No filme “A noviça rebelde”, a jovem Maria (Julie Andrews) sai do convento onde vive para trabalhar na casa do capitão Von Trapp (Christopher Plummer), viúvo que tem sete filhos. Maria educa as crianças carinhosamente mas não sabe o que fazer com sua atração sexual pelo capitão Von Trapp. Retorna ao convento, onde a madre superiora, através de uma canção, a aconselha a voltar para resolver sua relação com o barão. A canção intitulada “Escale todas as montanhas” (“Climb Every Mountain!”) diz mais ou menos ou seguinte:”Vá lá, faça! Corra o risco! Faça o que o seu coração está pedindo; não deixe que considerações pequenas se interponham em seu caminho”.
A lembrança da cena vem de Slavoj Zizek, que escreveu críticas a ideologia da igreja, entre elas “A marionete e o anão: o cristianismo entre a perversão e a subversão” (Relógio d’Agua, 2010). Ela serve para ilustrar as relações profundas entre a ideologia cristã e a sexualidade, já que para o autor, é surpreendente no filme a defesa da manifestação do desejo justamente pela pessoa de quem mais se poderia esperar que pregasse a renúncia e a castidade. Algo semelhante ocorre quando vemos Dom Dadeus Grings, Arcebispo Metropolitano de Porto Alegre, em entrevista a Zero Hora (4/6/2010) confirmar as declarações polêmicas dadas na 48º Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em Brasília, no inicio de maio. Enquanto Grings defende a ideia de uma sociedade pedófila, para Zizek a pedofilia dos padres é específica porque faz parte da própria identidade da igreja enquanto instituição - a abundância de casos de molestamento sexual de crianças não pode ser apontado como “considerações pequenas” neste caminho.
A tese de Zizek é grave mas vale a pena acompanhar seu raciocínio. Para a psicanálise, o que está em jogo é o significado desta atitude defensiva às avessas adotada pelo sacerdote. De fato, quando as primeiras denúncias de pedofilia envolvendo padres vieram a público, a igreja as acusou de propaganda anticatólica e tentou minimizar seus efeitos. Eram consideradas parte de um suposto “problema interno” que cabia à igreja resolver. A repercussão internacional do depoimento de Don Dadeus Grings mostra que a igreja mudou de estratégia: já não se trata de assumir a pedofilia como problema interno, mas rejeita-la do seu meio, com o argumento de que faz parte de toda a sociedade.
Segundo Zizek isto é um problema porque desvia a atenção daquilo que deveria ser central à análise, a problematização da natureza da igreja enquanto instituição sócio-simbólica. A força do argumento advém do fato de que nos tira toda a capacidade de questionarmos o inconsciente da instituição e nos impede de uma vez por todas, de colocamos o problema complexo da perversão da igreja. Para Zizek, esta perversão é algo de que ela necessita para poder se reproduzir, seu segredo obsceno mais interno “identificar-se com esse lado oculto é um elemento chave da própria identidade de um sacerdote cristão. Se o padre denunciar esses escândalos seriamente (não apenas da boca para fora), ele estará se excluindo da comunidade eclesiástica. Deixará de ser “um de nós”, exatamente como um cidadão de uma cidade do sul dos Estados Unidos, na década de 1920, se denunciasse a Ku Klux Klan à policia, se excluía de sua comunidade, ou seja, traia sua solidariedade fundamental”
A dissolução do problema da pedofilia da igreja na própria sociedade em nada ajuda a resolver os casos criminosos de membros da instituição. A discussão da existência ou não de um lado perverso da igreja “em si” está apenas começando e deve ser aprofundada. Se a igreja quer se ver livre do problema da pedofilia dos padres, deve encarar seriamente a questão da parte de sua responsabilidade enquanto instituição nesses crimes. E este debate a igreja ainda não realizou.
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