terça-feira, 17 de novembro de 2009

O teledomingo e os vereadores



A cena onde o vereador João Dib é mostrado cortando as unhas na sessão da Câmara Municipal de Porto Alegre, transmitida pelo programa Teledomingo, é reveladora do descompasso que há entre o jornalismo contemporâneo brasileiro as instituições políticas da sociedade. A questão é: porque nossos jornalistas continuam a multiplicar o senso comum sobre o parlamento, algo completamente desconectada da realidade? porque continuam fazendo erros de apreciação e interpretação sobre o valor do legislativo? A verdade é há dois pontos envolvidos que merecem apreciação. O primeiro trata da experiência de sociabilidade que só o plenário possibilita e que tem um significado politico. A segunda trata do papel que jornalistas outorgam-se frente a sociedade e suas instituições e que precisa ser revisto. Unindo ambos, a idéia de que a atenção flutuante é um vício e que precisa ser corrigida. Vejamos em detalhe.
Nunca é demais repetir, a vida de plenário é a discussão acalourada dos projetos de lei e dos problemas da cidade. Mas é preciso entender o que a expressão "acalourada" também significa para a política. A imprensa tem medo de pensar sobre a política, sobre o político. Eles se contentam com o senso comum que aponta para seus defeitos, e não procuram a política profunda, lugar de suas virtudes. Com isto perdem o papel importante de buscar garantir a construção de uma cidade mais democrática onde os vereadores são importantes protagonistas. Isso acontece porque a imprensa se reconforta em suas próprias certezas, a idéia de fracasso da política. Isso é extremamente pernicioso quando vemos a imprensa como dispositivo de influência – para usar uma expressão adaptada de Michel Foucault - que significa que os jornalistas exercem uma autoridade importante na sociedade, afetando a opinião pública, mas seria melhor empregar esta autoridade participando do crescimento da esfera política positivamente e não contra ela.

Quando o Teledomingo registrou cenas de conversa e sorrisos, desvio de atenção e confabulações paralelas, o que é esse "burburinho de plenário" que tanta raiva produz na imprensa? Poderiamos resumir dizendo que é aquilo que Michel Maffesoli apontou como a "forte presença do festivo e do lúdico na vida contemporânea,[que] antes de ser seu aspecto frívolo, é um elemento essencial de coesão" e diriamos, inclusive coesão política. O plenário não é esta sala de aula ideal, onde alunos silenciosos concentram-se na matéria. A pedagogia há muito já abandonou esta idéia, ligada a tradição conservadora. E da própria pedagogia vem a explicação: Alicia Fernandez, a renomada educadora, denominou de “atenção flutuante” a essa situação na qual os jovens, em sala de aula, prestam atenção ao professor, ao mesmo tempo que ouvem música, rabiscam, olham pela janela . Esse "dispersar centrado", essa conversa à toa, característica do homem sem qualidades de Musil é parte integrante da vida social. Não há aula sem algum ruído, reconhecem os educadores.
É assim na vida. Todos nós, no trabalho, no dia a dia, paramos para dar espaço ao lúdico, é nosso grau de humanidade. Inclusive os jornalistas, que entre a produção de uma matéria e outra, param para jogar conversa fora, contam piadas, passam escondido receitas de bolo e o que mais vier. Mas o filtro deformador da ideologia diz que os vereadores não podem agir assim durante as sessões, que devem ao tempo todo concentrar-se na vida de plenário. O problema é que isto não é verdadeiramente humano, e é disto que se trata, de que tal crítica moralista é o roubo que se faz a experiência de plenário como uma experiência humana. É o que a visão limitada de jornalistas de plantão não conseguem entender, não percebem que se trata de uma forma de sociabilidade cujo resultado é o fortalecimento das alianças políticas, da confiança e do imaginário político local.

Pois o exercicio da vereança é o exercicio da camaradagem e da confiança entre os membros de um partido. É como na sala de aula, onde turmas constroem-se e se desfazem ao sabor das circunstâncias, na qual o efêmero do festivo é parte integrante de uma base solidária. Vereadores conversam durante uma sessão não por desrespeito a outros oradores, mas porque precisam desesperadamente criar vínculos. Para o autoritarismo de plantão, tal forma de vida é suspeita e os jornalistas tratam de denegri-la. Seu pretexto é sanar os males do parlamento, paradoxo que os transformam em percursores da morte do político quando deveriam lutar por uma política mais humana. A matéria do Teledomingo está no extremo oposto da vitalidade do plenário: a conversa jogada fora, a parceria constante, a alegria e o contentamento devem fazer parte do ser político como já fazem parte das relações sociais sadias. O programa acha que os vereadores são como crianças, que por conversarem entre si não farão o dever de casa. Nada mais errado, a infantilização é uma armadilha que os jornalistas inventam para enclausurar a política, os políticos sabem e fazem a política, param tudo para as discussões centrais, envolvem-se na medida dos debates, e na hora da votação, lá estão eles para atender suas combinações e alianças. Voi-la, bem vindo a política.

Os políticos são assim: eles brincam entre si, confabulam, criam cumplicidades para que a política possa ser exercida na base da confiança, o olho no olho. Este modo de ser não convém a arrogância jornalística, e como bem afirma Maffesoli, “ao contrário do que se pensa, o juízo de valor e o juízo normativo estão longe de ser bons instrumentos de apreciação”. Quer dizer, de tanto querer que os políticos se encaixem no seu modo do que deve ser a política, os jornalistas passam ao largo da sociabilidade política que funda sua ação. Como diz Maffesoli, em A República dos Bons Sentimentos, é dessa interpretação que se apresenta como a correta, a boa, e que não é, é que faz da imprensa um dispositivo de influência pernicioso para a sociedade. É só olhar o que o Teledomingo selecionou: imagens tomadas ao acaso, do cotidiano: onde ficaram os registros das discussões do Plano Diretor, do Estaleiro e tudo o que foi realmente relevante na vida da cidade?


Mas há mais. O modo como o jornalismo tem defendido a necessidade de transformar a política em fato de mídia, estabelece uma relação de parcialidade com a esfera pública. Ela é típica dos veículos de massa, e nas palavras de Dieter Prokop, esse grande estudioso dos fenomenos de comunicação, sua base é o processo galopante de de reelaboração da dimensão política cujo efeito é a perda da capacidade de transformação que esta dimensão busca alcançar. Dieter Prokop diz para procuramos o modo de construção sígnica de tudo isto, o modo como os elementos são amarrados entre si, seus signos. Por exemplo, na telenovela. A telenovela só parece ser a realidade: ela é uma reconstrução, uma seleção de cenas, imagens, que em nada retratam o dia a dia. Porque retratar o dia a dia é algo impossível: alguém vê o médicos da novela Viver a Vida em suas rotinas, em seu cotidiano? Pela organizaçaõ do veiculo de comunicação, Isso é simplesmente impossível, o que vemos são recortes do recreio de escolas, cenas do interior de hospitais, numa reconstrução cujo principal efeito é matar a realidade do mundo que pretende registrar. Da mesma forma com a imprensa, que mata a política ao mostrar as cenas que julga exemplares do cotidiano da vida pública.

Como nas novelas, o jornalismo tem como característica a reelaboração da realidade. Seleciona o que lhe convém. Isto outorga um imenso poder ao jornalista, aos redatores do Teledomingo, que através de sua visão da política, oferece ao telespectador uma imagem parcial dos acontecimentos políticos, que é a sua verdade do que seja a política. Nada mais falso.

A idéia básica nesta reconstrução é que a ação política não se dá pelos feitos dos vereadores, mas pela aparência da política: nesse sentido, ávidos por imagens, cinegrafistas e jornalistas dirigem-se aos parlamentos a busca dos flagrantes da política, aquelas cenas e imagens que em nada condiz com os objetivos do parlamento. Não é que o parlamento não tenha seus defeitos, como de fato tem. O problema é que a reconstrução da sua imagem pública é parcial e limitado, pelo simples fato de que oculta da sociedade seus méritos.

O problema é que quando escolhem este objetivo, o Teledomingo colabora para construir o imaginário que joga o parlamento na lata do lixo da história, e cuja principal conseqüência todos conhecemos – desprezo a questão dos direitos humanos, desprezo as conquistas da cidadania. Seu redator dirá: mas eu estive lá e vi. E o parlamento responde: sim, mas o que você viu foi pouco e selecionou o que bem entendeu. Parcialidade tem nome: ideologia.

Um vereador, atingido pelas imagens, perguntou: onde estão os jornalistas quando os vereadores legislam sobre a cidade? É justamente esta a questão. Ao selecionarem o que queriam divulgar, revelam a visão do parlamento que tem os jornalistas. Esquecem que o mesmo vereador que corta unhas no Plenário foi Prefeito de Porto Alegre, foi consagrado pelas urnas por várias legislaturas, com um trabalho social reconhecido na comunidade. Negar-lhe seu instante de humanidade é desrespeitoso. Filma-lo em um instante da vida cotidiana é uma forma de violência. Justamente para aqueles que lutam pelos direitos dos jornalistas em exercerem dignamente sua profissão, que buscam a defesa dos jornalistas quando estes vêem violadas suas condições de trabalho, que prestam informações e atendem solicitamente os jornalistas que os procuram ávidos por matérias, como foi no caso do Portal do Estaleiro e do Plano Diretor.

Os redatores do Teledomingo podem ter mais critério quando desejam registrar o cotidiano do parlamento, o que significa escolher como pautas as que definem a ação política e não deixar-se levar pelo senso comum de plantão. Os vereadores deverão – e isso já é há muito tempo cobrado pela própria institução – procurar concentrar-se mais nos debates, já que nos momentos de votação isso já acontece sem cessar - mas sem perder la ternura jamais. Mas negar a vida de plenário as caracteristicas da vida cotidiana, renegar a presença do sorriso, do lúdico, da brincadeira enquanto homens e mulheres trabalham pelo destino da cidade é negar-lhes o direito a uma humanidade que todo o individuo tem. Isto tem um nome: ditadura.

Um comentário:

  1. Jorge,
    Brilhante o teu artigo.
    Vou divulgar.
    Vou publicá-lo no meu blog.
    Vereador ADELI SELL

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