domingo, 22 de novembro de 2009

Zero Hora e o lumpenparlamento




Matéria de Zero Hora deste domingo (22/11) levanta o ranking dos gastos das Câmaras Municipais. A intenção é clara, mais uma vez é desacreditar o poder legislativo municipal em meio a reforma sobre o número de vereadores.Para imprensa o legislativo é a Geni, e as pedras são a forma de apresentação dos dados: dos 485 municipios apontados, 4 são selecionados, mas é 2 que chamam a atenção. A idéia dos articulistas é que os 2 são o melhor exemplo do mal uso das verbas de QUASE TODAS as Câmaras Municipais.Essa generalização é perigosa. Não interessa se Constantina bateu o record do pouco uso da verba pública - custou 2,53 por habitante ou que a Câmara Municipal de Porto Alegre seja econômica. Interessa é sugerir subliminarmente que as Câmaras regra geral gastam mal, muito mal.Não há uma critica direta à Porto Alegre, preservada com o gasto de 55, 7 por habitante, a frente de Pinhal, com 55,06 e atrás de Minas do Leão , com 55,76, ocupando a posição 226 no ranking. Estamos bem, pensamos. Ledo engano.

Não devemos descansar frente as consequências que tais reportagens trazem para o parlamento como um todo. Trata-se, na realidade, da legitimação de uma lógica da ordem da narrativa jornalistica que tem como base a indução: ela é simplificadora da realidade política local, porque induz a pensar o todo pela parte. Se há Câmaras Municipais que gastam mal, é porque TODAS são assim. Pois não são os gastos reduzidos que chamam a atenção do público, mas os exorbitantes. Esta operação reproduz com maestria a lógica neoliberal que supostamente deseja combater: ela sugere que Câmaras com menores custos seriam a defesa do contribuinte, ao contrário das que gastam mais. Esquece que a defesa do contribuinte se faz com uma Câmara capaz de cumprir sua função. E isso tem um custo.


É sabido que toda vez que buscamos reduzir custos, reduzimos a qualidade. Como isso fica quando falamos de Parlamento?A questão não é se o parlamento gasta muito ou pouco, mas quais os critérios que adotamos para qualificar o custo de um parlamento.Bom parlamento é o que gasta pouco? É claro que não!. Esse é o argumento daqueles que lutam pelo lumpenparlamento, que a semelhança do lumpenproletariado, designação marxista para nomear a populaçaõ abaixo do proletariado, serve para designar o parlamento reduzido ao seu grau de extrema pobreza, como se esta fosse a instituição a altura dos seus cidadãos. É o gasto per capita o principal indicador de produtividade para um legislativo? É claro que não!


Uma avaliação criteriosa envolve aspectos quantitativos e qualitativos. A preferência do critério per capita é o trabalho do preguiçoso: são menos exigentes, dispensam analises qualitativas, independem da forma como foram obtidos os dados, exigem - daí a preguiça - menor número de calculos, leva o pesquisador a dizer mais ou menos em relação a um dado, sem possibilitar mencionar diferenças. É um verdadeiro disperdício de informação, que limita fazer correlações, e portanto, de restrita aplicação a realidades complexas. Numa palavra simulam cientificidade a uma realidade que exige mais recursos de análise. Mesmo que o critério fosse defensável, o Rio Grande do Sul ainda está abaixo da média do Brasil, (60,75 contra 64,57), e o da Câmara Municipal abaixo de ambos (55,70). Mas a questão é justamente aceitar tal critério como verdade.

Toda a matéria passa ao largo da análise detida do problema que é o modo de financiamento do parlamento. Mas eles passam não pela apresentação superficial de dados que reforça o senso comum do legislativo, mas da apresentação de seus problemas de raiz. O problema central do financiamento está na pouca participação dos próprios municipios na sua despesa, que levaria a uma maior expansão dos gastos e a uma menor responsabilidade fiscal. Esse argumento constata uma tendência, não uma regra. A Câmara de Porto Alegre, por exemplo, rigorosamente está longe de ser uma Câmara perdulária.



Esse argumento esquece três coisas principais. O primeiro é a necessidade de adotar uma visão de futuro, a necessidade de incentivar o eleitor a conhecer mais da logica de funcionamento dos recursos que seu municipio recebe. É isso que abrirá espaço para que os gestores locais deixem de se apropriar das verbas recebidas por transferências externas. Não é que os recursos não devam ir para os municipios, é os municipes que precisam exercer seu papel fiscalizador dos recursos públicos.

O segundo é a necessidade de conscientizar o eleitor que o dinheiro que as Câmaras Municipais não vem de fora somente: vem de impostos arrecadados no municipio em vários níveis e que respondem por importante parcela tributária em também outros níveis. As Cãmaras, ao final, não gastam dinheiro do governo federal, mas recursos produtos de transferências sem as quais os municipios não sobreviveriam.

O terceiro é que o eleitor deve saber recompensar não o politico econômico, mas o que faz mais com menos. Investimentos são necessários, inclusive numa Cãmara Municipal, para garantir a participação. Como atingir a modernidade legislativa sem uma cautelosa politica de investimentos? Ao contrário, o desejo secreto desta imprensa que ataca o parlamento é pela construção de um lumpemparlamento que não é o parlamento ideal para a comunidade, já que não conta com funcionários que precisa para atender a população, com os espaços onde a discussão democrática possa se efetivar e nem infraestrutura para garantir a função de fiscalização dos orgão públicos. Não queremos Câmaras em posição de miséria. Cada cidade deve ter seu parlamento a altura, o problema é que a imprensa, sob a desculpa de reduzir custos, termina por defender a idéia de lumpenparlamento que é, na prática, o empobrecimento da função legislativa.

A matéria deveria ter tocado no centro do problema, dai sua ideologia. E o centro do problema é o fato de que por um lado, há municípios que são privilegiados pelos critérios de transferências de receitas, via Fundo de Participação dos Municípios, como os municípios que tem menos de 10 ml habitantes, enquanto que outros são beneficiados pelos critérios de transferências de receitas via ICMs, que favorece aqueles municipios que tem atividades geradoras de elevadas receitas daquele imposto. Ora, se a preocupação é realmente com a expansão dos gastos da função legislativa, esta preocupação para ser legitima deveria ser vista em sua totalidade, e os jornalistas de plantão deveriam refletir sobre os gastos gerais da administração, e não apenas dos gastos do poder legislativo, sob a pena de transformar o parlamento em bode espiatório da história.

Mas vejamos mais. A matéria por sí só é um atentado a autonomia financeira do legislativo. Os depoimentos colhidos mostram legisladores acuados por um imprensa e tendo que justificar seus gastos com modernização administrativa. Ela esquece que modernizaçaõ legislativa é um bem e que a Constituição protege o Legislativo do corte de despesas do Executivo como modo de evitar que este reduza a capacidade de fiscalização de seus atos. Lembrem-se, interessa ao Executivo um Legislativo enfraquecido e a melhor forma de faze-lo, é sempre tolhendo seus recursos materiais.
Talvez o que falte a matéria seja comparar os dados dos municípios em momentos distintos do tempo em não em relação a gasto per capita para avaliar se as despesas aumentaram ou declinaram. Por outro lado, é preciso verificar de que despesas se tratam. Por exemplo, é verdade que as Câmaras necessitam de uma despesa fixa para existirem: numero de funcionários, instalações para tarefas rotineiras aumentam pouco se a população de uma cidade não aumenta. Mas também é verdade o contrário, a evolução da cidade também conta para as despesas, e aí, como no caso de Porto Alegre, com amplo crescimento, é exigido um amplo investimento em pessoal, com concursos públicos, o que não tem acontecido. O resultado é funcionários estressados frente a uma demanda que não cessa de crescer. Escrevi sobre isso em post anterior. Deixar de fazer concursos para agradar a opinião pública é produzir um desserviço a comunidade, é prestar serviços precários.




Por outro lado, outros parlamentos que tem estrutura fixa precária precisam investir para adequar-se, modernizar-se. A Câmara não deve ser maior ou menor, deve ser na medida para sua cidade. Ainda temos dificuldades de fazer esta conta, mas ela precisa ser feita. Por estas razões, a matéria induz a uma visão errônea do parlamento. Ela sugere que parlamento melhor é o que menos gasta, esquecendo que a qualidade de serviço nem sempre esta diretamente ligada a economia de finanças; induz a ideia de lumpemparlamento, de que parlamento o bom é parlamento pobre, não econômico, mas miserável, retorno à Câmara do Brasil colonial, funcionando em casas cedidas, com vereadores sem remuneração e sem funcionários. Que tenhamos ultrapassado tudo isso foi uma conquista da democracia, retornar a isso é um atraso.


Mas há mais. A matéria oculta as discussões de fundo do financiamento das instituiçoes públicas, qual seja, o modo de distribuição de recursos dos impostos. O Legislativo não existe em separado do Executivo, e o peso da distribuição de ambos os recursos entre tais orgãos deve também entrar no balanço dos gastos. Finalmente, seus reais objetivos, se a matéria desejasse avaliar apenas os gastos, deveria avalia-los no tempo, e não em relação a per capita, para saber se aumentaram, estacionaram ou diminuiram, porque não é o gasto atual que conta para saber se uma câmara gasta muito, mas qual foi sua tendência num determinado periodo.

"Dinheiro que vem de fora" incentiva gastos sim, mas cuidado com esta Lei criada pelos cães que ladram para o parlamento. Deixar de analisar cada caso é um crime. Deixar de analisar tendências é uma estratégia.Deixar de buscar os problemas de fundo é a melhor forma de estereotipar. O problema é se estamos fortalecendo os cidadãos para o exercício do seu controle sobre os gastos do legislativo e executivo, ou se ao contrário, estamos desmontando o parlamento para colocar outra coisa em seu lugar.

sábado, 21 de novembro de 2009

As artes de governar








“Mal percebemos essa primeira impressão de que a política cessa de ser um mistério, ela não busca mais as trevas para esconder sua deformidade; não tem mais necessidade de artifícios para escorar sua fraqueza vacilante; longe de cobrir-se de um véu espesso, ela põe-se a vista, colca-se no meio das nações”. A citação é do fisiocrata Lê Mercier de la Rivière em sua obra A ordem natural e essencial das sociedades políticas, publicadas em 1767. Esta é uma das inúmeras passagens relatadas por Michel Senellart em “As artes de governar”, que a fazem leitura obrigatória de todos os que se interessam por política. Analisando os primeiros séculos da Idade Média ao apogeu da época clássica, Senellart retoma nos manuais de política e prudência as práticas e fins governamentais e numa linha inspirada nos trabalhos de Michel Foucault, os regimes de visibilidade que os governam.A idéia de corrigir os homens cede espaço ao papel do governante de conduzir a multidão numa complexa evolução que não se faz sem resistências, deslocamentos, misturas, rupturas e inovação. Uma exploração das estruturas arcaicas das formas de poder, eis numa palavra o que nos oferece a leitura de Senellart.

O autor é desconhecido no pais mas com uma obra respeitável. Nascido em 1953, é professor de Filosofia Política em Lyon, França. Suas obras sobre Maquiavel não receberão tradução, exceção à Da filosofia moral e política: a felicidade e o útil (Ed. Unisinos, 2004). Tornou-se conhecido como discípulo de Michel Foucault, de quem organizou Segurança, Território e População (1978) e Nascimento da Biopolítica, (1979). Atualmente, organiza o volume Do governo dos vivos (seminário de Foucault de 1980) o que tem inspirado suas pesquisas sobre as relações entre guerra e política no discurso filosófico. Esta trajetória permitiu-lhe que reconstituísse ao longo da história as concepções de governo, ou melhor, modos de governo ou regimem concebidos ao longo da história. Ele os enumera: como condução (dirigere), correção (corrigere), da razão (moderamen) ede si mesmo (autexousion, ou governo de si).


A obra de Senellart não é um tratado político, mas um delicioso percurso da história da literatura dedica as “artes de governar”. Ao investigar os discursos que serviam para justificar, nas malhas administrativas a gênese do Estado Moderno, Senellart encontra um gênero discursivo, parte da história das idéias ou do pensamento, lugar onde melhor pode ser lido o estudo do autor. Um estudo de alta erudição, sem dúvida, mas rico de detalhes sobre as origens do político e da política nas diferentes versões da arte de governar. De Isidoro de Sevilha a Santo Agostinho, de Jean de Salisbury aos teóricos da Razão de Estado, o autor apresenta as diferentes visões das relações entre governo e Estado. O primeiro só tem seu alcance definido a partir de seu exercício e não de uma unidade administrativa, jurídica e territorial. Ao contrário do que possa parecer, o governo não pressupõe o aparelho do Estado, ao contrário, sua origem remonta “as artes de governar” que não são privilégio do político, mas do campo "espiritual, moral, pedagógico, técnico" . Nada mais foucaultiano.

Primeiro lugar a investigar: as formas do regimen animarum, isto é, o governo ou condução das almas, que não usa a força e que é substituído pelo regimen político, que admite o uso da força. A base encontra-s em Santo Agostinho, segundo Senelart, para quem é central a idéia de que é preciso corrigir os efeitos do pecado original, dominando a carne. O fim primeiro da idéia da arte de governar é a idéia de utilidade pública e unidade cristã, que emergem com a retomada dos textos de Aristóteles por São Tomas e após, por Jean de Salisbury . Diz Maria Isabel Limongi, uma das principais estudiosas brasileiras da obra do autor: “O regere se articula aqui ao regnum.” A idéia de poder pastoral, herdada de Michel Foucault tem o objetivo de compreender os fenômenos políticos de massa a partir do cristianismo, mesmo mote das obras de Zizek, destinadas a compreensão do cristianismo apartir do olho da psicanálise, como O frágil absoluto. Diz Foucault "é preciso pensar o poder colocando-o fora do modelo do Leviatã, fora do campo delimitado pela soberania jurídica e pela instituição estatal. É preciso estudá-lo a partir das técnicas e táticas de dominação" Que o leitor saiba de antemão: não se trata da exegese das técnicas de dominação, mas de literatura clássica sobre as artes de governar.

Boa parte destas reflexões vem da inspiração dada por Foucault no seminário “A Governabilidade” proferido pelo filósofo no Colégio de France em 1978 e que ainda inspira estudos e dissertações. Em seu entendimento, ao contrário de Maquiavel, o fim do poder não é circular – manter-se no poder – mas fins particulares ligados ao gerenciamento da população para a sua prosperidade e aspirações. Para Foucault, "esta razão de Estado constituiu para o desenvolvimento da arte do governo uma espécie de obstáculo que durou até o início do século XVIII". A diferença entre Foucault e Senellart é definida por Limongi: “O esquema de Senellart é, no entanto, outro. Ao pensar a constituição do Estado no interior da história das artes de governar recuada até suas origens patrísticas, ele insiste, não na oposição, mas nos compromissos conceituais que articulam teoria da soberania e um modo de governo que se pensa como disciplina e sistematização da vida social. "

O que torna particularmente interessante a abordagem de Senellart é a emergência de um regime de visibilidade no campo político e que sugere linhas de interpretação a política contemporêna. Para Senellart, vemos a passagem de uma concepção da arte de governar em que o príncipe é o espelho terreno da virtude. Essa concepção dá espaço a outra cujo principio é a visibilidade do soberano que também é a da separação entre o saber comum e o saber político. Para justifica-lo, o autor usa da referência a obra “As viagens de Gulliver”, na passagem em que o rei de Brobdingnag, o país dos gigantes, conhece o extraordinário poder da pólvora e a recusa. A utopia de Swift não exorciza a força, setencia. Diz Limongi a respeito “O príncipe não é mais um espelho da virtude e um exemplo a ser visto, mas aquele que tudo vê”. A exigência de publicidade e transparência das Luzes inscreve a política num campo de visibilidade, racionalização da vida social que é tornada objeto de governo.

Inspirado nas Políticas de Justo Lipsio, Senelart vê o abandono da virtuosidade do príncipe pela adoção do segredo como elemento do cálculo político. O segredo designa as formas regulares de circulação de informação entre o príncipe e seus subordinados, forma de valorizar a eficácia do poder. Uma questão que se coloca até hoje, já que a política contemporânea afundou-se na publicidade e as sucessivas ondas de denúncias vem trazer a público aquilo que não apenas corrupção, era “segredo” de Estado. As Artes de Governar pode ser assim, além de um estudo erudito, um inspirador para os tempos que correm e que fariam arrepiar até mesmo Maquiavel.

Um Leviatã ultrapassado



A construção do Estado Nacional Brasileiro tem sido objeto de análises políticas desde os anos 80, com a consolidação da pós-graduação em Ciência Política no país. Analisando o legado de Vargas, o papel da burocracia e os partidos políticos, os estudiosos tem contribuindo para dissecar análises que primam pela critica da.hipertrofia do Estado, análise do clientelismo político e perspectivas sobre a modernização do Estado Brasileiro. Um livro que vale a pena ler “O Ex-Leviatã Brasileiro: do voto disperso ao clientelismo concentrado (Civilização Brasileira) de autoria de Wanderley Guilherme dos Santos acrescenta um capítulo original a estes estudos, onde não faltam novas perspectivas sobre a burocracia e o desenvolvimento economico social brasileiro. A obra é uma análise detalhada do que aconteceu ao Estado nacional montado por Vargas e mostra, contrariando aos estudiosos de plantão, que somos não apenas um Estado menor em números relativos e absolutos, mas temos um Estado com uma rara eficiência. “Desde 1984 que insuspeitos relatórios de agências internacionais produzem dados comprovando que o Brasil possui um Estado mais para sovina do que para perdulário”, escreve.

Seu autor, Wanderley Guilherme dos Santos, é um dos mais importantes e refinados cientistas políticos brasileiros e sua história reproduz as vississitudes da intelectualidade brasileira na segunda década do século XX. Santos atravessou alguns dos períodos mais atribulados da história recente do pais. Depois de uma formação onde não raro o desejo de estudar conviveu com as dificuldades de sobrevivência, Santos passou em 1960 a convite de Álvaro Vieira Pinto a integrar o quadro de pesquisadores do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB. Foi quando publicou entre 1961 e 1962, os livros marcaram uma geração de intelectuais como Quem dará o golpe no Brasil, na coleção Cadernos do Povo Brasileiro da Editora Civilização Brasileira e Reforma e Contra-reforma, pela Editora Tempo Brasileiro anunciando de forma visionária, a eminência de um contragolpe da direita e dos reacionários no país. Perseguido, desempregado e após incorporado ao quadro do Instituto Universitário de Pesquisas Cândido Mendes, Santos conseguiu completar sua formação acadêmica doutorando-se na Universidade de Stanford, na costa leste dos Estados Unidos, de1967 a 1970 trazendo de lá uma bagagem inédita em Ciência Política numa época em que a área consolidava-se no pais. Atualmente, é professor no Programa de Pós-graduação do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro –IUPERJ

Seu pensamento chama atenção pela sua originalidade e metodologia de análise rigorosa revelada em obras recentes como Cidadania e Justiça em que introduziu uma abordagem produtiva para se pensar a classe. Para Santos, o tamanho do estado é apenas aparente “O ex-Leviatã (leia-se, o Estado varguista) operou preferencialmente segundo uma lógica privada e oligarquizante em benefício de poucos. Muito concretamente, isso quer dizer que a natureza das políticas governamentais obedece ao modelo em que seus custos são genericamente distribuídos (toda a população paga por ele), enquanto os benefícios são consumidos por uma minoria.” A obra de Vargas, que Santos reitera seu valor, não deixa de ser objeto de um desmonte político que as conseqüências ainda não foram totalmente analisadas. Diz: “É na percepção do Estado como anão socialmente preconceituoso e impotente, antes do que como gigante, que está a origem da sonegação do conflito”. A obra é organizada em sete capítulos. O primeiro é uma análise da Era Vargas e o nascimento do Estado Nação. Santos enfatiza na análise do período 1930-45 como o período no qual foi enfrentado a crise de integração ancional, com participação política e redistribuição de riqueza.O capítulo segundo e terceiro analisam um campo particularmente importante de definição do Estado: a construção da burocracia de estado. Para além de um modelo weberiano e dos argumentos que a apontam como a origem dos males do pais, e mesmo reconhecendo nela traços inevitáveis do clientelismo, Santos aponta uma novidade: ‘o tamanho da burocracia brasileira e os gastos com ela não podiam ser considerados como patológicos se comparados com equivalentes de países ricos. Mais, que a administração pública diminuiu desde a reforma do Dasp em 1930. “A participação do funcionalismo público brasileiro no emprego total continua significativamente baixa, mesmo quando se tomam todos os níveis de governo. No caso brasileiro, o federal, estadual e municipal”, observa o cientista político. Contrariando os analistas do clientelismo político, Santos afirma “O excesso de pessoal na administração pública, particularmente no que concerne ao governo central, se localiza nas ocupações mais modestas: pessoal de limpeza, vigias, ascensoristas, porteiros. Se os funcionários públicos devessem suas posições à troca por votos e, inversamente, se os eleitores só escolhessem candidatos em retorno de favores recebidos, seria difícil a interpretação de resultados da pesquisa recente”, destaca. Para o autor, o clientelismo brasileiro se encontra confinado à periferia do sistema eleitoral, com escassa eficácia causal sobre o desempenho da máquina do governo

A imagem do Leviatã hobbesiano surge para colocar lado a lado as necessidades de um governo despudorado ou franco e as forças clientelistas e distributivas ainda presentes na política brasileira. Caracterizando a política brasileira como poliarquia , sistema político que mantém a existência de competição eleitoral pelos lugares de poder, a intervalos regulares, com regras explícitas, Santos reconhece a importância neste regime da participação da coletividade na competição sob sufrágio universal, tendo por única barreira o requisito de idade limítrofe. Um regime assim seria perfeito, não fosse o fato da existência, nas suas entranhas as algemas de cristal de um Leviatã disfarçado mantenedor da ordem sob o qual se esconde um clientelismo concentrado. A história política brasileira é o processo que levou a sociedade a e uma ânsia pelo surgimento de forças organizadas ao mesmo tempo em que construímos instituições “viciadas” na privatização e na predação do Estado. Diz: “Os grupos de interesse do Brasil ambicionariam barrar a tendência à monopolização decisória do Estado, não para torná-lo plural, democrático e acessível à diversidade dos grupos sociais, fortes ou fracos, mas para substituir o monopólio do poder estatal pela oligarquia de um sistema fechado de poderosos grupos de interesse. “. E nesse sentido, não deixa de ser um estudo atual, porém cruel.

A política dos riscos



As recentes chuvas que desabrigaram centenas de pessoas no Rio Grande do Sul colocam em evidência a importância da percepção dos riscos que nos cercam. Sejam árvores mal cuidadas, telhados em estado precário ou vias com pouca drenagem, os problemas que surgem com uma chuvarada são conseqüências de como a gestão da coisa pública previne o perigo, a catástrofe possível. Diz Veyret, especialista na área “Correm-se riscos, que são assumidos, recusados, estimados, avaliados, calculados. O risco é a tradução de uma ameaça, de um perigo para aquele que está sujeito a ele e o percebe como tal.”

Os riscos atingem fundamentalmente os municípios. É na cidade que há riscos de todas as formas (naturais, industriais etc). A gestão dos riscos traduzem as escolhas políticas e as decisões finais de organização dos territórios feitas pelos órgãos públicos e atores políticos, especialmente os locais. Trabalho a mais para Prefeitos e Câmaras Municipais, os acidentes frequentemente conduzem os órgãos responsáveis a necessidade da reflexão sobre a prevenção de um novo acontecimento do mesmo tipo. Ainda que a Defesa Civil seja o órgão diretamente relacionado a solução dos problemas oriundos de vendavais, na verdade é de toda a sociedade, especialmente dos órgãos do Estado, que o cidadão depende para serviços de socorro.

A prevenção também é decorrente de escolhas de gestão e políticas de organização do espaço urbano. Daí a importância da criação e atualização constante do Plano Diretor. Sem ele, a cidade fica sem diretrizes de crescimento e prevenção de catástrofes. Daí o papel das Câmaras Municipais, em fiscalizar as condições de obras públicas e a cobrança que fazem do Executivo pelo desenvolvimento de políticas de segurança e melhoria das condições de vida na cidade. É nos momentos de catástrofe que vemos que a política tem um papel fundamental: não existe risco zero, é preciso gerenciar o risco. A “cindínica”, do grego kinduni, ou ciência do perigo, surgiu nos anos 80 para aprofundar o aspecto técnico do risco. Nela, o risco é central para o Estado e são passíveis de construção políticas públicas que promovam uma segurança coletiva negociada que permita o elo social.

Os políticos estão no coração do dispositivo de segurança. De fato, eles devem fornecer respostas à sociedade civil apoiando-se no conhecimento dos especialistas. O problema é que sempre existe uma defasagem entre o grau de gravidade estabelecido pelos especialistas, o reconhecido pelas autoridades políticas e o percebido pelo público. Mas eles não perdem sua função, ao contrário: cabem aos políticos desencadear alertas, denunciar os perigos para fazer nascer os debates públicos sobre segurança. Mais: cumprem um papel fundamental de estabelecer e apontar responsabilidades, sem o qual o Estado não pode se transformar em força promotora da construção de uma política dos riscos na sociedade.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Hipertrabalho legislativo


A idéia de que o funcionário público é vagabundo é um mito criado para transformar o servidor público no bode espiatório de uma sociedade autoritária e de exceção. Pois os funcionários da Câmara são o exemplo de que se trabalha muito, e muito mesmo. Conversei com dois colegas no dia de hoje. Eles estão exaustos. Eles não aguentam mais. Em suas funções, são requisitados de manhã a noite, sábados e fins de semana. A Câmara não pode imaginar o que seria seu cotidiano sem eles, mas basta dizer que ninguém se entenderia se não fosse o seu trabalho. Acontece que seu setor, que já era defasado perdeu mais funcionários. E o trabalho só tende a aumentar. Mais: a inexistência de perspectiva de concurso público, de contratação de estagiários e o stress de lidar diretamente com o plenário só faz agravar seu drama.


Este é um exemplo da Câmara Municipal que mostra o esforço de que os funcionarios públicos em cumprir a sua função. Todos os dias são eles que dão garantia para que os vereadores possam receber a população para atender suas reivindicações, colaborar na solução dos seus problemas e sua composição pode ser localizada na página da internet (www.camarapoa.rs.gov.br). São setores que garantem o funcionamento da parte legislativa, administrativa e patrimonio e finanças, e fica claro que setores de grande importância tem carencia de pessoal. A razão é que o legislativo sofre dificuldades pela necessidade de realizar concurso público, reformar sua estrutura de pessoal e seu organograma. Eles são necessários para a garantia das condições da intermediação política necessária para a solução de problemas entre várias organizações sociais.


Por dentro, a Câmara é uma máquina de trabalho em estado puro. Das 7h às 22 h, 7 dias por semana, funcionários dedicados movem esta máquina pública. Eles não são preguiçosos, como se imagina, ao contrário, eles estão no seu limite de trabalho, como meus dois colegas. Eles temem pelos problemas e erros que podem advir no ambiente de trabalho por estarem no limite de sua capacidade. Vivem o dia a dia sob intenso estresse. Esta é a prova de que nunca se trabalhou tanto como hoje no interior da Câmara Municipal: você vê os funcionários submetidos a rotina extenuante de trabalho, que vão de um lado para o outro para dar suporte a reuniões e debates que ocorrem todos os dias, todas as horas. Eles vivem sobre intensa pressão para criar as condições para que a instituição cumpra seu destino, o do pleno atendimento da população.
É disto que se trata: quem vê de fora o parlamento não imagina as angústias que seus profissionais enfrentam no cotidiano para cumprir atividades que visam beneficiar a cidade: cronogramas estreitos de trabalho, falta de infraestrutura, falta de profissionais, etc. Mas mesmo assim, eles não esmoecem, não deixam de cumprir seu papel. O paradoxo é que o legislativo pode ter seus problemas, mas nunca esteve tão ligado a sociedade como agora. Mérito dos vereadores, por suas iniciativas, e de seus funcionários, por seu trabalho, mas isso tem um custo: o estresse que absorve a instituição.


A verdade é que a Câmara, com seus limites, vem trabalhando além de suas possibilidades. Ela necessita urgente de mais funcionários porque, com o crescimento da cidade, cresceram as demandas para a Câmara, que há anos não realiza concurso público. A Câmara Municipal investiu em uma infraestrutura material preciosa, modernizando-se, adquirindo a tecnologia para superar muitas de suas dificuldades. Mas chegamos a um estágio de que não adiantam equipamentos, não adiantam recursos financeiros, não adiantam softwares se aquele que é o centro do processo não se reproduz: a mão de obra. Se uma instituição e seu corpo de trabalho enfrenta esta desafiadora circunstância, é porque não deixa de cumprir seu papel, daí sua nobreza. Mas a necessidade de um concurso público já está no horizonte de trabalho do parlamento, é um destino ao qual não se pode mais fugir.
Fica o convite aos jornalistas e cidadãos de plantão: por favor, antes de criticar severamente seu parlamento, acompanhem um pouco do seu trabalho pela internet e o ajudem a divulgar. Vocês vão se surpreender com o que seu parlamento vem fazendo pela cidade. Fica a dica aos novos administradores do Legislativo em 2010: se algo não for feito pelos funcionários que estão em seu limite, a Câmara pode falhar em suas funções. Nada mais desastroso para a democracia da cidade de que um legislativo aquém de suas funções.

O mais maffesoliano dos trotskistas


“A imensa maioria das pessoas tem o sonho fantástico da imortalidade. O fim da vida nunca está no horizonte, a não ser quando ele se apresenta como irremediável. E quando ele chega sentimos profundamente. É o nunca mais. A ausência absoluta e a única coisa que resta é a lembrança, a memória das pessoas que nos são queridas, mas cujo ciclo entre nós terminou definitivamente” Luis Pilla Vares


Não sou nem de perto a pessoa mais indicada para falar de Luis Pilla Vares. Nem parente, nem amigo próximo, e o fato de te-lo conhecido em 1992, portanto, lá vão dezenove anos de distância. Sequer posso falar de uma afinidade intelectual, já que prefiro Jean Baudrillard à Rosa de Luxenburgo, Paul Virilio à Gramsci e Slavoj Zizek a Sartre. E muito menos ainda posso falar de uma proximidade de trabalho, pois quando Secretário Municipal da Cultura, pouco contato tive com ele. Por que falar então?

Por que é preciso. Passados um um ano de sua morte, completados agora em outubro de 2009, pouco se trouxe a tona de sua memória. Uma injustiça, já que Pilla Vares foi um dos grandes intelectuais de Porto Alegre e o era, não pela densidade de seus escritos, que foram muitos, mas por uma crônica cotidiana que fez a memória da capital. Influenciou uma geração de intelectuais, produtores de cultura e artistas, com seus textos e suas opiniões. Era uma espécie de tradutor universal das humanidades e como ninguém, sabia apontar os argumentos dos grandes debates de idéias, posicionar-se quanto a um tema de debate em ciências sociais, apresentar um grande intelectual e pensador.

O problema é que sua produção teórica era assistemática. Grosso modo, podemos dizer que há duas fases em sua obra. A do “primeiro” Pilla Vares, com seus escritos fundamentais que datam dos anos 80, especialmente Socialismo e Liberdade (1985), “Rosa, a vermelha”(1988). A esta produção segue-se outra, dos anos 90, com estudos como “Gramsci, 100 anos de um pensamento vivo”, em parceria com Luiz Marques (1991) e “O anarquismo”(1992), que tornaram-se clássicos nas universidades. A crítica à esquerda atingiu Pilla Vares, mas ele não deixou de publicar, nos anos seguintes, em parceria, diversos textos em obras coletivas ou participações com artigos em coletâneas. Pilla Vares não se via como o organizador de sua obra, e seu deslocamento é o de um intelectual que aos poucos deixa de lado o estilo acadêmico para adotar a forma da crônica cotidiana.

Esta seria a base de um “segundo” Pilla Vares, representado por seus artigos de jornais. Verdadeira crônica cotidiana, ele transforma-se no observador de sua época, do mundo das artes e do universo intelectual, tal como repercute na capital. Poucos fizeram como Pilla, que nunca abandonou seus ideais de esquerda, mas permitiu-se algo notável, o de ser impregnado pela poesia. Mostrou que a esquerda podia ser mais “suave”, que o duro discurso militante – a revolução – poderia ser acompanhado por algo mais leve. Ganhou a esquerda, que atualizou o seu discurso e ganhou a cultura gaúcha, que ganhou um notável escritor. Mais, Pilla Vares, a sua maneira, redescobriu a idéia de “contemplação do mundo”, tão defendida por Michel Maffessoli, a reivindicação de um modo mais poético e libertário de ver a realidade. Nada mais pillavariano – ops! - a posição que diz que para compreender o nosso mundo, valem recordações da infância, observações do dia a dia, comparações com projetos pessoais, elocubraçoes metafísicas.

“Sempre que passo as minhas férias no litoral, em frente ao mar, nunca deixo de lembrar a minha infância e o começo da adolescência. E elas tinham um endereço certo: Cidreira. Mas a Cidreira que me traz recordações está a léguas de distância da praia que conhecemos hoje, uma cidade de porte médio. A Cidreira que povoa a minha imaginação sonhadora diante do mar é outra, totalmente diferente, que deixou de existir, embora teime em permanecer viva na minha lembrança - e certamente nas mentes dos que a conheceram décadas atrás.”

Pilla Vares deixa claro que há muito tempo não tinha contato com crianças. Ele sabia muito bem que era um militante e não um psicólogo. Mas a memória o perseguia e voltava a dizer “Mas fui criança, vivi intensamente o tempo mágico da fantasia e da imaginação e, depois de adulto, sempre lembrei da infância, da inocência, do rico universo que nos envolve naqueles anos de construção da personalidade e que nem sempre são lineares e felizes.” E, por uma estranha proximidade, o fato de sua morte ocorrer às vésperas de mais um Dia da Criança, talvez tenha algum significado. Ela está numa mensagem subliminar dita às crianças em suas crônicas, perdidas no meio de textos de um militante ferrenho da esquerda, intelectual aguerrido, e que são no mínimo a mais bela mensagem que podem ser relembradas neste Dia que está por vir.

É o que vemos no texto “O imaginário infantil”(ZH, 27.3.2008) onde Pilla Vares diz.”Minha experiência pessoal como criança é certamente diversa da meninada de hoje. Meu tempo lúdico de criança foi formado por grandes inovações tecnológicas e formas novas de expressão: o rádio, por exemplo. Ali, os seriados de Tarzan, Capitão Atlas, As Aventuras do Anjo, Jaguar O Detetive, nos faziam sonhar e ocupavam as nossas tardes. Ansiávamos pelos fins de semana por causa das matinês de filmes de aventura, caubóis e os incríveis desenhos animados. Queríamos ser Durango Kid, Hopalong Cassidy, Zorro. Ou os filmes em série, principalmente Flash Gordon, Dick Tracy, o Fantasma, Super-Homem, Batman, Capitão Marvel, todos saídos das histórias em quadrinhos publicadas nos gibis. E, obviamente, o futebol. Ir ao "estádio" era fantástico e depois reproduzíamos as partidas em memoráveis clássicos de botão, quando imaginávamos arquibancadas lotadas. As meninas tinham as suas bonecas, as casinhas e todo um condicionamento para cumprirem seu papel futuro de donas-de-casa.”

Em suas recordações, o passado e o presente aparecem em flashes. Ele percebe o passado e compara com o presente. Ele diz “Agora parece que tudo mudou. As matinês não exercem mais nenhuma atração: a televisão acabou com elas. Depois veio a revolução radical dos computadores, com suas incríveis e, para a minha geração, inimagináveis possibilidades criativas e de jogos fascinantes. É claro que fica a inevitável pergunta: qual o tempo melhor do imaginário infantil? Os dias atuais reduzem ou ampliam a imaginação da criançada? Não dá para responder, só os tempos futuros serão capazes de possibilitar uma afirmação. E olhe lá! De qualquer forma, espero que o imenso e inesgotável mundo de sonhos que é reservado às meninas e aos meninos não tenha terminado, mesmo que os novos costumes tenham modificado comportamento e atitudes e, certamente, encurtado a época da inocência. “. Que a poesia de suas descrições surpreenda por tocar na essência das coisas, é apenas mais um dos méritos de Pilla Vares.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Teledomingo e vereadores II


A matéria do Teledomingo ainda inspira algumas reflexões que é bom não perder de vista. Já nos referimos ao fato de que a sensibilidade jornalística responsável pela produção daquele programa revela-se portadora de um ódio à política: o programa parece sugerir o “politicus est imundus” - a política é imunda - para parafrasear a fórmula de Santo Agostinho que dizia que o mundo era imundo. Se este queria rebaixar ao máximo a natureza humana a fim de realçar a graça divina, aqueles – os editores do programa – queriam rebaixar a vida política a fim de realçar o valor da critica jornalística. Maffesoli tem razão em dizer que há aqueles que tem medo a vida, que só vêem sujeira e corrupção na natureza: o problema desses jornalistas – e friso, não são todos – é que não reconhecem os valores daquilo que é, e só vivem em função daquilo que deveria ser. As cenas que a equipe jornalística do Teledomingo reuniram só serve para seu objetivo obtuso de estigmatizar a política, buscar a sua invalidação, a negação da experiência coletiva que é a vida no plenário. Os jornalistas que a todo tempo querem indicar aos políticos como devem seguir, nada mais fazem do que retomar ainda política cristã da salvação teológica.

O pressuposto dos jornalistas para colocarem-se acima da política está na assunção de uma atitude voluntarista: eles acreditam que o povo é incapaz de discernir quem é o bom e quem é o mal político, e por tanto, devem ser orientados pela opinião jornalistica. Essa visão desconhece um fato básico da Câmara Municipal de Porto Alegre, o fato de que a população renovou cerca de 40% das cadeiras, o que significa que, para além do que os supostos experts jornalistas pensam, o povo é capaz sim de intervir no campo político se achar necessário. Diz Maffesoli “o povo, considerado, no melhor dos casos, como uma criança imatura, no pior dos casos, como um débil mental retardado, deve ser tomado pela mão... a gente precisa pensar e agir por ele, e , se necessário, contra ele”.

Há um grande grau de hipocrisia nestes bons sentimentos que este tipo de jornalismo encarna. Mostramos que querem apontar ao povo os defeitos da política como se isso fosse uma análise social quando em realidade apenas efetuam suas crenças. Essas visões prontas do que seja a política – lugar do ócio e da falta de interesse público, lugar da corrupção, etc, etc – mascaram o fato de que muitas vezes são pronunciadas por jornalistas sem base em pesquisas. Veja-se o caso de David Coimbra, esse eterno paladino anti-legislativo, semelhante a um Don Quixote, sempre a desferir seus dardos contra os moinhos. Mostrei em pos anterior neste blog que pesquisas mostram ao contrário do que Coimbra gostaria, que o Senado continua ainda a ter seu papel na consolidação da república.

O problema é que esta visão distorcida que certos jornalistas tem do campo político impregna a imprensa de todos os dias. Ouso formular uma hipótese malévola: na verdade, é este tipo de jornalismo, e não os políticos, os grandes responsáveis pelo desinteresse cada vez maior dos jovens pela política. É que este trabalho de desconstrução da política tem como efeito uma devastação das expectativas do mundo frente a a democracia e aos politicos. Os jornalistas de programas como Teledomingo deveriam ser responsabilizados pelo mal que fazem ao imaginário de nossa época, porque ao desacreditarem os políticos, dificultam ainda mais a construção de políticas públicas e sociais. Os jornalistas da Câmara são como o anjo da historia de Walter Benjamim: com seu rosto voltado para valorizar os vereadores, vêem os jornalistas ao seu redor noticiarem a política como uma catastrofe. Eles querem mostrar a verdade do plenário, mas da imprensa local sopra uma tempestade que se apodera deles. Essa tempestade é o mal jornalismo.

A aspiração da bancada jornalística do Teledomingo propõe uma fuga da política e uma atitude de ódio aos políticos. Como disse, formas de negação do mundo que remontam a Santo Agostinho e Lutero. A atitude de atenção relativa dos vereadores no plenário, de fato, está em vias de se constituir como uma espécie de normalidade da vida legislativa, assim como tantos outros fenômenos sociais foram aceitáveis e integrados a vida contemporânea: quem anos atrás aceitaria os adeptos dos piercings, os praticantes de tatuagens: ao final, descobriu-se surpresos, eles não são monstros, são pessoas normais experimentando formas de expressão, enquanto que aqueles que tem a prentesão de um saber absoluto é que são os novos monstros.
Monstro é a atitude que está por detrás do jornalista que entra em uma Casa pública sem explicitar os seus objetivos, ou os objetivos do uso das cenas que recolhe. O perido destas atitudes é que elas são da mesma natureza das atitudes que estão por detrás daqueles que abriram campos de concentração. Diz Maffesoli “O universalismo sempre foi o berço do totalitarismo”. O totalitarismo aqui é aquele da critica irracional das instituições políticas, que pode até parecer mais suave, mas não é menos nefasto. Quando os jornalistas da RB S tem certeza de que a política não presta, estão convencidos de que detém a verdade da política. Nesse momento “a inquisição não está longe”. João Dib foi, naquela cena, o bode expiatório para os jornalistas do Teledomingo justificarem sua crença: a política não presta para nada, vejam só, ele corta as unhas!.

Finalmente, podemos dizer que o centro da atitude inquisitorial do mal jornalismo sobre os vereadores está na questão do por quê. Isto é, para eles a questão central é responder a pergunta - qual a finalidade do plenário. Para estes jornalistas, votar leis de importância para os cidadãos. Esta definição é, entretanto, insuficiente para reproduzir a experiência central do plenário, conduzir o debate público da cidade. Para os jornalistas da RBS, um plenário só tem sentido se for palco de uma sessão que aprove muitos projetos; se não o fizer, há que se condenar os vereadores ao ostracismo. Na verdade, bem lembra Mafessoli o filósofo Silseus para quem “a rosa não tem porquê”. Esse sem porquê explica algo imcompreensivel para parte da imprensa, o fato de que,numa tarde, haja um debate amplo sem uma conclusão definitiva, mas que é a experiência de plenário necessária para a conclusão e votação que será tomada no dia seguinte ou sessões após. O debate político sem a preocupação de terminar na sessão, mas esgotá-lo mais adiante, eis uma idéia que a lógica jornalística de plantão não consegue assimilar.

O problema é portanto que os jornalistas do Teledomingo abstraíram-se do mundo político local, assentaram seu discurso em suas crenças, independente das coisas em si mesmas. E por esta razão, foram incapazes de penetrar em seus meandros, foi o que defendi no artigo anterior. A política é um fenômeno múltiplo, não existe uma verdade da política local que os jornalistas da RBS sejam detentores e que deva ser mostrada por eles ao público. A única posição possível aos jornalistas da RBS é a de buscar entender a lógica secreta que move as cenas que presenciaram. “O ideal da imparcialidade jornalística mal oculta o conformismo dos rebanhos que, segundo o filósofo G. Lukács, frequentemente faz dos jornalistas seres “sem subjetividade nem objetividade”, assegura Maffesoli. Os jornalistas querem iluminar o povo? Sim, mas o inferno também está cheio de boas intenções, diz a sabedoria popular e o problema fica mais grave quando os mesmos jornalistas que dizem-se amigos da democracia, ao mesmo tempo fazem de tudo para denegrir a imagem da política, o que não deixa de ser uma forma de mentir a si mesmo.

Entre escolher o que a política deveria ser e tentar compreender o que ela é, ficamos com a segunda opção. Enquanto a imprensa optar pela primeira nada mais faz do que trazer de volta e por outros meios a banalidade do mal de que fala Hannah Arendt, como a banalidade dos pequenos males cotidianos produzidos pela equipe do Teledomingo, baseada na calúnia e na maledicência sobre a classe política local. Suspeito que a razão de tudo isso esteja na experiência vivida pela imprensa durante a ditadura militar, a ação do Estado sobre os jornalistas está na razão de que até hoje, alguns deles hesitarem em ver com bons olhos a política. Eles tem suas razões, já que de fato, a ditadura militar destruiu as liberdades de imprensa em nosso pais. Como aponta Baudrillard, como num espelho convexo e deformador, a imprensa assimilou essa violência e a traz de volta, espécie de vai e vem da brutalidade, da arrogância, paradigma de todas formas de incivilidade. Quando o discurso jornalístico adota esta prática de pequenas e múltiplas maledicências sobre o políticos, verdadeiras malvadezas que a só a edição selecionada de imagens permite – me vem a tona agora a lembrança da ex-vereadora Manuela criticada por responder e-mais de cidadãos no plenário – surpresa, ela não estava trabalhando! - diz Maffesoli “só um belo tapa na cara seria a resposta adequada a todos esses cavaleiros de trites figura”.

Pode chocar, mas a afirmação de Maffesoli tem razão de ser. Grandes repórteres formam igrejas e julgamentos que se tornam sumários e irrecorríveis.Pode-se arruinar a vida de um político com uma matéria de jornal, com o poder institucional que a televisão lhe outorga, influenciam gerações a recusar a política. Os jornalistas deveriam fazer uma reflexão: o que significa para sua prática profissional quando agir escondido se torna uma prática constante?o que acontece com a função da imprensa quando câmaras escondidas, gravações escondidas, esconder os motivos de filmagem, torna-se a moeda corrente para as equipes de jornal e programas como Teledomingo?Nada resta as vitimas neste universo, já que aqueles atores tem a seu favor o silêncio da instituição: não, nenhum artigo crítico ao programa será publicado; não, nenhuma entrevista com Dib ou os vereadores filmados será divulgada. De fato,quando alguém disse que a violência está no ar, era exatamente isto, nas ondas dos meios de comunicação !.
.
A reportagem do teledomingo passará e a Câmara continuará a ser a casa do povo. Mas quando os jornalistas da RBS quiserem ir novamente ao Plenário para olhar os vereadores, convém relembrar-lhes que olhar significa tomar conta de, cuidar de, zelar por. E que isso é o que significa ver, não ver pela ideologia, mas levar em conta aquilo que aparece aos olhos, a sua vida.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O teledomingo e os vereadores



A cena onde o vereador João Dib é mostrado cortando as unhas na sessão da Câmara Municipal de Porto Alegre, transmitida pelo programa Teledomingo, é reveladora do descompasso que há entre o jornalismo contemporâneo brasileiro as instituições políticas da sociedade. A questão é: porque nossos jornalistas continuam a multiplicar o senso comum sobre o parlamento, algo completamente desconectada da realidade? porque continuam fazendo erros de apreciação e interpretação sobre o valor do legislativo? A verdade é há dois pontos envolvidos que merecem apreciação. O primeiro trata da experiência de sociabilidade que só o plenário possibilita e que tem um significado politico. A segunda trata do papel que jornalistas outorgam-se frente a sociedade e suas instituições e que precisa ser revisto. Unindo ambos, a idéia de que a atenção flutuante é um vício e que precisa ser corrigida. Vejamos em detalhe.
Nunca é demais repetir, a vida de plenário é a discussão acalourada dos projetos de lei e dos problemas da cidade. Mas é preciso entender o que a expressão "acalourada" também significa para a política. A imprensa tem medo de pensar sobre a política, sobre o político. Eles se contentam com o senso comum que aponta para seus defeitos, e não procuram a política profunda, lugar de suas virtudes. Com isto perdem o papel importante de buscar garantir a construção de uma cidade mais democrática onde os vereadores são importantes protagonistas. Isso acontece porque a imprensa se reconforta em suas próprias certezas, a idéia de fracasso da política. Isso é extremamente pernicioso quando vemos a imprensa como dispositivo de influência – para usar uma expressão adaptada de Michel Foucault - que significa que os jornalistas exercem uma autoridade importante na sociedade, afetando a opinião pública, mas seria melhor empregar esta autoridade participando do crescimento da esfera política positivamente e não contra ela.

Quando o Teledomingo registrou cenas de conversa e sorrisos, desvio de atenção e confabulações paralelas, o que é esse "burburinho de plenário" que tanta raiva produz na imprensa? Poderiamos resumir dizendo que é aquilo que Michel Maffesoli apontou como a "forte presença do festivo e do lúdico na vida contemporânea,[que] antes de ser seu aspecto frívolo, é um elemento essencial de coesão" e diriamos, inclusive coesão política. O plenário não é esta sala de aula ideal, onde alunos silenciosos concentram-se na matéria. A pedagogia há muito já abandonou esta idéia, ligada a tradição conservadora. E da própria pedagogia vem a explicação: Alicia Fernandez, a renomada educadora, denominou de “atenção flutuante” a essa situação na qual os jovens, em sala de aula, prestam atenção ao professor, ao mesmo tempo que ouvem música, rabiscam, olham pela janela . Esse "dispersar centrado", essa conversa à toa, característica do homem sem qualidades de Musil é parte integrante da vida social. Não há aula sem algum ruído, reconhecem os educadores.
É assim na vida. Todos nós, no trabalho, no dia a dia, paramos para dar espaço ao lúdico, é nosso grau de humanidade. Inclusive os jornalistas, que entre a produção de uma matéria e outra, param para jogar conversa fora, contam piadas, passam escondido receitas de bolo e o que mais vier. Mas o filtro deformador da ideologia diz que os vereadores não podem agir assim durante as sessões, que devem ao tempo todo concentrar-se na vida de plenário. O problema é que isto não é verdadeiramente humano, e é disto que se trata, de que tal crítica moralista é o roubo que se faz a experiência de plenário como uma experiência humana. É o que a visão limitada de jornalistas de plantão não conseguem entender, não percebem que se trata de uma forma de sociabilidade cujo resultado é o fortalecimento das alianças políticas, da confiança e do imaginário político local.

Pois o exercicio da vereança é o exercicio da camaradagem e da confiança entre os membros de um partido. É como na sala de aula, onde turmas constroem-se e se desfazem ao sabor das circunstâncias, na qual o efêmero do festivo é parte integrante de uma base solidária. Vereadores conversam durante uma sessão não por desrespeito a outros oradores, mas porque precisam desesperadamente criar vínculos. Para o autoritarismo de plantão, tal forma de vida é suspeita e os jornalistas tratam de denegri-la. Seu pretexto é sanar os males do parlamento, paradoxo que os transformam em percursores da morte do político quando deveriam lutar por uma política mais humana. A matéria do Teledomingo está no extremo oposto da vitalidade do plenário: a conversa jogada fora, a parceria constante, a alegria e o contentamento devem fazer parte do ser político como já fazem parte das relações sociais sadias. O programa acha que os vereadores são como crianças, que por conversarem entre si não farão o dever de casa. Nada mais errado, a infantilização é uma armadilha que os jornalistas inventam para enclausurar a política, os políticos sabem e fazem a política, param tudo para as discussões centrais, envolvem-se na medida dos debates, e na hora da votação, lá estão eles para atender suas combinações e alianças. Voi-la, bem vindo a política.

Os políticos são assim: eles brincam entre si, confabulam, criam cumplicidades para que a política possa ser exercida na base da confiança, o olho no olho. Este modo de ser não convém a arrogância jornalística, e como bem afirma Maffesoli, “ao contrário do que se pensa, o juízo de valor e o juízo normativo estão longe de ser bons instrumentos de apreciação”. Quer dizer, de tanto querer que os políticos se encaixem no seu modo do que deve ser a política, os jornalistas passam ao largo da sociabilidade política que funda sua ação. Como diz Maffesoli, em A República dos Bons Sentimentos, é dessa interpretação que se apresenta como a correta, a boa, e que não é, é que faz da imprensa um dispositivo de influência pernicioso para a sociedade. É só olhar o que o Teledomingo selecionou: imagens tomadas ao acaso, do cotidiano: onde ficaram os registros das discussões do Plano Diretor, do Estaleiro e tudo o que foi realmente relevante na vida da cidade?


Mas há mais. O modo como o jornalismo tem defendido a necessidade de transformar a política em fato de mídia, estabelece uma relação de parcialidade com a esfera pública. Ela é típica dos veículos de massa, e nas palavras de Dieter Prokop, esse grande estudioso dos fenomenos de comunicação, sua base é o processo galopante de de reelaboração da dimensão política cujo efeito é a perda da capacidade de transformação que esta dimensão busca alcançar. Dieter Prokop diz para procuramos o modo de construção sígnica de tudo isto, o modo como os elementos são amarrados entre si, seus signos. Por exemplo, na telenovela. A telenovela só parece ser a realidade: ela é uma reconstrução, uma seleção de cenas, imagens, que em nada retratam o dia a dia. Porque retratar o dia a dia é algo impossível: alguém vê o médicos da novela Viver a Vida em suas rotinas, em seu cotidiano? Pela organizaçaõ do veiculo de comunicação, Isso é simplesmente impossível, o que vemos são recortes do recreio de escolas, cenas do interior de hospitais, numa reconstrução cujo principal efeito é matar a realidade do mundo que pretende registrar. Da mesma forma com a imprensa, que mata a política ao mostrar as cenas que julga exemplares do cotidiano da vida pública.

Como nas novelas, o jornalismo tem como característica a reelaboração da realidade. Seleciona o que lhe convém. Isto outorga um imenso poder ao jornalista, aos redatores do Teledomingo, que através de sua visão da política, oferece ao telespectador uma imagem parcial dos acontecimentos políticos, que é a sua verdade do que seja a política. Nada mais falso.

A idéia básica nesta reconstrução é que a ação política não se dá pelos feitos dos vereadores, mas pela aparência da política: nesse sentido, ávidos por imagens, cinegrafistas e jornalistas dirigem-se aos parlamentos a busca dos flagrantes da política, aquelas cenas e imagens que em nada condiz com os objetivos do parlamento. Não é que o parlamento não tenha seus defeitos, como de fato tem. O problema é que a reconstrução da sua imagem pública é parcial e limitado, pelo simples fato de que oculta da sociedade seus méritos.

O problema é que quando escolhem este objetivo, o Teledomingo colabora para construir o imaginário que joga o parlamento na lata do lixo da história, e cuja principal conseqüência todos conhecemos – desprezo a questão dos direitos humanos, desprezo as conquistas da cidadania. Seu redator dirá: mas eu estive lá e vi. E o parlamento responde: sim, mas o que você viu foi pouco e selecionou o que bem entendeu. Parcialidade tem nome: ideologia.

Um vereador, atingido pelas imagens, perguntou: onde estão os jornalistas quando os vereadores legislam sobre a cidade? É justamente esta a questão. Ao selecionarem o que queriam divulgar, revelam a visão do parlamento que tem os jornalistas. Esquecem que o mesmo vereador que corta unhas no Plenário foi Prefeito de Porto Alegre, foi consagrado pelas urnas por várias legislaturas, com um trabalho social reconhecido na comunidade. Negar-lhe seu instante de humanidade é desrespeitoso. Filma-lo em um instante da vida cotidiana é uma forma de violência. Justamente para aqueles que lutam pelos direitos dos jornalistas em exercerem dignamente sua profissão, que buscam a defesa dos jornalistas quando estes vêem violadas suas condições de trabalho, que prestam informações e atendem solicitamente os jornalistas que os procuram ávidos por matérias, como foi no caso do Portal do Estaleiro e do Plano Diretor.

Os redatores do Teledomingo podem ter mais critério quando desejam registrar o cotidiano do parlamento, o que significa escolher como pautas as que definem a ação política e não deixar-se levar pelo senso comum de plantão. Os vereadores deverão – e isso já é há muito tempo cobrado pela própria institução – procurar concentrar-se mais nos debates, já que nos momentos de votação isso já acontece sem cessar - mas sem perder la ternura jamais. Mas negar a vida de plenário as caracteristicas da vida cotidiana, renegar a presença do sorriso, do lúdico, da brincadeira enquanto homens e mulheres trabalham pelo destino da cidade é negar-lhes o direito a uma humanidade que todo o individuo tem. Isto tem um nome: ditadura.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Maria Della Costa



A Câmara Municipal homenageou Maria Della Costa .Na realidade, e de forma bíblica, poderíamos dizer que ela foi homenageada três vezes. Não pela programação, pela Comenda e pela peça de teatro(ou o vídeo), que de fato aconteceram, mas pelos políticos, classe teatral e população que adentrou as dependências da Câmara Municipal. A razão de tal homenagem deve ser buscada não nas razões da proposta ou da comenda, mas antes, no papel que sua figura exerceu no imaginário de uma época.


Simbolicamente, a homenagem é política porque recupera uma dívida do Estado com a atriz, pelas dificuldades que obrigou Maria Della Costa a experimentar durante a Ditadura Militar. É da classe teatral como simbolo do reconhecimento de sua geração ao seu talento e sua dignidade de atriz. É da sociedade pelo público, que sempre a amou e se encantou com sua figura.

Não foi uma homenagem a uma mulher qualquer. Maria Della Costa é de fato uma das maiores atrizes de teatro do Brasil. A distinção faz sentido: teatro e telenovela não são a mesma coisa. Teatro está mais próxima da arte; telenovela, mais próxima da indústria. Por esta razão, vemos a dificuldade de certos atores com a televisão: para eles, o veículo é rapido demais, é técnico demais. Cenas são decoradas para serem imediatamente pronunciadas para nunca mais serem ouvidas: o que significa o fim do trabalho do ator, da arte onde rever cada detalhe, cada gesto é algo integrante do oficio - algo que o ator de televisão não pode conceber.


Fazer teatro no Brasil foi muito mais dificil e desafiador para os pioneiros. Maria viveu uma época de poucas casas de espetáculos, época onde eram raros os textos de qualidade e que seguiu-se a uma época onde - a nossa, de Porto Alegre por exemplo - há teatros por todo o lugar. E hoje, o legado da tradição literária oferece a qualquer novo grupo espetáculos de qualidade, ainda que muitos prefiram o caminho fácil dos textos de massa populares.


Maria Della Costa viveu estes tempos dificeis e desafiadores. Foi mais do que "a mais bela atriz do teatro brasileiro", como refere-se a ela Juca de Oliveira. Aliás, esse talvez tenha sido seu primeiro desafio, o de mostrar que não era apenas um "rostinho bonito". De origem humilde, passou fome, viajou pelo pais, contruiu um teatro, abriu caminho para muitos artistas, salvou outros da ditadura. Quem tem no currículo tão admiravel contribuição a história do teatro brasileiro? Quem pode orgulhar-se de ter doado 50anos de sua existencia a um projeto cultural de qualidade? Maria pode.


E pode mais. Porque olhando a homenageada na Câmara Muncipal, diante de uma população que a admira, diante de um público de várias gerações, e diante da frase de Juca de Oliveira, muitas reflexões emergem. Maria Della Costa encarna o novo lugar que as mulheres decidiram assumir em suas relações com os homens no novo século. Não se tratava apenas de uma mulher qualquer, do lar, era alguém que queria exercer uma profissão, com liberdade sexual e fora dos setores confinados as mulheres. Seu papel principal foi participar da revolução que foi a ascensão das mulheres ao espaço público.


Mas esta evolução também foi a da ascensão do boom da beleza que leva depois ao que ficou conhecido como beleza pós - disciplinar. Daí que a frase de Juca de Oliveira precisa ser contextualizada, assim como todas as belas imagens de Maria que são apresentadas em nossa exposição. Repassando as dezenas de images de Maria Della Costa e é possivel concluir algumas coisas sobre o imaginário de nossa época. A primeira é que não tem jeito: na nossa cultura, a beleza não tem o mesmo valor no masculino do que tem no feminino. Maria Della Costa irradia sua "aura" (Walter Benjamin) em todas as fotos que tira. Suas imagens em cartazes publicitários e capas de revista estão ali para afirmar: não há dúvida, ela é a encarnação do "belo sexo". Mas o que vem a ser exatamente isto? Eis um drama - e também a fonte de certo poder - que só as mulheres experimentam: o problema da importância da aparência na formação da identidade feminina. Ora, isso nunca foi de fato um problema para as mulheres do passado, e aliás, na maior parte da história humana em nada importou a aparência feminina, ela nunca foi um problema, isto é algo construido e produto das condições da emergência da modernidade. Para ser exato, em realidade, o culto da beleza feminina é produto da Renascença, que elege a mulher como a personificação da beleza, que a idolatra em poesia e arte.

Mas não é contra a concepção de beleza oriunda da Renascença que a figura de Maria Della Costa se insurge. Porque naquela visão, a beleza física não é separada das virtudes morais. A mulher renascentista é bela porque tem beleza física e virtudes no sentido ético e moral. È a visão moderna, indústrial e superficial que transforma a beleza da mulher apenas num atributo físico. Maria Della Costa começou a ver o poder que exercia sobre os homens por sua beleza e ao mesmo tempo a superficialidade disso tudo, e começou a querer mais. Não, ela não aceitaria ser apenas um rostinho bonito. Era preciso mostrar que era uma mulher de valor, de trabalho e de guerra. E ela o fez ao construir uma obra teatral exemplar, viajando de norte a sul do país para mostrar seu teatro, para bancar seu desejo de ser alguém mais. E fez.

Mas ela teria de aprender a conviver com esse estigma por toda a vida porque ela viveu uma época em que a imprensa feminina, a publicidde, o cinema e a fotografia eram feitas em massa. A verdade é que as imagens de Maria Della Costa invadiram a vida cotidiana, as revistas e a publicidade. No imaginário de uma época era uma referência para o feminino, numa palavra, uma grande imagem de mulher. E não é a toa que esteja na raiz disto seu primeiro amor: uma autoridade dos produtos Coty, uma autoridade em produtos de beleza é quem será seu primeiro amor e quem a ensina a dominar os signos que fazem uma mulher mais real que a própria mulher. É só olhar com atenção a imagem desta postagem.


Eis algo que haviamos esquecido em todas as homenagens a Maria Della Costa: ela viveu a época em que o culto do belo sexo transformou-se em objeto das massas. E havia uma razão para isso, a ascensão irresistível da industrialização e da produção dos produtos cosméticos para todas as mulheres. De fato, Maria Della Costa viveu o que ficou conhecido como fase terminal da beleza, no sentido apontado por Gilles Lipovetsky, em A terceira mulher, época na qual "todos os antigos limites a sua expansão [da beleza] desmoronaram": fim da relação da imagem da mulher com o vício[como entre os antigos], fim das práticas de busca pela beleza apenas mais cedo, mas também mais tarde[na vida]; fim da exclusividade da glorificação da mulher pelo poetas, mas de forma absoluta, também pela imprensa, pelo cinema, pela moda e pela emergente propaganda da indústria de cosméticos.


Maria Della Costa viveu a época onde emergiu o consumo de massa de tudo o que se referisse a beleza: novas carreiras eram abertas em função da beleza da mulher, novos produtos de beleza eram oferecidos a uma geração de mulheres que saia da casa para o trabalho. Sim, ela viveu o momento de apoteose do belo sexo no imaginário da epoca. Sua biografia é repleta de fatos a respeito: de que aprendeu a se maquiar e a ter a postura adequada e de certa forma, ela mostrava a todas as classes sociais, que com um pouco de cuidado podiam irradiar infinita beleza. Faz uso do batom, que fazia sucesso desde 1918; faz uso de esmaltes de unhas, que já existiam desde 1930. Em valores, a industria cosmética, segundo dados de Lipovetsky, foi multiplicado 2,5 entre 1958 e 1968 na França. De novo: para Maria a entrada no mundo do espetáculo começa com os produtos Coty. Nada mais emblemático quando sabemos o papel do artificio na construção teatral. Que o artificio tornou-se parte do mundo, é o que se viu logo após.

A imagem glamourosa de Maria era devido ao fato de que ela dominava como ninguém a lógica concretizada pelos produtos de maquiagem. Sabia muito bem os artificios da moda, sabia construir um espetáculo ilusório, sofisticando a aparência. Nada a ver com a preocupação de hoje, que ao contrário trata de conservar o corpo jovem, de rejuvenesce-lo a qualquer custo, de fortalecer a pele e preencher o corpo da mulher com silicone. A maquiagem presente nas imagens de Maria está mais para as práticas de valor das culturas primitivas: para o filósofo Jean Baudrillard, é justamente neste sentido que as mulheres exercem sua sedução, o que para este autor é o exercício de seu poder sobre o campo campo simbólico, o campo da construção do artificio - transformar-se em mais mulher do que a própria mulher . Por isso Maria era um ser superior, exercendo poder a partir de rituais de embelezamento que não tem nada em comum com as cirurgias para manutenção da da pele e rejuvenescimento forçado praticado por muitas mulheres da atualidade.

Maria Della Costa perdeu espaço quando a magreza emergiu como valor no mercado de massa. Não bastava ser bela, era preciso ser magra. Indústrias do regime começam a faturar, clinicas de emagrecimento, emergência de dietéticos e produtos lights que obrigam as virtuais candidatas a um espaço neste mercado a emagrecerem cada vez mais, a recusarem as rugas e o peso. Maria aceita-se com naturalidade sua idade porque foi capaz de superar as coerções estéticas de sua época e sobreviver, a seu modo, a tirania da beleza.

Como Maria sobreviveu as exigências de sua destinação ao papel de objeto decorativo? A resposta é dada pela exposição: tendo uma profissão e a exercendo com competência. Quer dizer, no momento em que as antigas ideologias que reduziam a mulher ao lar eram substituidas por aquelas que queriam colocar as mulheres como mais importantes pelo seu aparecer do que pelo seu fazer, Maria quis fazer um teatro de alta qualidade e pagou o preço disso - a construção de um teatro e suportar seu fechamento, a construção de uma carreira com todas as dificuldades de produzir teatro no brasil. Ela mostrou as mulheres que era possível recusar as preocupações estéticas narcisistas que o culto da beleza impunha as mulheres - verdadeiro poder de polícia sobre o feminino. Quer dizer, frente a superação da prisão doméstica - ficar no lar - pela prisão estética - ficar linda - o que ela já evidentemente era - ela recusou ambas e não é a toda que seu talento, na voz da critica, seja elogiado não pelos papeis das mulheres lindas que de fato interpretou, mas justamente daquelas "mulheres terra", do povo, que encarnou.

A época que se seguiu viu nascer uma superexposição - através da ascensão da TV e das imagens de corpos ideais, da magreza, da cultura do consumo vinculado a normas estéticas do corpo, forma de um poder disciplinar (Foucault) aplicado ao feminino. Talvez, ao fazer sua carreira algo muito mais importante que sua beleza, Maria Della Costa tenha nos ensinado que é preciso pensar numa "política da beleza". Será real ou ilusório o poder que a beleza dá as mulheres exercer na sociedade? Se as feministas tiverem razão, a busca da beleza feminina só serve para ratificar o quanto são submissas ao desejo dos homens. Se os filósofos tiverem razão, o feminino sempre será superior ao masculino pela capacidade de preservarem seus rituais. Maria não tem vergonha dos arranhões da idade, que para outras geram complexos de inferioridade, vergonha, efeitos das imagens superlativas das mulheres veiculadas pela mídia. Vivemos uma epoca em que para as mulheres obcecadas com a aparência, cirurgias de implante em seios podem ser feitas aos 18 anos "Não há nehum poder real da beleza feminina; ao contrário, é esta que exerce uma tirania implacáavel sobre a condição das mulheres, diz Lipovetsky.

Maria está de volta para dar uma lição as mulheres: o culto da beleza não pode ser um obstáculo para a autonomia da mulher, nem para a sua luta pelo crescimento profissional. A mais bela e competente atriz brasileira, Maria já exerceu cargos públicos e hoje administra seu hotel com orgulho. Sem dúvida, o exemplo de Maria ajudou a provar que as mulheres tem mais opções profissionais que as virtudes da beleza sonhariam em conceder.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Os direitos do motorista direito


Voltei da Praia de Cidreira. Vim calmamente.Ouvi e vi todos os noticiários e todas as recomendações da Polícia Rodoviária: nada de excessos, nada de correria, revisar o carro, e principalmente, não ultrapassar. Segui rigorosamente os limites de velocidade.

Eis o problema: seguir as leis.


Quando a RS 40 transforma-se em pista dupla, eis o retorno transformado em inferno na terra. A pista dupla parece ser lida como "permitido 150km/h". Você seguindo a 80, em sua pista, tem dezenas de motoristas furiosos atrás de você, pressionando-o, com luz alta. Volto a repetir, você está no limite de velocidade da rodovia, mas para os outros, você é que é o ilegal.


Vejamos a origem deste fenômeno. Todos sabem que existem os chamados "três estágios da direção". O primeiro é o do motorista iniciante, é aquele fascinado pela potência do motor, pela velocidade (dromologia - ciência da velocidade) do automóvel. Não há ninguem que não conheça este est ágio, ele é caracterizado pela ansia de ultrapassagem do próximo. Nesta fase não existem diferenças sociais: tanto faz se é um Omega ou um chevette, se é novo, você TEM de ultrapassar o próximo carro.


O segundo é o do motorista irônico: ele não é mais fascinado pela velocidade, porque ele já experimentou todas as formas possíveis de ultrapassagem - pela esquerda, pela direita, na contramão, várias ultrapassagens. Ele está entendiado de tudo isso. Mas ele descobre uma novidade, um poder precioso de seu carro: mais importante do que o prazer de ultrapassar é o prazer de impedir que o ultrapassem. Ele vai normal, a 80km/h, mas quando vê que alguém quer ultrapassa-lo, voi-la, desenvolve os 150 km/h apenas pelo poder de impor seu respeito. Estes motoristas são um serio risco nas cidades e causam muitos acidentes. Como se sabe, a solidariedade é para o próximo, deixa-lo entrar na sua frente. Eles nunca deixam. Daí a mortalidade nas estradas.


O terceiro tipo é o motorista cidadão: ele segue a risca as leis. É um crente, se há uma placa dizendo "limite 60km/h", ele seguira nesta velocidade, se pedirem para reduzir, ele vai reduzir, se pedirem para ir a 80, ele irá a 80km/h. Ele não entende porque dezenas de placas estariam erradas e o motorista que corre a 150km e o xinga na RS 40 estaria certo.


Xinguei barbaramente o meu motorista de 150km/h. Se você, que está lendo, estava na RS 40 por volta das quatro horas da tarde e viu um Escort azul buzinando, com luz alta para sua ultrapassagem de 150 km /h, fique sabendo que voce mereceu todo aquele escandalo. Está na hora de ensinarmos um pouco de cidadania nas estradas para estes motoristas de segunda ordem, que devidos aos seus maus modos, aumentam as estatisticas de acidentes de transitos no Rio Grande do Sul.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Por um cuidado político




Primeiro foram os profissionais do campo da saúde e enfermagem que criaram o conceito de "Cuidado" para referir-se a situações onde os profissionais amparam os doentes, cuidam deles. Depois, foram os estudos de Frei Betto que buscaram ampliar o conceito, buscando um"cuidado planetário" sem o qual o mundo estaria abandonado a sua propria sorte.




Agora procuro pelas diferentes faces da noção de cuidado aplicado a política. Figura teórica necessária para entender a subjetividade política contemporânea, o termo cuidado político não é usualmente usado por nós, e deveria. Ele revela a busca pela construção de um pensamento politicamente sustentado numa subjetividade teórica alternativa, forma alternativa de pensar a relação dos sujeitos com a política, a fim de inventar novos sentidos para ele, que não deixa de perder. Novas formas de pensar o político para tempos em que a política não tem mais sentido.Cuidar da política como quem cuida de algo que merece cuidados. Tudo isto implica num movimento que vai além da teoria política clássica – os contratualistas e algo mais e os hábitos conservadores da razão política.




Penso que a tarefa dos educadores que propõem a si mesmo a tarefa de pensar a educação política das novas gerações devem ter a coragem de enfrentar as concepções dominantes no campo da socialização política. Considero importante o esforço que autores como João Pedro Schmitz fazem em “Juventude e Socialização Politica no Brasil: a socialização política dos jovens na virada do milênio”. Schmitz analisa o papel da juventude brasileira no processo de construção de uma cultura política orientada por atitudes e valores que fortaleçam a democracia. Suas questões ao longo dêsta obra: o que os jovens pensam em relação a seu futuro político? Quais as atitudes que estão desenvolvendo nesse campo? Quais suas a expectativas de vida? Encontra ao final a existência de uma cultura política híbrida, que não se enquadra em em nenhum dos modelos produzidos pela bibliografia relevante. Ora, nada mais favorável a hipótese de certo nomadismo das concepções políticas da juventude do que a experiência subjetiva que não se deixa apreeder, que é numa palavra, movimento no interior do humano. Nesse sentido, a c onsciencia política é de fato nômade e é um imperativo epistemológico e político para compreendermos como as novas gerações experimentam a política. Os jovens vão de um lado ao outro das iniciativas políticas - agremiações, grupos, ONGs: falta focá-los no campo político por excelência, as instituiçoes públicas.



Se considerarmos que o campo político vive um momento específico de sua história, onde as estruturas produtivas e simbólicas estão se alterando, teremos mais uma razão para perceber que as definições tradicionais que utilizávamos para defini-lo estão em erosão. Por isso acho fundamental a presença de Michel Mafessoli na Câmara Municipal. Autor de “A transfiguração do político”, Mafessoli apontou que o político pertence a categoria das coisas que perduram em todas as espécies de épocas, “sendo ao mesmo tempo, sempre diferentes”. (p.29). Mafessoli não deseja ser-nos útil, mas diante de tanta incompreensão do que seja o político, diz que “é importante dizer, aos que podem compreender, qual é o drama dessa forma chamada politico, nem que seja para mostrar suas evoluções.




Tal reflexão remete a obras anteriores do autor, especialmente “A violência totalitária”. Ali o autor esboçou suas primeiras indagações sobre o poder” assim, pois , o que se pode chamar de dinâmica social, verificando o quanto esta é estruturalmente relacionada com o poder; seja positiva ou negativamente, é sempre em relação à coerção social que se determinam o vivido social e sua interpretação”. (p. 24).



É verdade que a análise mafessoliana da violência totalitária, ainda é muito dura com relação as instituções em comparação com “A transfiguração do político”, neste último livro trata-se de afirmar a necessidade que a vida tem da política, os limites que ela impõe a vida mas que de fato , permiti-lhe existir. “Se insisto sobre o impacto muito relativo da ação humana na construção social, é para bem ressaltar que o que chamei de paixão com um ou sentimento coletivo nos introduz num simbolismo geral: a comunidade é integrante de um vast o conjunto cósmico do qual não passa de um elemento”(p. 35). Se há um motivo para perceber o sentido do político, é o sentido religioso que o fundamenta, diz Mafessoli.



Por esta nação é preciso que urgentemente façamos uma redefinição da teoria da socialização política. Ela terá muito a lucrar se trabalhar dentro da concepção mafessoliana de político, o que é o mesmo tempo dizer que só se salva a política que descobrir que há uma subjividade pós-moderno que é preciso alcançar. A contradição que deve ser posta em evidencia consiste em que numa época em que a política tem perdido o seu sentido, numa crise sem igual, mais ela deve ser objeto de um certo tipo de cuidado. Por que em momentos de crise justamente é a política o bom e eficar orientador da ação, e abandona-la é perder uma forma de organizar o sentido.




Assim, o que Mafessoli ensina é que para a política, a mesma condição histórica que pode ser vista como entrave de criação para o agir político pode ser vista como ponto de partida da criação. As perguntas que surgem imediatamente são: que tipo de política pode ser fundada a partir de uma ética do cuidado? Que tipo de cuidado político, se assim ousamos definir pode ser definido: o que ele apresenta de novidade para a política e para a introdução das novas gerações na política?Que paradigmas podem nos ajudar a dar um novo esquema para a vida política?A racionalidade está totalmente desacreditada ou pode inspirar ainda nossas reflexões? O modelo da criatividade política da juventude pode oferecernos alternativas para pensar a política?



A perspectiva de Mafessoli é apontar que nossa fraqueza de perceber as razões da crise da política entre os jovens está no fato de que precisamos inovar nossos instrumentos conceituais de percepção do que é o político, seu funcionamento, numa verdadeira crítica do poder, do contemporâneo na busca de outras forma de percepção-conceituais do mundo ao nosso redor. A imaginação política precisa dar um salto na forma como ensinamos política às crianças .




E a própria experiência política, enquanto ardil, sedução, jogo, estratégia, religião que está em discussão. A política precisa ser experienciada - de forma lúdica e didática - como ardil, estratégia, modo de operação do pensamento para fins; sedução, por que envolve discurso, envolvimento, encontro com o outro e seu convencimento por argumentos;religião - nada mitico - porque trata-se de uma forma de ligação entre os individuos, de crénça e fé em um projeto de sociedade.







O acompanhante de shopping



Numa crônica antiga, Davi Coimbra descreveu o acompanhante de banho de sol. Sem querer, cometeu uma injustiça que corrijo agora. Ele não é o único dos acompanhantes, na verdade uma espécie em expansão. Não é necessário ir a praia para encontrar um acompanhante, ainda que ali existam, como aponta o jornalista, uma infinidade deles.


Existe uma acompanhante que merece a atenção de todos. É o acompanhante de shopping center. Ele também conhece a vida como nínguém. É o equivalente urbano do acompanhante de banho de sol, e numa pior situação, vivendo num cenário que nada lembra a beira do mar. Cercado de concreto por todos os lados, também não tem ilusões sobre sua existência.É outro filósofo da vida.


É fácil encontrar um acompanhante de shopping-center, asta você entrar numa dessas grandes lojass de varejo que ostentam cartazes com a modelo ou com a atriz da novela do momento. Não há como errar. Você o encontrará de pé, com o olhar perdido entre as estantes de roupa. Ao seu lado, as vezes com as filhas - sim, é algo que se aprende desde pequeno - está a mulher que ele também acompanha. Ela está tomada por um "frenesi".


São centenas de mulheres que freneticamente buscam alguma coisa que faz parte delas em algum lugar da loja: vestidos, meias, calcinhas, óculos, brincos, seja lá o que for. Ela sabe que está lá, em algum lugar, esperando por elas. Basta apenas que procurem. Daí o frenesi. Seu medo é que outra encontre aquilo que por destino é seu antes delas. Daí a correria, o passar de olhos, o desviar-se de cada mulher, na verdade uma concorrente, que também, acompanhada de seu acompanhante de shopping, faz a festa.


Como o acompanhante do banho de sol, sua rotina é invariável. Inicia na quinta-feira, repete-se na sexta e no sábado. O acompanhante de shopping center é o mais fervoroso adepto do fechamento dos shoppings aos domingos: só assim ele pode descansar! Quase sempre na hora do jornal das 7, é chamado pela mulher com a mesma ordem: "- Vamos ao shopping! Ao shopping". Também não adianta argumentar que está sendo noticiado a queda das torres gêmeas ou que um vendaval toma as ruas da cidade. A justificativa é a mesma da mulher na praia: ela PRECISA ir ao shopping. O acompanhante vai, pega a carteira e as chaves do carro, o cartão da loja e em seguida vai.


No shopping, cabe ao acompanhante segurar a sacola aonde a mulher deposita os produtos. Segura-los é uma tarefa delicada. Se você imaginar que poderia pedir um tempinho para ir até a banca de revistas comprar o último exemplar do jornal e da revista que você mais gosta, única justificativa que você encontra para ir ao shopping, ou quem sabe, pedir um tempo para ir até a praça de alimentação para tomar uma cerveja, esqueça, porque se ela suspeita que você está prestes a ser iconoclasta - zaz!, recebe o desprezo da mulher, que lhe ralhará na frente de todos, inclusive do caixa, sem a menor piedade.


Depois que a mulher passou por todas as sessões, reviu e retornou várias vezes as mesmas roupas, e com clareza e distinção selecionou as peças que tomarão assento em seu guarda-roupas dali em diante, o acompanhante passa a exercer sua segunda atividade essencial: pagar a conta.


Ele olha para o cartão e sabe que está perdendo horas de sua vida e que deixa seu cérebro atrofiando em alguma sessão de roupas intimas. Seu olhar vazio é idêntico ao do acompanhante de praia, e por isso também merece ser reverenciado. Quando depois de passar o cartão, ele perguntar - vamos para casa? - ele receberá a mesma resposta que recebe o acompanhante de praia: "Mais tarde eu quero ir ao centro, comprar umas coisinhas..."

Robert Kurz: fundamentos para atacar o capital



Em Paris, Gilbert Molinier, professor de filosofia do colégio Auguste Blanqui protestou numa carta aberta à imprensa que sua escola estava tomando parte num jogo chamado Lês Masters de L´Economia. Tratava-se da distribuição de um portfólio de ações virtuais aos alunos que se obrigam com seus professores, chamados “padrinhos”, a maximizar seu valor em três meses. O vencedor ganha como prêmio uma viagem para conhecer a Bolsa de Nova York. Para Molinier, tudo resumia-se a questão da inexistência de fundamento pedagógico nisto tudo “Se nele aprendemos que importa somente o que traz dinheiro, queiram por favor responder a esta pergunta: somos obrigados, por dever de oficio, a ministrar as aulas?” . Num mundo onde de forma natural classes inteiras já se exercitam em cursos preparatórios para a constituição de empresas, em firmas escolares e campanhas de valorização do Espírito Empresarial, a questão da “comercialização da alma” nunca esteve tão atual.

A questão retorna quando me perguntam para exemplificar mais o que chamo de importância de renovar o marxismo - leia-se a postagem abaixo. É facil, basta ter em mente os referenciais teoricos realmente renovadores. Gosto muito de Robert Kurz, um excelente marxista alemão, autor de várias obras, entre elas “Com todo vapor ao colapso”(Ed. Pazulin/Ed. UFJF) coletânea de artigos de grande luminosidade.



Como seguidor e contestador do marxismo, Kurz superou-o apoiando-se, principalmente, nos vinte volumosos estudos do grupo da revista Krisis, anteriormente chamada de Marxistiche Kritik, publicados a partir de 1986. Escritor de grande sucesso - já vendeu mais de vinte mil exemplares de seu “O colapso da modernização” (Paz e Terra), Kurz é interlocutor privilegiado de expoentes do pensamento alemão como H.M Enzesberger, Ernest Lohoff e Peter Klein, com quem vem discutindo os conceitos marxistas de "fetichismo" e "valor". Inspirando-se em Marx, Kurz reconhece a lógica do valor como o centro da atual crise do capitalismo - aliás, ele foi o primeiro a antecipa-la. Critico ferrenho do processo que levou a reunificação das duas Alemanhas, analista em profundidade das causas da crise Argentina, e finalmente, um brilhante analista das formas de apropriação da subjetividade pelo capitalismo, suas teses enfatizam a idéia de que a história humana tem sido a história de relações fetichistas que não possibilitam a construção de nenhum sujeito social.

Kurz funda seu pensamento a partir de uma crítica aguda e um posicionamento original a um campo extenso de pensadores. Em que pese os avanços significativos da Nouvelle Histoire, (Ariés, Le Goff e cia), Kurz não poupa críticas " essas obras carecem de uma síntese desse material na perspectiva de uma história crítica da socialização ocidental, lhes falta a visão de conjunto capaz de viabilizar uma avaliação histórica renovada e orientar uma nova pauta de questões". Prefere Foucault, de Vigiar e Punir e Adorno, de Dialética Negativa, além de Habermas, Benjamim e Hobsbawn para fundamentar o seu pensamento "para além da esquerda". Também não esquece a contribuição de muitos pensadores clássicos, como Max Weber, Werner Sombart, Shumpeter e Keynes - deste útlimo, chega a recusar seus contenrâneos keynesianos de esquerda e suas "incursões pudorosas" em Marx, como o grupo Memorandum da Alemanha Ocidental.

É que Kurz acompanha em detalhe os acontecimentos contemporâneos e não se deixa iludir pela interpretação que lhes dão os filósofos de plantão. Analisando em detalhe os movimentos das grandes corporações, crítico das estratégias de marketing e das formas de tomada das consciências, no texto que dá titulo a obra emerge uma conferência publicada originalmente em 1995 e ainda inédita entre nós. Verdadeira pérola de análise ali Kurz resume as bases do pensamento que o orientará suas análises até hoje e que tem como principal efeito nos mostrar um lado original e nunca visto do capital. Após analisar o período pós-segunda guerra, sua conclusão é angustiante: “Foram atingidas pela crise as bases comuns de uma história de modernização de duzentos anos ou mais. Aqui trata-se de uma crise comum ao Ocidente e ao Leste Europeu, que não surge simplesmente do conflito de sistemas e seus critérios, mas que vem de muito mais fundo” Para Kurz, o capitalismo, apesar de ter sobrevivido, será a próxima vítima, e o marxismo, sua consciência crítica, revela-se parte daquilo que está em crise.

Kurz é o enunciador do conceito mais temido por dez entre dez economistas, o de crise da sociedade do trabalho. “Lembro-me muito bem como foi preocupante quando na Alemanha, no início da década de 80, o desemprego ultrapassou pela primeira vez o limite de um milhão de pessoas. Hoje, esta cifra seria uma notícia de sucesso”.A revolução de Kurz é apontar que o desemprego que se vê por toda a parte não se trata de um fenômeno cíclico mas normal do movimento capitalista, o fato de que já vivemos o colapso do trabalho em escala planetária. “Isto quer dizer que as cifras do desemprego não se reduzem na fase de recuperação cíclica da conjuntura, mas ao contrário, elas ainda se ampliam”. E, finalmente: “Hoje parece, ao contrário, que entra em crise o processo de transformação do trabalho em dinheiro, o que Marx chamava de trabalho abstrato, isto é, o dispêndio de cérebro, nervos, músculos na forma social de dinheiro, e assim, na reprodução do homem no contexto de trabalho-dinheiro-consumo de mercadorias – essa conexão do trabalho com o dinheiro é histórica e de forma alguma supra-histórica”.

Reunindo em “Com todo o vapor ao colapso” uma série de ensaios artigos de jornais - só na terceira parte são cerca de 15, a maioria publicados na Folha, é nos textos inéditos de conferências realizadas no Brasil e no exterior de Kurz que reside a novidade da obra. Ela combina observações avulsas, resumos dos debates ideológicos mundiais, revisões críticas à direita e esquerda e análises históricas em artigos que abordam temas como a financeirização do capital, a inserção internacional da América Latina e a expansão e crise da economia japonesa, agudizando conseqüências já indicadas em “Os últimos combates”. Kurz não vê possibilidade de uma recuperação do capitalismo de sua crise atual e da superação baseada na sociedade do trabalho, como o marxismo tradicional propõe. Este livro, mais do que os outros, critica o discurso econômico dominante, principalmente por que acredita que encarna de uma forma mistificada as contradições do capital e está estruturado por um jogo interno de categorias que é ao final das contas, fechado sobre si mesmo. Prefere retornar a Marx com o olhar voltado para o presente: ele sabe que a diferença de uma teoria econômica verdadeira de uma falsa é que a primeira busca as relações sociais e de poder escondidas sob o véu das relações econômicas, enquanto que a segunda aliena nosso conhecimento do real, reduzindo-se a uma visão descritiva, reafirmando o sistema.

Analisando casos concretos como o papel da intelligentsia, do imperialismo e da União Européia, Kurz mostra à esquerda que, antes de sair a rua brandindo slogans atrasados, é preciso conhecer os fluxos da economia internacional. É preciso superar as concepções ingênuas que fazem nos pensar que o desemprego é independente dos movimentos conjunturais da economia, que o sonho da emancipação social é possível na economia de mercado. É preciso, em suma, ver o capitalismo como o vencedor mais estúpido - parafraseando Barbara Tuchmann - que a história já conheceu. Kurz nos mostra o quanto no campo da realidade econômica está sendo apagada as fronteiras entre capital e trabalho, mas também entre existência e a aparência, a realidade e a simulação - guerra do Golfo, microeletrônica, nova mídia - e aponta para o fato de que, se a ciência econômica encontra-se numa crise, é preciso fundar um novo pensamento para compreendermos a globalização. Um pensamento que dê conta que a imagem que o ocidente faz de si mesmo - como mundo democrático, racional e livre - está por um fio - e que não serão os projetos de uma esquerda política "embolorada" que vai resgatar a vida humana como um todo.