domingo, 25 de outubro de 2009

As monstruosidades do Capital


Foi o meu grande amigo Voltaire Schilling que lançou o debate sobre os monumentos artisticos que existem na cidade e que segundo ele, são abominações deixadas como doação por artistas que não querem arcar com o translados de suas obras (A capital das monstruosidades, Zero Hora, 25 de outubro). Ele pede a Sergius Gonzada que levante recursos e promova uma "ação entre amigos" para despachar tais coisas para qualquer outro lugar. Respeitosamente, devemos ver um pouco com mais profundidade do que realmente se trata.
Eu me lembro de uma discussão parecida, alguns anos atrás, sobre o destino dos prédios do Deprec, situados ao lado da Usina do Gasômetro. Autoridades, arquitetos e artistas estão geraram a epoca um debate e autoridades manifestaram-se pela demolição, com o argumento de que "como não havia acesso da população antes da transferência da área do Estado para o Município, esses galpões não fazem parte da memória afetiva da Capital".


Tais questionamentos me vem de novo a mente quando vejo o ilustre professor criticar as esculturas e monumentos que em sua opinião não tem caráter estético algum. Não me coloco no pedestal para julgar tais obras, asntes o que me chama a atenção é a questão de como chegamos a isso. Por que o governo municipal, tão solícito quanto as questões culturais, com um quadro de técnicos sérios, honestos e competentes, aceitou tais monumentos? E tirar obras de arte de caráter duvidoso durante a realização da Bienal de Arte não me parece ser algo racional. A explicação que encontro é a seguinte: tais obras existem e foram aceitas pelo governo e estão construindo seu valor histórico e patrimonial . Mas, no fundo, no fundo, não são esses monumentos que me chamam a atenção, já que acredito que sua unica função seja exatamente esta, provocar a discussão. Preocupa-me, ao contrário, outra monstruosidade, que o Prof. Voltaire não se referiu e que para mim é importante: a padronização e reforma dos equipamentos urbanos da cidade, baseado na criação de um "novo mobiliário urbano".


O leitor há de concordar comigo de que se caminharmos pelo centro da cidade, encontraremos uma série de equipamentos novos que tem o aparente objetivo de tornar a cidade "mais moderna", "mais funcional", "mais adequada ao século XXI". Caminhemos nas proximidades do Mercado: o novo abrigo de ônibus, um pouco mais adiante, na Rua Uruguai, as coberturas dos terminais de ônibus e finalmente, a cobertura metálica do Mercado Público - aliás, quem se recorda daquela sensação de "estar perdido", que só antigo o mercado produzia?


Não sou contra aos ajustes funcionais que toda uma metrópole deve ter para melhor funcionar. Apenas questiono se não aceitamos muito rapidamente o fato de que deixamos os governos maquiarem a cidade com a ajuda de um design clean do mobiliário urbano enquanto que as obras de arte que rompem de alguma forma essa imagem são criticadas imediatamente por todos. Essa é uma tendência que começou a se definir na paisagem das cidades européias na década de 80 e 90. Originária de Barcelona, chegou ao Brasil através da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, que de imediato colocou designers, arquitetos e urbanistas para discutir os rumos do desenho da capital, provocando grande debate entre os cariocas.


Para alguns estudiosos, esse desenvolvimento em larga escala de novos equipamentos urbanos, a adoção de uma retórica oficial sobre novos espaços públicos, o aumento pelo interesse pela estética e planejamento urbano, a aquisição de obras de arte para cidade são fenômenos que transformam-na em suporte para a ideologia. Manuel Castells em "A sociedade de informação", aponta que as cidades são agora marcadas pelos fluxos, palavra chave para as redes de computadores que também servem como metáfora para compreendermos o que se passa no desenho das cidades.
Externamente, vemos que as cidades passam a se relacionar numa mesma rede planetária que ameaça a soberania dos estados nacionais. Internamente, os fluxos da cidade sofrem modificações, como as que vemos em face o surgimento dos shoppings-centers. Seguindo o raciocínio, Porto Alegre sob a condução da Administração está adentrando no estágio pós-shopping, a nova etapa de organização dos fluxos da cidade, caracterizada pelo incremento de um novo mobiliário urbano que tem como objetivo fazer Porto Alegre semelhante a cidades tão distintas quanto Paris, Madri, Barcelona e Rio de Janeiro. Distintas em história. E voi-lá, para os técnicos, Viva!, adentramos na Modernidade!
Nada mais falso, por que a cidade está cansada desta ideologia de Modernidade que está aí para substituir a antiga dialética subdesenvolvido-desenvolvido; a arte está cansada desta dialética do sentido, de colocar obras em algum lugar para significar alguma coisa - ela não quer significar coisa alguma, ela só quer proliferar ao infinito. Tais ações só fazem o papel de um espelho convexo e deformador cujo efeito paradoxal é o de neutralizar o caráter político da arte e da participação dos cidadãos nesse processo - até que ponto a escolha de nomes para equipamentos "pré-definidos" é "participação popular"? até que ponto é democrática uma administração defende o patrimônio histórico, se a primeira oportunidade, deseja substituir o pretenso "obsoleto" e "velho" pelo "moderno" e "novo"?


A pergunta sobre que significado simbólico possuem os atuais projetos de reformas urbanas e arquitetônicas, os sentidos possíveis para a arte, o tipo de ideologia urbana que encarnam e como é vista a evolução biológica, social ou tecnológica da cidade que os portoalegrenses experienciam deve acompanhar do inicio ao fim as decisões dos políticos. Estas são as verdadeiras questões que nosso ilustre professor poderia lançar ao debate, ao invès de criticar obras que - e convenhamos, ele tem razão em algumas - ocupam um pequeno espaço do debate.


Sou contra toda destruição do patrimônio cultural e não aceito que seus "simulacros" (Baudrillard), como o atual Mercado do Bom Fim, reconstruído a imagem e semelhança de um original, sejam tomados como o "real". É preciso estar atento ao fio tênue que separa o design do mobiliário urbano como instrumento para o bem da cidade, de outra coisa que só promove a afirmação do poder. Um exemplo dá o sentido da discussão que proponho. Rosalyn Deutsche, no livro Evictions, afirma que em Nova Iorque, a reprodução de luminárias e quiosques do século 19 no Union Square Park e o mobiliário urbano tradicional em Battery Park City ajudaram a "criar uma imagem de estabilidade e continuidade na vida urbana". Sua intenção é mostrar que é possível revitalizar o centro urbano de forma coerente de formas que não passam, exclusivamente, pela substituição do "velho" pelo "novo". E o papel do Estado é justamente, o de buscar a conciliação entre o capitalismo global e a tradição.


O governo deve estar atento: deve cuidar para que nossa cidade não se transforme em um living room atolhado de móveis supérfluos e geradores de poluição visual cuja principal consequência é a destruição da memória. Deve ser severo quando se trata da destruição de antigos equipamentos e sua substituição por novos, somente o fazendo quando plenamente justificados e absolutamente necessários. Deve ser criterioso quando se trata de julgar obras de arte espalhadas pela cidade, sem deixar-se levar pelo subjetivismo. Precisa resistir a tentação de ceder ao grande poder publicitário e a força da iniciativa privada, que tende a cada vez mais a ocupar os espaços públicos em detrimento da memória da população - ainda que o marketing cultural esteja em alta. Agindo assim, toda intervenção urbana terá como resultado, dar subsídios aos habitantes para que possam conviver com seu passado para, compreendendo seu presente, exigir seus direitos de cidadão.
A questão não é se Porto Alegre se transformou na capital das monstruosidades pelas obras "feias" que carrega, mas se o Capital não está fazendo mostruosidades com o cenário urbano de forma geral.

Um comentário:

  1. Jorginho, teu texto deveria ter ido para o jornal para que todos leiam! Tentaste publicar?

    Abraços
    Zita

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