sábado, 26 de junho de 2010

Sobre o poder das cartas

Recebi uma carta de Paul Virilio. Eu havia enviado uma carta a ele convidando-o a um evento em Porto Alegre. Eu sabia que Virilio não responderia um e-mail, mas que eu tinha grandes chances de ter uma carta respondida. Cartas são artesanais; e-mails, industriais; cartas são pessoais; e-mails são impessoais; cartas são demoradas, mas que valor tem as respostas se não temos expectativas.

Paul Virilio sempre manifestou em seus livros seu ceticismo com a tecnologia. Esse arquiteto e filosofo tinha algo da Escola de Frankfurt, na crítica a tecnologia. Mas ela não vinha de um marxismo de formação, ao contrário, vinha de sua experiencia de vida, como sobrevivente da segunda guerra mundial.

Quis traze-lo a Porto ALegre, mas ele disse que não vem, há muitos anos não sai da França. O maior dos filosofos franceses prefere dizer o que tem a dizer ao mundo por seus livros, não se interessa em viajar. Não se interessa por grandes conferencias. O autor de Velocidade e Política, entre outros títulos, que teve o pensamento retratado em um documentário da tevê francesa, continua um homem que critica o presente para manter o valor das coisas do passado que realmente importam . Cartas.

O mundo de cartas auxilia mais nossa memória do que os recursos tecnologicos. Vou emoldura-la.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Homenagem a Lauro Hagemann

A Cãmara Municipal é muito criticada pelos eventos e homenagens que realiza. Consideradas perda de tempo e de pouca serventia para as funções de desenvolvimento da cidade, é o tipo de lugar que recebe criticas da imprensa e dos formadores do senso comum. Nada mais equivocado quando se trata de constatar o seu papel de reforço da memória social que cumpre para a cidade. Homenageamos porque queremos fixar na memória social a constribuição de um determinado ator social. Mais, homenageamos porque a cidade, para se desenvolver, precisa de referências, símbolos nos quais se agarrar, modelos de ética e valor, exemplos de trabalho e dedicação

Hoje recebeu o título honorífico da Câmara Municipal o ex-vereador Lauro Hagemann. Título merecido por anos de dedicação a cidade. Lauro Hageman foi a voz do Reporter Esso por décadas, foi comunista e assumiu os riscos que tal filosofia representava durante o arbítrio. Conheci-o como vereador, já lá se vão vinte e cinco anos, logo que ingressei na Cãmara Municipal, como vereador do PCB, que então propunha temas sociais a pauta do legislativo, acompanhava as lutas de moradores de rua, sem terra - os excluidos sociais e o nascimento dos movimentos urbanos.

A cerimonia contou com a presença do Prefeito, mas também de uma geração que acompanhou a trajetória de Hagemann. Ele, com sua voz penetrante, soube retribuir os elogios. O diálogo entre Hagemann e João Dib, outro patriarca do Legislativo, do alto dos seus oitenta e um anos (para um, oitenta para outro), era repleto de companheirismo. A cena reforçava a idéia de geração política, de uma política que começa a ser construida com base na técnica, no conhecimento, na informação. Hagemann, que trazia leituras do marxismo para a prática política; Dib, que trazia a experiência de administrador - ele é engenheiro - para o parlamento. É, numa palavra, ambos representam os primordios do nascimento de uma geração mais intelectualizada e menos populista no parlamento, uma geração que começa a falar com conhecimento de causa e não com discursos preparados por assessores; uma geração que começa a se especializar em áreas da cidade, e não vive fazendo política sobre tudo o que vem pela frente. Exemplo de cidadão e homem público, a homenagem é merecida.

As homenagens do poder legislativo não são perda de tempo. Ao contrário, cumprem a importante função de constituir um espaço de preservação da memória da cidade. E nisto, ainda tem muito a contribuir.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O segredo perverso da igreja

No filme “A noviça rebelde”, a jovem Maria (Julie Andrews) sai do convento onde vive para trabalhar na casa do capitão Von Trapp (Christopher Plummer), viúvo que tem sete filhos. Maria educa as crianças carinhosamente mas não sabe o que fazer com sua atração sexual pelo capitão Von Trapp. Retorna ao convento, onde a madre superiora, através de uma canção, a aconselha a voltar para resolver sua relação com o barão. A canção intitulada “Escale todas as montanhas” (“Climb Every Mountain!”) diz mais ou menos ou seguinte:”Vá lá, faça! Corra o risco! Faça o que o seu coração está pedindo; não deixe que considerações pequenas se interponham em seu caminho”.

A lembrança da cena vem de Slavoj Zizek, que escreveu críticas a ideologia da igreja, entre elas “A marionete e o anão: o cristianismo entre a perversão e a subversão” (Relógio d’Agua, 2010). Ela serve para ilustrar as relações profundas entre a ideologia cristã e a sexualidade, já que para o autor, é surpreendente no filme a defesa da manifestação do desejo justamente pela pessoa de quem mais se poderia esperar que pregasse a renúncia e a castidade. Algo semelhante ocorre quando vemos Dom Dadeus Grings, Arcebispo Metropolitano de Porto Alegre, em entrevista a Zero Hora (4/6/2010) confirmar as declarações polêmicas dadas na 48º Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em Brasília, no inicio de maio. Enquanto Grings defende a ideia de uma sociedade pedófila, para Zizek a pedofilia dos padres é específica porque faz parte da própria identidade da igreja enquanto instituição - a abundância de casos de molestamento sexual de crianças não pode ser apontado como “considerações pequenas” neste caminho.

A tese de Zizek é grave mas vale a pena acompanhar seu raciocínio. Para a psicanálise, o que está em jogo é o significado desta atitude defensiva às avessas adotada pelo sacerdote. De fato, quando as primeiras denúncias de pedofilia envolvendo padres vieram a público, a igreja as acusou de propaganda anticatólica e tentou minimizar seus efeitos. Eram consideradas parte de um suposto “problema interno” que cabia à igreja resolver. A repercussão internacional do depoimento de Don Dadeus Grings mostra que a igreja mudou de estratégia: já não se trata de assumir a pedofilia como problema interno, mas rejeita-la do seu meio, com o argumento de que faz parte de toda a sociedade.

Segundo Zizek isto é um problema porque desvia a atenção daquilo que deveria ser central à análise, a problematização da natureza da igreja enquanto instituição sócio-simbólica. A força do argumento advém do fato de que nos tira toda a capacidade de questionarmos o inconsciente da instituição e nos impede de uma vez por todas, de colocamos o problema complexo da perversão da igreja. Para Zizek, esta perversão é algo de que ela necessita para poder se reproduzir, seu segredo obsceno mais interno “identificar-se com esse lado oculto é um elemento chave da própria identidade de um sacerdote cristão. Se o padre denunciar esses escândalos seriamente (não apenas da boca para fora), ele estará se excluindo da comunidade eclesiástica. Deixará de ser “um de nós”, exatamente como um cidadão de uma cidade do sul dos Estados Unidos, na década de 1920, se denunciasse a Ku Klux Klan à policia, se excluía de sua comunidade, ou seja, traia sua solidariedade fundamental”

A dissolução do problema da pedofilia da igreja na própria sociedade em nada ajuda a resolver os casos criminosos de membros da instituição. A discussão da existência ou não de um lado perverso da igreja “em si” está apenas começando e deve ser aprofundada. Se a igreja quer se ver livre do problema da pedofilia dos padres, deve encarar seriamente a questão da parte de sua responsabilidade enquanto instituição nesses crimes. E este debate a igreja ainda não realizou.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Onde foi parar a memória?




A homenagem do Vereador João Dib ao Prefeito de Porto Alegre Loureiro da Silva é comovente por ser a demonstração do status atual da memória em nossa sociedade. Na sociedade fugaz da informação, não há tempo para homenagear nossos antepassados. Poucas pessoas interromperam seu dia para acompanhar João Dib em sua homenagem. Mas ele estava lá e com ele parte da responsabilidade da sociedade portoalegrense com seu passado não passou em vão.
O olhar atento de João Dib tem razão de ser. Loureiro da Silva foi um governante excepcional. Figura pública que possibilitou a feição moderna da capital, seu conjunto de obras, realizados em dois governos, resultou em transformações que ainda são visiveis para todos: o Arroio Dilúvio, a Assis Brasil, entre tantas obras, entraram na vida cotidiana dos portoalegrenses por sua obra. E por esta razão, desapareceram, como acontece com os fatos do passado, totalmente integradas ao cotidiano da cidade. Pois, para quem é recém chegado, é exatamente isto, a sensação de que sempre estiveram lá, o que não acontece.

Alias, é justamente pelo contraste de uma sociedade antiga e que não conheceu as transformações urbanas de Loureiro e uma sociedade atual, para quem suas inovações perdem-se no dia a dia, é que a cena deve ser valorizada. Pois o que está aí é merito dos que vieram antes e foram responsaveis, contra tudo e contra todos, pela construção de políticas públicas. Inovadoras, no caso de Loureiro. Avançadas, no caso do Dilúvio; urbanisticamente fundamentais, no caso da Assis Brasil. Loureiro, que está ali na frente da Cãmara, com qual dialogou, diante de obra que leva seu nome, ainda assim não consegue chamar a atenção do presente pelas obras que fez no passado. Mas sua estátua está lá, e de certa forma ela diz a esta mesma sociedade que problemas urbanos requerem soluções urbanas; o cenário natural tem um destino cruel, a de ser transformada pela ação humana. Com Loureiro, foi para melhor. Nem sempre é assim.


Loureiro da Silva teve uma visão de futuro insuperável para a cidade e que poucos administradores públicos tem. Que tem deixado a marca nas gerações políticas que seguiram, foi fundamental para que seu projeto continuasse de pé na capital. João Dib, que assumiu a Prefeitura inspirado em sua gestão, jamais abandonou a influência do pensamento de seu mestre. Reconhece seu valor em seus discursos, enaltece-o. Porquê? Porque precisamos desesperadamente de exemplos na política, na gestão pública. O exemplo sempre tem uma função pedagógica, sempre tem uma função educativa. Ele mostra o que é bom e ajuda-nos a diferenciar do que é mau; mostra que frente a limites, é preciso a superação, inclusive nas formas de governo; indica que cada geração tem uma responsabilidade com o futuro - daí o planejamento - e com o passado - jamais esquecer seus antepassados.

No mundo em que vivemos, parece que não há mais herança política. Nasce-se político, emerge-se por mágica da força dos meios de comunicação. Em realidade, a tradição ainda é uma força atuante, e uma geração política tem o que dizer a geração política seguinte. Por isso a cena tem sua importância. Em realidade, são duas gerações, e não apenas uma, de fazer política na foto. E saber reverenciar o legado é o minimo que se pede de dignidade aos políticos atuais.

A memória está por entre os fios, e com ela, a memória política. A razão deve ser buscada numa sociedade baseada na instantaneidade da informação que faz o novo perecer rapidamente frente ao mais-novo. A transmissão da memória é tão importante quanto a transmissão do saber. È preciso saber distinguir o que, por superfluo, merece ser esquecido daquilo que, por fundamental, merece ser lembrado.
O que vale para a memória social vale para a memória política. Tradição não é sinonimo de velho ou arcaico. Tradição significa que temos um elo entre o presente e o passado. O gesto de homenagear de Dib merece ser visto pela grandeza do homem público que não esquece quem são parte integrante de seu projeto, de sua memória. De que principalmente em política, nada é feito sozinho e que somos sempre devedores do legado de alguém.