quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O pianista e o comandate






Depoimento de sobrevivente do acidente do navio italiano citado por Zero Hora diz que, em meio à tragédia, o pianista continuava a tocar. A imagem tem sentido não pela comparação equivocada que se possa fazer com outra tragédia, a do Titanic, prestes a completar seu centenário, mas com outra imagem, a do capitão do navio, agora responsabilizado pelas autoridades. Se Marx está certo e uma tragédia só se repete como farsa, do que se trata o naufrágio do navio Costa Concordia e o que ele tem a nos ensinar?


A tragédia do navio naufragado está mais para as Twin Towers do que para o Titanic. O que surpreende não é o fato óbvio de que se trata de mais um navio a naufragar, mas de um objeto que se pensa indestrutível vir abaixo, exatamente como as Torres Gêmeas. Lá, um ato aparentemente irracional do terror – que de irracional não tem nada – destrói um prodígio arquitetônico, símbolo de uma nação. Aqui, um ato aparentemente irracional de seu comandante destrói um prodígio náutico, símbolo da vida de consumo de nossa época. O que está em questão nunca foram os navios ou prédios – sim, claro, nos padecemos por sua vítimas etc., etc., – mas o que é derrubado, o que afunda realmente são as nossas certezas frente à técnica. Estou na praia escrevendo estas linhas: como é possível que barcos que vejo no horizonte, primitivos e toscos, possam manter-se de pé enquanto o imenso e indestrutível bólido aquático, com todo o seu sistema de proteção, afunda nas imagens?


É na relação do comandante e do pianista que encontra-se a resposta. Sim, é sempre no homem, no que crê e no que baseia sua existência, que está a resposta. No mundo do individualismo obsessivo, do cada um por si na escalada capitalista, pode-se agora encontrar um capitão de navio disposto a deixá-lo antes da hora: fim da ideia de cumprimento do dever. Por isso é tocante a imagem do pianista – seja o relatado pelos viajantes do Titanic, o representado no filme de James Cameron e agora atualizado na fugaz imagem de um instante visto por um sobrevivente e que nos diz mais do ser humano do que anos de filosofia: trata-se, mais uma vez, da questão da ética do dever, que retorna para nos lembrar do que somos e do que devemos fazer.


Devemos fazer aquilo para o que nos preparamos a vida inteira, numa palavra, fazer o certo. Assim como a mensagem inscrita no monumento Osório, o caminho do dever é árduo mas é o único que nos diz que somos seres livres, capazes de fazer escolhas não por nossos instintos mas pela certeza de realizar o que é belo, justo e perfeito. A farsa da tragédia é sugerir que, só porque são espetaculares, nossos inventos são indestrutíveis e que, corrigindo suas falhas, nunca mais ocorrerão. Ao contrário, quanto mais espetaculares inventos criamos, mais frágeis nos tornamos. Frente a esta tragédia, é preciso lembrar que só fortalecendo o homem – seu caráter, sua consciência – e não seus inventos, que se fará a diferença.


Publicado em Zero Hora 14/01/2012
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