente do centro do espectro político e isto levou ao fim de sua ideologia. Agora, ao verem-se aproximarem-se as eleições municipais, é hora de dizer: “PT, volte a ser esquerda radical!. Você se divertiu agindo como centro, mas agora está perdoado por isto – está na hora de levar os ideais de esquerda a sério outra vez!”.

sábado, 12 de novembro de 2011

Por trás da polêmica do IDEB






A ideia de Gustavo Ioschpe de tornar obrigatório afixar no portão de entrada das escolas os resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, o IDEB, tornou-se perigosa porque foi encampada por três projetos de lei apresentados na Câmara dos Deputados. O próprio MEC alertou no início da tramitação que tais projetos eram constrangedores para as escolas, e é consenso entre os órgãos de classe, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), que há inúmeros problemas nas escolas brasileiras que independem do esforço dos professores e que afetam o processo de ensino – como as condições das instalações, a falta de energia elétrica e água em escolas rurais, etc. A conclusão é que a proposta do economista cobra dos profissionais de ensino o que deve ser responsabilidade do Estado, estabelece uma competição desnecessária entre as instituições educacionais, aumenta o estresse profissional de professores e reduz a autoestima de alunos. Se a proposta vencer, será praticada uma violência simbólica contra a escola: ela será jogada, de uma vez por todas, ao sabor da ideologia pura de mercado, ao ser submetida ao princípio da competição, cujo efeito é reduzir a autonomia escolar, substituir a defesa do desenvolvimento integral do aluno pela busca de indicadores baseados em dados quantitativos – e não qualitativos – e na gestão de recursos financeiros.




O que está por trás dessa discussão? O pressuposto de Ioschpe é que teorias e métodos econômicos podem ser aplicados à educação. É o que faz em sua obra “A ignorância custa um mundo” (ed. Francis, 2004), na qual defende a analogia entre produtividade física do capital e educação. Defende, entre outras ideias, que “basta imaginar que a escola é uma instituição especializada na produção de treinamento” (p.33) e que “os princípios da economia também se aplicam ao 'mercado' da educação” (p.152). Mais grave, o autor propõe uma reforma do ensino brasileiro baseada, entre outras coisas, no “fim da gratuidade do ensino público universitário” (p.231, grifo meu) e no ”fim do desconto no IR para gastos com educação” (p.243). Para mim, a “economia da educação” de Ioschpe é o mais puro pensamento de direita, na qual a economia, a defesa de índices, o mercado e o liberalismo são o remédio pronto para a solução de todos os males da educação. É nela que se fundamenta a defesa da afixação do IDEB nas fachadas das escolas. Em “Rumo ao Abismo” (Bertrand Brasil, 2011), Edgar Morin mostra o quanto esse paradigma é equivocado quando se trata da educação. Para Morin, "a ciência econômica, ao mesmo tempo em que é a ciência social matematicamente mais avançada, é a ciência social humanamente mais retrógrada”, pois “se abstraiu das condições sociais, históricas, políticas, psicológicas, ecológicas, inseparáveis das atividades econômicas” (Morin, p.48). A afixação do índice do IDEB na fachada das escolas é o simulacro perverso e deformador desse universo econômico. O indicador aliena porque compartimentaliza, separa e isola aquilo que os educadores veem de forma interdependente: as condições de produção do trabalho escolar. Sua falsa racionalidade baseia-se num mecanismo ideológico elementar: a tentação do sentido. Diante dos terríveis problemas educacionais que vivemos hoje, a valorização de indicadores surge como portador de sentido, mas esconde por trás uma perversa lógica econômica baseada na defesa da competição. A ilusão vendida por Ioschpe é que, se indicadores servem para economistas, devem servir para os profissionais do ensino. Nada mais perverso, porque o que ele não diz é que a economia capitalista não é um mundo equilibrado, ao contrário, é um mundo repleto de catástrofes no qual os problemas da educação são justamente um de seus produtos.




Sua posição não poderia ser diferente: está inscrita em seu DNA. Filho de conhecido empresário, é acionista da Ioschpe-Maxiom, companhia fundada em 1918 que se expandiu do ramo madeireiro para o setor financeiro e industrial, chegando a lucros de 58,597 milhões no terceiro trimestre de 2010. Quer dizer, faz parte do habitus (Pierre Bourdieu) dele a incorporação em seu modo de agir, sentir e pensar do modo de ser de sua classe social, a classe dominante. Procurei em vão na internet informações sobre sua experiência como professor de escola pública e não encontrei nada – repito nada! - que o qualifique como tal. A pergunta que não quer calar é: como pode alguém que não teve a experiência de sala de aula dizer que é melhor para os professores que o IDEB seja afixado na fachada de sua escola? Mais: como pode sugerir que instrumentos da economia sejam orientadores para a educação? A minha resposta é: não pode. É necessária a experiência de professor para sugerir caminhos para a educação, e a "economia da educação" nada mais é do que ópio para as massas, e a defesa de indicadores, mitificação ideológica . É como se dissesse: “educador, não te metas com a verdade dos índices porque eles são a nossa verdadeira natureza”. No universo de Ioschpe não existem nem pessoas nem contradições, apenas fórmulas matemáticas: “[...] minhas pesquisas e conclusões são respaldadas por números e estatísticas” (A Ignorância... p.14). Diz o filósofo Slavoj Zizek: “O difícil é encontrar poesia e espiritualidade nessa dimensão”.






Ora, além de ser moralmente errado aplicarem-se conceitos de investimento e capital às pessoas, há o risco de indicadores como o IDEB serem utilizados de forma inadequada nas decisões de políticas educacionais. Se os governos levarem em consideração somente os valores apontados no índice, as contribuições e as análises culturais da educação não serão consideradas. Isso é terrível. A educação tem um papel econômico, é claro, mas não a ponto de perdemos as referências às questões sociais de base que tratam, justamente, da crítica às condições de reprodução da escola no interior do capitalismo. Ioschpe defende a ideia de afixar o índice do IDEB na fachada das escolas como seu gesto de amor para defender a educação, mas seu verdadeiro amor é o Capital e seu pensamento, ideologia a serviço da servidão.




Publicado no Jornal da Universidade (UFRGS
), outubro de 2011

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Menos iPod, mais miojo





Sou pré-histórico. Não tenho iPhone, iPad e nem iPod. Meu celular tem inúmeras funções graças a Steve Jobs, mas só uso uma ou duas. E quanto a tela touch screen, alguém pode me explicar porque os nomes da agenda deslizam tão rápido que mal consigo selecioná-los?





Desculpe, estou ficando velho e as rabugices marxistas vem à tona. Não entendo porque tanta idolatria com os feitos de Jobs. Quem disse que suas invenções fizeram avançar a humanidade? Seus aparelhos são o tormento de inúmeros professores: os alunos perdem a concentração da sala de aula porque estão ouvindo seu iPod; você não consegue falar com uma pessoa porque ela está no seu iPhone - “só um instante, só um instante!” - e não abro mão da experiência táctil que um livro possibilita – vade retro iPad!





A celebração dos feitos de Jobs oculta o fato de que todo avanço tecnológico cobra um preço. A invenção do avião foi também a do desastre aéreo; a do navio, o naufrágio e a do trem, o descarrilhamento. Toda a invenção cria o seu acidente, diz Paul Virilio. O avanço digital também tem o seu: torna nossa sociedade mais individualista e compulsiva. Pessoas caminham como zumbis nos parques alheios a beleza natural e a caminhada a dois passa a ser uma caminhada individual; ficam obcecados com a telinha do computador e não desviam o olhar sequer quando você lhes dirige a palavra e a leitura de textos em um iPad só faz as pessoas terem menos paciência para lerem textos longos. Como repetem os adoradores das criações de Jobs, tudo ficou mais fácil com ele, é verdade – outra forma de dizer que seu sucesso se deve ao fato de reconhecer que somos todos estúpidos. “É fácil de usar? Então estou dentro”.A questão é que as criações de Jobs não são instrumentos passivos de informação “Eles fornecem o conteúdo de nossos pensamentos, mas também modelam o processo de pensamento”, diz Nicholas Carr. Isto que dizer que devemos parar de usá-los? É claro que não! só que devemos ser mais críticos quanto ao condicionamento que provoca ao nos possibilitar receber informação de forma rápida e superficial.





Confesso que fiquei mais triste quando morreu em 2007 Momofuku Ando. O inventor do macarrão instantâneo e fundador da Nissin Foods Products morreu aos 96 anos de ataque cardíaco. Ando teve a idéia de criar o macarrão instantâneo depois da 2ª Guerra Mundial quando via as pessoas passando inúmeras horas na fila para comprar alimentos no mercado negro devido ao racionamento. Qual foi a invenção mais importante para a humanidade, a do miojo – nenhuma unanimidade, dirão os nutricionistas – que mata a fome e socializa ou a do iPod que aliena e individualiza?





Alto lá.! É claro que Jobs tem imenso valor, mas não por suas invenções, mercadorias que o Capitalismo adora, mas pela simplicidade das idéias que expressou no famoso discurso de Stanford ”você tem de encontrar o que você ama”. Sorte de Jobs que encontrou algo que também o deixou rico.


Publicado em Zero Hora em 10/10/2011


sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Os eleitos, as eleitas

A realização pela Câmara Municipal de Porto Alegre do Seminário Internacional “As Eleitas, Os Eleitos: como parlamentares tornam-se parlamentares” é uma resposta àqueles que defendem o fim do legislativo junto à crítica do reajuste dos vencimentos dos parlamentares. Você pode concordar ou não com a idéia de reajuste, mas daí passar a acreditar na inutilidade da política e dos representantes locais é um perigo para a democracia. Todos os painelistas foram unânimes em valorizar a importância da boa política, da necessidade de formar novos bons políticos – vá-la, vá-la, sociedade e estado ainda não chegaram a um consenso quanto ao seu salário, ok, ok – mas não se pode por esta razão perder a fé nas instituições públicas da democracia.

Toda a programação do Seminário Internacional fez jus ao que se espera que um grande parlamento faça: debater exaustivamente e em alto nível sua função na sociedade, aproximar a pesquisa universitária dos agentes públicos, promover um diálogo entre agentes sociais e principalmente, reforçar na comunidade a ideia de que a democracia local precisa ser fortalecida pelo cidadão. Precisamos que os parlamentos locais lutem por uma sociedade melhor e os pesquisadores apontaram elementos para a sua defesa: o fato de que os vereadores, após a Constituição de 1988, tornaram-se um elo forte na constituição de políticas públicas nos municípios; o fato de que 93% dos quase 50 mil parlamentos estão localizados em pequenas cidades; o fato de que o militantismo, ou seja, a forma como as pessoas se engajam nas agremiações partidárias, é questão central para o fortalecimento da política local. O que não significa que não tenhamos problemas a resolver: o fato de que somente uma minoria (7%) das cidades tem parlamentos com visibilidade e acesso à imprensa; o fato de que 38% das mulheres sofrem resistência da família, sendo 22% dos cônjuges, para entrar na política, são alguns exemplos dos desafios que as Câmaras Municipais ainda tem de enfrentar.

Enquanto isso, parcela da sociedade ainda ignora o que fazem seus vereadores. Mais, desconhece o esforço daqueles que tem sua agenda dedicada a melhorar a cidade. Devemos separar o bom do mal político, é claro, mas devemos reconhecer o valor da boa política para o desenvolvimento da cidade. Às vésperas de mais um pleito eleitoral e no momento em que se tecem as articulações para as eleições de prefeitos e vereadores, sejam quem forem “Os Eleitos” ou “As Eleitas” a quem entregaremos nosso voto nas próximas eleições, o que está em jogo é o valor que damos a idéia de representação, a boa escolha eleitoral e às instituções da sociedade democrática.
.

A sinuca da educação

"A verdadeira utopia é a crença em que o sistema global existente pode se reproduzir indefinidamente. A única maneira de ser verdadeiramente realista é imaginar o que, dentro das coordenadas desse sistema, só pode parecer impossível." Slavoj Zizek

O snooker é um jogo de mesa, tacos e bolas surgido na Grã-Bretanha em 1875 e que recebeu no Brasil o nome popular de sinuca. Praticado por milhares de pessoas, com adaptações oriundas dos jogos americanos, um de seus movimentos é denominado bricol, que consiste em lançar a bola branca para que toque uma tabela antes de tocar a primeira bola objetivo. A bola branca repica e atinge outro alvo.

Algo semelhante ocorre quando Gustavo Ioschpe publica em Veja o artigo “Você acha que as escolas particulares brasileiras são boas?”. Depois de criticar o sistema público, Ioschpe volta -se contra o sistema privado, que na sua opinião, é no mínimo sofrível. E critica a satisfação dos pais que tem seus filhos nas escolas privadas, que sofreriam daquilo que os alemães chamam de Schadenfreude “a satisfação diante da desgraça alheia”.

O bricol praticado por Ioschpe é simples: ele mira nas escolas privadas para atingir as escolas públicas. Seu artigo contém uma mensagem perversa: privatizem a escola pública! Ela está inscrita na comparação com o sistema chileno, que privatizou grande parte de sua educação básica quando então começou a selecionar os melhores “Se a escola atrair os melhores, provavelmente será a melhor”, diz. Ioschpe acerta na defesa da participação dos pais na educação dos filhos mas erra ao defender a ideologia liberal da pior espécie: a defesa da concorrência, da hegemonia da educação para o trabalho e da culpa dos professores pelas fraquezas do sistema de ensino. A escola privada brasileira é ruim porque a pública é muito pior, conclui.

Eu teria muito a dizer porque discordo de sua posição mas Zero Hora fez isso por mim na reportagem da última segunda-feira. Com um título que sugeria o pior “Estado cai no ranking do Enem”, a matéria mostrou que o Rio Grande do Sul perdeu a supremacia no ranking do Exame Nacional do Ensino Médio sim, mas, observando com atenção comparativamente os dados das vinte melhores escolas públicas do Estado com as respectivas vinte melhores privadas da capital, a surpresa. Primeiro, a média do estado avançou 6 pontos percentuais para mais; segundo, as três primeiras escolas públicas do Estado - o Colégio Militar de Porto Alegre,o Colégio Politécnico de Santa Maria e o Colégio Tiradentes - ficaram respectivamente com 693,69, 693,43 e 665,93, valores superiores aos das duas primeiras escolas privadas do Estado - o Colégio Leonardo da Vinci – Alfa e o Colégio Marista Nossa Senhora do Rosário - que ficaram respectivamente com 661,68 e 647,43 pontos e portanto, foram superadas pelas escolas públicas. Onde estão as piores escolas públicas apontadas por Ioschpe?

Temos que melhorar a educação? É claro que sim. Há muitas escolas públicas com problemas? Evidente, mas não melhoramos a educação pública desvalorizando o esforço dos professores e dos sistemas que funcionam em nome da privatização, mas exatamente com pregam os “radicais de esquerda”, através de um engajamento sociopolítico concreto de todos em defesa de uma educação libertária crítica a raiz do sistema capitalista. Como em uma parede de Paris em 68 “sejamos realistas: exijamos o impossível!”

Não é a vida da gente









Se você acha que critica sociológica de novela não serve para nada, pare agora de ler este artigo. Vou avisar mais uma vez: se você acha que tudo pode em termos de “licença poética”, pare agora de ler. Eu avisei.
A estréia de A vida da gente é destas pérolas da indústria cultural brasileira: não há dúvida da qualidade da sua produção e do trabalho de atores e diretores, mas quando o negócio é fazer um retrato da realidade, quanta diferença!
Vejamos: o par romântico mergulha em pleno inverno numa das lagoas no frio da serra gaúcha; a mocinha põe na bagagem um biquini entre as roupas para a ir a serra (!)e um ônibus antigo que você nunca viu na rodoviaria faz a ligação de Porto Alegre à região em instantes e voilá, eis a vida da gente como ela é!
Verdade seja dita: Jaime Monjardin é um cara honesto! Ele disse com todas as letras no Jornal do Almoço (26/9): “Não esperem continuidade na novela”, querendo dizer com isso que a nossa geografia será submetida aos critérios da chamada “licença poética”.
Licença poética uma ova! Essa é a forma reiterada de massificação de nossa cultura. A conquista da hegemonia na televisão tem um preço: a homogeneização da cultura, a padronização dos signos na televisão que não poupa ninguém. Há algo errado neste mundo onde tudo é sempre igual e onde sempre lhe dão mais do mesmo. Ele parece a realidade, mas não é: as cenas devem-se passar nas ruas chiques de Porto Alegre, ou nas paisagens paradisíacas da serra, pois para os roteiristas e produtores é o que o público quer ver, a nossa vida. Não, não é a nossa vida, é uma reconstrução inviesada dela.
No fundo, no fundo não é a nossa vida porque é a vida carioca que mais uma vez os roteiristas e autores querem retratar, com fachada gaúcha como pano de fundo. E dá-lhe um dia a dia sem expressões idiomáticas, com geografia que não corresponde ao real, com hábitos deslocados da terra apresentados como se fossem dela. A versão gaúcha proposta pela Globo é semelhante ao café descafeinado de que fala Slavoj Zizek: a imagem vendida não quer ofender ninguém e pede até que nem nos comprometamos com ela. Tudo é permitido a nós consumidores e podemos desfrutar de todas as belas imagens da serra gaúcha desde que desprovidas de toda a sua substância.
É a caracteristica da produção de mercadorias do capitalismo em que vivemos. Hoje, tudo o que nos cerca deve conter em si o remédio para os males que causa, diz Zizek. Você pode beber todo o café que quiser, já que ele é descafeinado, expressão de nosso panorama ideológico atual. Neste sistema você pode desfrutar das coisas desde que sem a sua essência e voilá ei-nos diante da serra gaúcha no inverno sem frio, mergulhando nus em lagos gelados com biquíni na bagagem para consumo em rede nacional. Nessa novela na serra ninguém treme do frio? Cadê o frio? É como o carro que você não precisa mais dirigir, e que numa tacada, tira todo o prazer que a direção provoca. Monjardin, menos....aqui nos comprometemos com a realidade sim: frio já!.Cadê o inverno gaúcho? Como diria Robin “santa enganação Batman!”