sábado, 21 de abril de 2012

Sobre a cidade


O filósofo Karl Gottlob Schelle, em “A arte de passear”,dizia que viver continuamente em atmosferas confinadas amolece o espírito e enfraquece o bom senso. Não causa a morte, mas é uma condição indireta. Observando o cotidiano da classe média em Porto Alegre, como a de qualquer outro lugar, alguma coisa parecida acontece. Vivemos marcados por espaços fechados, da casa para o trabalho de carro e nas horas de lazer, os  shoppings – o que sua expansão só fará o quadro piorar. Mas o que realmente diferencia a vida numa cidade é o uso que fazem seus cidadãos do espaço público. Será que o portoalegrense realmente frequenta os espaços públicos de sua cidade? È que queremos ser cidadãos mas nos comportamos como consumidores na cidade.  Se ficamos em espaços restritos quase todo o tempo, podemos dizer que temos vida urbana saudável para comemorar no aniversário da Capital?

É que a lógica metropolitana tem um lado perverso. Em nossas periferias, bairros inteiros estão se convertendo em territórios proibidos.  Novos territórios de povoamento surgem nos conjuntos habitacionais populares financiados pelo Estado que, à maneira das colônias do passado, levam para zonas urbanas distantes uma população pobre vista como massa.  O espetáculo da pobreza no centro da capital amplia-se para mostrar a infrahumanidade (Virilio) portoalegrense. Recordemos que até bem pouco tempo, a Prefeitura criou uma “Secretaria dos Direitos Animais” criticada justamente porque para muitos eram os seres humanos que estavam em situação de risco. Nossa cidade não é uma festa de aniversário, é um campo de batalha.

Basta olhar a geografia da cidade. Você vai de norte a sul e o quê vê na paisagem? Inúmeros novos condomínios surgindo a cada momento, lugares isolados, comunidades fechadas, mundos separados dentro da cidade. A cidade cresce por separação, esses novos enclaves são as pequenas fortalezas da elite, outra forma da desintegração de nossa vida comunitária. Precisamos, para comemorar o aniversário da cidade, de uma estratégia oposta de desenvolvimento, baseada na criação de mais espaços públicos, abertos e acolhedores, que o cidadão tenha vontade de freqüentar e compartilhar de bom grado. Onde possa fortalecer seus vínculos sociais.

Não sejamos pessimistas! Nossa cidade tem inúmeros aspectos positivos sim, que a arte e a literatura já registraram à exaustão. Mas desde que Leandro Selister colocou seu painel com mais de cem metros mostrando a vista do Guaíba se o muro não estivesse lá, a capital adornou-se de um toque pós-moderno original. De certa forma, ali está nossa verdade: podemos imaginar, como sempre fazemos no aniversário da Capital, que vivemos no melhor dos mundos, mas isto ainda é uma ilusão. A capital é lugar de alegrias e tristezas, mas se é preciso que o governo diga aos cidadãos que eles precisam “cuidar da cidade”, é porque há muito tempo, os portoalegrensens já não sentem mais a cidade como algo que seja seu. Transformar o aniversário da cidade em um festival de cultura, é bom, mas não devemos ficar nisso somente. É um momento importante pensar políticas públicas, o "como" construir uma cidade melhor, que é sempre, uma Porto Alegre mais solidária. Quem sabe, em 2022, quando completar seu quarto de século, os cidadãos, sem que ninguém os chamem, cuidem de sua cidade de uma forma natural e que isso seja parte da educação de seus filhos. 

O plenário como pedagogo


Zero Hora do último domingo fez uma extensa matéria sobre a Câmara Municipal de Porto Alegre. Para conhecer o que a Câmara faz  recomendo a leitura de “Dez Anos de Leis e Ações Municipais” obra lançada pelo Legislativo no ano passado com quase trezentas páginas nas quais pode ser visto exemplos do trabalho dos vereadores e suas ações na construção de políticas públicas na cidade. Ela é distribuida gratuitamente pela Câmara Municipal. Vá lá e pegue seu exemplar, é grátis.

O ponto de partida da matéria é que o Plenário é uma sala de aula. Não, não é, não no sentido ali atribuído. Você até pode usar a comparação para explicar o funcionamento do plenário para crianças,  mas ela não cabe numa matéria à altura de ZH. O plenário é o espaço de debates superior da cidade. No seu interior a produção de legislação responde a necessidade que nossa sociedade tem de pré-selecionar sua agenda de opções, numa palavra, o que pode e não pode fazer. Os vereadores fazem escolhas no plenário antes que os cidadãos possam fazê-las e a legislação produzida ali separa o reino da viabilidade prática do das possibilidades teóricas dos cidadãos. Quer dizer, estabelece o conjunto de restrições que os individuos necessitam seguir na sociedade para viver melhor. Não há nada nisso que lembre uma sala de aula.

O problema da comparação é que ela corre o risco de suscitar no leitor aquilo que Jacques Ranciére denominou de “ódio `a democracia”: ela incita no cidadão a idéia de que, se nossos vereadores são capazes de perder todo o seu tempo com “bobagens”- o que reputo, não é verdade - é porque eles não merecem o nosso respeito, primeiro passo para o nascimento do sentimento de ódio para com nossas instituições. O problema da comparação é sugerir ao leitor que a socialidade politica - a presença da ironia e da brincadeira – seja a própria natureza da vida do plenário, e não é. A natureza do plenário é fazer leis para a sociedade. O "papo jogado fora", na expressão de Michel Maffesoli, ocorre ali como em qualquer instituição - inclusive na redação de ZH - e tem a função de tornar sólidos os vínculos entre os atores, nunca substituindo a sua função principal. 

Paradoxalmente, a matéria atirou no que viu e acertou o que não viu. É que, se a metáfora da sala de aula pode ser objeto de crítica, a necessidade da educação no parlamento é uma certeza. E há inúmeras ações que o parlamento faz para que o cidadão possa conhecer suas leis, seus direitos  e que a matéria poderia ter ilustrado e não o fez. As instituições políticas vivem hoje um processo de valorização de seu papel educativo: “na Câmara que você não vê”, ações dão testemunho que o legislativo vem cumprindo seu papel de colaborar na educação da sociedade para a política: através do atendimento de escolas, realização de cursos, seminários, exposições, publicizando seus gastos e todas as etapas do processo legislativo - via internet - é que a Câmara assume o seu papel educativo em seu campo de influência. O plenário é uma sala de aula sim, mas não no sentido sugerido pela matéria, mas pelo ato educativo que ocorre cada vez que há participação da comunidade no seu interior. A matéria descreveu ricamente tais processos no âmbito das comissões,  mas ficou-nos devendo a descrição de tais processos no plenário - e eles ocorrem. Ali, no espaço da política em estado puro, comunidades inteiras aprendem a fazer política na prática. Nesse instante sim, transformam o plenário numa sala de aula – na sua melhor concepção. O plenário é um pedagogo.     

O que fizeram com nossa língua?


No episodio da série As brasileiras, transmitido pela Rede Globo na última quinta-feira, “A fofoqueira de Porto Alegre”, o que mais me chamou a atenção no episódio foi o sotaque gaúcho.  Rita, interpretada por Xuxa, de tanto ouvir fofoca sobre o próprio marido, termina por correr atrás da sua origem com um grupo de suas amigas. Tudo muito engraçado se não fosse o insuportável sotaque das protagonistas. Ai meus ouvidos!

Não é a primeira vez que a Globo, em nome de uma suposta licença poética, faz barbaridades em termos de representação da vida gaúcha. A novela “A vida da gente” começava com a mocinha colocando um biquíni entre as roupas para ir a serra  mergulhar num lago em pleno frio inverno. Agora, às vésperas do aniversário da cidade, o portoalegrense precisa ver uma estória passada na capital com atores interpretando nosso sotaque de uma forma irreal. É demais.

Essa é a forma reiterada de massificação de nossa cultura. A conquista da hegemonia na televisão tem um preço: a homogeneização da cultura, a padronização dos signos na televisão, que não poupa ninguém. E dá-lhe um sotaque estereotipado em horário nobre a nível nacional, forma ridícula de retratar a fala do povo gaúcho que transmite a falsa idéia de que todos carregam no falar, com suas expressões repetidas a exaustão “guria”, “báh” e por aí a fora. A versão da língua gaúcha proposta pela Globo é semelhante ao café descafeinado de que fala Slavoj Zizek: a língua vendida não quer ofender ninguém e pede até que nem nos identifiquemos com ela. Na lógica de signos televisivos tudo é permitido desde que esqueçamos um pouco a realidade. A tal “vida como ela é“ é uma obra de ficção e só serve para que possamos desfrutar de todas as belas imagens de Porto Alegre, desde que desprovidas de toda a substância que a língua oferece.

Não nos enganemos: o que vale para o sotaque gaúcho vale para toda TV. Cada vez mais, a TV se distância da realidade por esse mais-realidade, o exagero em todas as suas formas que toma conta de seus produtos. Língua, mas também violência, fatos do jornalismo, personagens de novela, tudo quer-se apresentar como a realidade quando é uma forma de reconstrução marcada pela “cavalgada aos extremos” (Baudrillard). Essa caracteristica da produção de mercadorias do capitalismo em que vivemos tem uma conseqüência: hoje, tudo o que nos cerca termina  conter em si o remédio para os males que causa. Você pode beber todo o café que quiser, já que ele é descafeinado, expressão de nosso panorama ideológico atual. E você pode ouvir o sotaque gaúcho grotesco produzido pela televisão porque neste sistema você pode desfrutar de todas as coisas, desde desprovida de sua essência. Alguém ouve aqui em Porto Alegre, às vésperas de seus 240 anos, alguém falar do mesmo jeito que a Xuxa fala? De jeito nenhum!  

Ao representar a linguagem gaúcha com exagero e excesso, a Globo trata de forma grotesca a nossa cultura.É isso. Menos Daniel Filho, menos...